Moscou, entre demonstrações de força e influências sutis
O retorno da Rússia à cena diplomática veio com estardalhaço. Pressionada pela inflexão da Ucrânia em direção ao Ocidente, ela organiza uma brusca reconquista da CrimeiaJean Radvanyi
Em matéria de política internacional russa, este início de 2014 foi marcado por dois acontecimentos capitais. Primeiro, os Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi, cuja organização deu lugar nas mídias ocidentais a uma vasta campanha crítica do regime de Vladimir Putin; depois, assim que os Jogos se encerraram, a crise ucraniana. De certa forma, esses dois momentos fortes representam as duas facetas da nova política internacional do Kremlin: de um lado sua tentativa de se iniciar no soft power, o “poder suave”, e do outro o recurso brutal e mais tradicional às relações de força.
Os Jogos de Sochi visavam mostrar ao mundo que a Rússia era capaz de organizar um acontecimento planetário de grande porte utilizando os recursos mais modernos, fosse para a realização das provas ou para garantir a segurança dos participantes em uma região – o Cáucaso – particularmente sensível. Eles deveriam melhorar sua imagem na opinião pública internacional, elemento essencial para o restabelecimento de Moscou como um agente importante de um mundo multipolar.1 Contudo, o fato de terem acontecido perfeitamente, a despeito dos ecos deformados que chegaram até o público ocidental, não provocou os efeitos esperados. As grandes mídias não tiveram dificuldade em suscitar a hostilidade da opinião, colocando a tônica sobre as incertezas ligadas à preparação dos Jogos e, principalmente, detalhando as legislações repressivas votadas desde o retorno de Putin ao poder: leis sobre o controle das ONGs, da internet, da “propaganda homossexual”… Algumas concessões tardias – libertação dos membros do grupo Pussy Riot e do oligarca Mikhail Khodorkovsky, promessa de não assediar os homossexuais durante os Jogos… – não mudaram nada.
Tentativas de sedução frustradas
As Olimpíadas de Sochi, no entanto, ficarão principalmente marcadas por sua coincidência com os acontecimentos sangrentos de Maidan, a Praça da Independência de Kiev, rapidamente encadeadas pela anexação militar da Crimeia e por sua integração à Federação Russa. A reação totalmente inadaptada do presidente ucraniano Viktor Yanukovich, seguida pela série de decisões tomadas tanto em Moscou como em Kiev e Bruxelas, levou o mundo a um grande confronto e deu início a uma campanha russofóbica sem precedentes há décadas.2 Antes mesmo da aplicação de sanções contra a anexação da Crimeia, a imagem do país tinha sofrido uma deterioração que não poderá ser compensada por nenhuma mobilização patriótica interna.
A organização dos Jogos Olímpicos revelou ser o emprego tardio, entre os instrumentos da política internacional russa, daquilo que se chama comumente de soft power – o poder de influência não coercitivo, ao mesmo tempo ideológico, cultural e científico. Em entrevista, em 2012, o próprio Putin falou a respeito dessas técnicas de “poder suave” para deplorar um atraso nessa área, na qual as potências ocidentais são excelentes. O domínio do discurso sobre os acontecimentos, sobre sua interpretação, se tornou tão importante na arena internacional quanto os fatos em si. Diga-se de passagem, o presidente russo criticava vivamente a maneira como diversos países, e em particular os Estados Unidos, utilizavam esses meios para fazer pressão sobre outros Estados e para lhes ditar suas escolhas. Putin estimava que “a atividade de pseudo-ONGs e de outras estruturas que buscavam, com ajudas internacionais, desestabilizar tal ou tal Estado” era “inadmissível”.3
Em 2003 e 2004, as “revoluções coloridas” na Geórgia e na Ucrânia suscitaram uma mudança na política russa, tanto no plano exterior como no interior, com o voto de leis cada vez mais restritivas sobre a liberdade de organização e de expressão. Foi nesse período que a Rússia começou a se preocupar em melhorar sua imagem. Ela revalorizou sua rede cultural e linguística com o desenvolvimento dos centros Ruskii Mir (“Mundo Russo”) e tentou ganhar o apoio da diáspora.4 Seu domínio desses instrumentos, no entanto, ainda era muito imperfeito, e seus dirigentes continuaram a recorrer a meios mais tradicionais, em particular a pressões econômicas e militares. Muito mais do que um savoir-fairebalbuciante em matéria de comunicação, Fyodor Lukyanov, redator-chefe da revista Russia in Global Affairs, aponta para a principal fraqueza de seu país: “Por enquanto, o ‘poder suave’ não tem essa substância que tornaria atraente o modelo de desenvolvimento pregado por Moscou”. Enquanto a União Soviética podia se apoiar em um fermento ideológico e em uma oferta plausível de alternativa estratégica, “a Rússia não conseguia produzir outra coisa além de um discurso tradicionalista e conservador, claramente oposto ao progresso”.5
Em suas relações com as ex-repúblicas soviéticas tentadas a se aproximar da União Europeia e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Moscou recorreu sem parar a sanções econômicas e alfandegárias, como durante os diversos episódios da “guerra do gás” com a Ucrânia. O site ucraniano Newsplot publicou em 2013 um mapa detalhando quinze medidas de uma “guerra alimentar” tomadas por Moscou contra seus vizinhos ocidentais entre 2005 e 2013:6 boicote dos vinhos georgianos e moldavos, dos laticínios bielorrussos, da carne polonesa, do chocolate ucraniano etc.
E, há alguns anos, a Rússia já não hesita mais em resolver certos conflitos pelas armas. Em agosto de 2008, foi o próprio presidente georgiano quem forneceu a ocasião, ao bombardear a cidade de Tskhinvali, na Ossétia do Sul, e o quartel dos militares russos que ali se encontrava. A resposta foi viva. As forças russas tomaram o controle momentaneamente de todo o oeste da Geórgia, e Moscou reconheceu a independência das duas regiões separatistas de Abecásia e da Ossétia do Sul, rompendo assim o acordo feito em 1991 de respeitar a integridade territorial da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), que reagrupava as antigas repúblicas soviéticas. Em março de 2014, após os acontecimentos de Kiev, a Rússia tomou a iniciativa de colocar a Crimeia sob seu controle militar, antes de proceder à sua anexação ao fim de um plebiscito organizado às pressas.
Desdém da União Europeia
O Kremlin não esconde as razões desse novo recurso à força. E o desafio que ele lança assim ao mundo vai muito além do problema ucraniano. De fato, Moscou reclama uma reavaliação do conjunto de regras que regem a segurança internacional. Sua posição, expressa claramente por Putin durante a 43a Conferência sobre Segurança em Munique no dia 10 de fevereiro de 2007, se sustenta em alguns pontos. O governo não aceita mais o jogo duplo de alguns Estados ocidentais, que apresentam regras internacionais como sendo imutáveis ao mesmo tempo que as quebram a cada vez que lhes convém.
Aproveitando-se do enfraquecimento da Rússia depois do desmantelamento da União Soviética e da dissolução do Pacto de Varsóvia, alguns dirigentes norte-americanos pensaram poder estabelecer a dominação de uma superpotência única: a deles. Mas, desde então, o mundo evoluiu. Assim, devem-se renegociar as bases da segurança associando plenamente os novos polos de poder, em particular os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Enfim, é preciso admitir que a própria Rússia tem interesses estratégicos legítimos e pode defendê-los, como os Estados Unidos e os principais Estados ocidentais sempre fizeram em suas diversas zonas de influência.
Ao proporem para a Ucrânia e para a Geórgia em 2008 a entrada na Otan, ou ao negociarem com Kiev, no final de 2013, um acordo de associação com a União Europeia, os dirigentes norte-americanos e europeus contribuíram para a supressão dos interesses da Rússia em suas próprias fronteiras, e estavam perfeitamente conscientes disso. Uma parte dos dirigentes norte-americanos, aos quais se uniram os de Estados europeus como a Polônia e a Suécia, nunca abandonou a estratégia anunciada em sua época por Zbigniew Brzezinski.7 Para Serguei Karanganov, um dos conselheiros de política externa do presidente Putin, diante do risco de ver a Ucrânia entrar na Otan, com a perspectiva de que a organização recuperasse o Porto de Sebastopol, “a Rússia devia defender seus interesses com mão de ferro”.8 Ao anexar a Crimeia e reunir tropas perto das fronteiras orientais da Ucrânia, ela dá a entender aos dirigentes ocidentais que saiu de seu período de enfraquecimento e defenderá seus interesses estratégicos, custe o que custar em termos de relações diplomáticas ou comerciais. Mas ela tem realmente os meios para isso?
Até um período recente, a Rússia estava voltada para a Europa, principal parceiro tradicional tanto de suas trocas culturais e humanas como de suas relações econômicas. Em 2013, a União Europeia ainda era o principal cliente e fornecedor de seu comércio exterior. Entretanto, dividindo com a Turquia o privilégio de ser um Estado montado sobre os continentes europeu e asiático, ela mostra há muito tempo seu interesse por uma complementaridade entre suas duas fachadas: uma continental, a oeste, e outra marítima, na zona do Pacífico. Esse desenho não é novo: ele tinha aparecido desde antes do fim da URSS, em 1986, no discurso de Mikhail Gorbachev em Vladivostok. Boris Yeltsin, depois Putin, continuaram os esforços para dinamizar a relação asiática. E diversos fatores concorrem hoje para um relançamento dessa estratégia de reequilíbrio.
O mais evidente é o impressionante dinamismo da zona do Pacífico. A Rússia espera ver esse desenvolvimento favorecer, graças a cooperações e investimentos, o novo impulso de sua economia. É por essa razão que Putin organizou em 2012 em Vladivostok o Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Asia-Pacific Economic Cooperation, Apec), do qual seu país é membro desde 1998. Essa retomada de interesse traduz também uma conscientização da crise aguda que atravessa o extremo oriente russo: sua população não para de diminuir desde o fim dos anos 1980 (o conjunto dessa vasta região perdeu mais de 20% de seus habitantes), correndo o risco de deixar esse front estratégico completamente desarmado diante das dinâmicas regiões chinesas.
Outro elemento determinante da retórica do grande reequilíbrio: a deterioração das relações com as instituições europeias que, ao mesmo tempo que se ampliam para o leste, impõem suas próprias regras como modelo obrigatório das relações com os russos, em particular na área-chave da energia. Além de propor programas sucessivos a certos membros da CEI no âmbito da política de vizinhança, desde 2004, mais a parceria oriental, lançada em 2009, a União Europeia se esforçou para diminuir sua dependência petroleira e de gás com relação à Rússia, diversificando seus fornecedores. Moscou se adaptou a essas evoluções reorganizando seus circuitos de exportação para o oeste (construção dos gasodutos North Stream e Blue Stream, projeto South Stream sob o Mar Negro), mas também transferiu para a Ásia uma parte de suas trocas. A China se tornou assim, em 2011, o maior parceiro comercial da Rússia.
Aí se encontra um elemento essencial da crise atual: profundamente dividida quanto à conduta a manter diante de seu grande vizinho oriental, a União Europeia nunca aceitou discutir realmente essa relação que, no entanto, é fundamental. Ela não imaginou uma estratégia global de desenvolvimento e de segurança para uma “grande Europa”, incluindo a Rússia. Criticando algumas fórmulas propostas por Moscou, Bruxelas preferiu se apegar a uma política de distanciamento. Paralelamente, a atribuição de um novo papel à Otan, cada vez mais integrado à estratégia norte-americana, reforçou a desconfiança do Kremlin. Essa atitude, manifestada pela Europa no momento em que suas instituições e sua economia entravam em uma crise profunda, confortou a posição daqueles que pregam uma aproximação acelerada com as novas potências asiáticas e a suspensão das relações com uma União Europeia enfraquecida, incapaz de traçar uma via distinta daquela de Washington.
Um nacionalismo de dois gumes
No entanto, essa tendência, frequentemente tratada como um espantalho e apresentada como um meio de fazer pressão sobre os europeus, levanta algumas dificuldades, tanto técnicas como organizacionais. É preciso em primeiro lugar vencer um grave déficit de infraestrutura em matéria de energia, de transporte e de alojamento em suas regiões orientais. Moscou parece enfim ter tomado a medida necessária, já que foi criado um Ministério do Desenvolvimento do Extremo Oriente; mas muitos especialistas questionam a eficiência dessa medida: as necessidades financeiras são enormes e as despesas extravagantes do encontro de Vladivostok, em 2012, fazem imaginar que não haverá uma utilização eficiente dos investimentos. Claro, vemos surgir uma rede de transporte de energia para o Pacífico (projeto Eastern Siberia-Pacific Ocean Oil Pipeline, Espo), mas a Rússia acusa certo atraso nas técnicas de gás liquefeito. Ela não poderá, antes de um bom tempo, pensar em levar para a Ásia o volume de combustível que fornece para a Europa.
Se a China se diz pronta para oferecer uma parte dos capitais para reduzir esses atrasos, suas compras de matéria-prima só farão a Rússia se afundar ainda mais em seu papel de simples fornecedora de produtos primários e adiar por mais tempo sua modernização. Muitos siberianos reivindicam cada vez mais abertamente uma autonomia de decisão, única possibilidade, segundo eles, de garantir um verdadeiro recomeço para sua região. Porém, com toda clareza, o sistema putiniano não caminha para essa via.9
Outra dificuldade: a incapacidade de Moscou em impulsionar relações positivas entre os diferentes Estados do espaço pós-soviético. Enquanto a CEI nunca se tornou esse mercado comum oriental sob dominação russa com o qual sonhava Yeltsin em 1991, as tentativas do Kremlin para consolidar um núcleo de Estados que lhe fossem fiéis só surpreendem por suas características hesitantes. Foram criados, na maior das confusões terminológicas e organizacionais, não menos que quatro conjuntos econômicos bambos: União Alfandegária, Espaço Econômico Único, Comunidade Econômica Eurasiática (EurAsEC) e Zona de Livre-Troca no seio da CEI, sem contar a União Eurasiática – ou Eurasiana –, proposta desde 1994 pelo presidente do Cazaquistão, Nursultan Nazarbaiev, que deveria se estabelecer em 2015. Todas essas organizações se articulam em torno de um núcleo comum constituído por Rússia, Bielorrússia e Cazaquistão. Acrescentam-se a ele, segundo os casos, três ou quatro Estados da Ásia central (o Uzbequistão é, na melhor das hipóteses, apenas um observador), e às vezes, por exemplo na União Econômica e na Zona de Livre-Troca, a Moldávia e a Ucrânia.
Mas nenhuma dessas estruturas realmente funciona, em grande parte por causa das exigências contraditórias de Moscou, que visa principalmente preservar sua liberdade de ação e seu controle sobre os Estados que considera vinculados à sua esfera de influência. Essa atitude tem como principal efeito que cada um desses países, a fim de afrouxar o nível das pressões russas, multiplique relações com agentes terceiros influentes: Estados Unidos, Europa, China, Irã… Os Estados da Ásia central parecem recorrer cada vez mais à cooperação chinesa como meio de diversificar suas trocas, para bem além da Organização de Cooperação de Xangai, na qual se encontram com seus dois poderosos vizinhos. Uma coisa parece clara: esse “mil-folhas” organizacional traduz a dificuldade da Rússia em definir um novo equilíbrio em suas relações com seus vizinhos agora independentes. E a crise ucraniana poderia complicar ainda mais sua missão.
Putin considerou por bem acompanhar a anexação da Crimeia de uma mobilização sem precedentes em torno da defesa dos compatriotas russos separados da mãe-pátria durante a dissolução da União Soviética. Com seus ataques contra alguns oponentes, qualificados, como nos piores momentos da época soviética, de “agentes do estrangeiro”, a campanha midiática organizada em todo o país trouxe à tona péssimas lembranças. Num primeiro momento, ela permitiu reunir a imensa maioria da população em torno de seu presidente, que parece assim ter sua revanche contra o movimento do inverno russo de 2011-2012.10 Mas os efeitos a longo prazo poderiam ser duvidosos, tanto no interior do país como em suas bordas.
Diversas regiões da Rússia (o Cáucaso, o Volga, mas também a Sibéria) são povoadas por minorias ativas e repletas de movimentos antagonistas, do islamismo radical ao movimento pela autonomia regional, muito críticos a respeito da deriva centralizadora do regime. Ninguém pode prever como esse sobressalto de nacionalismo será traduzido. O poder autoritário atual parece estar ao abrigo dessas forças centrífugas; mas o que pode acontecer em caso de enfraquecimento ulterior, seja ele oriundo de uma simples transição política ou de uma nova crise econômica?
Mesmo que preocupe os aliados
No entanto, é sem dúvida no exterior que a anexação da Crimeia poderia ter as consequências mais desestabilizadoras. A Estônia e a Letônia ainda contam em sua população com cerca de 25% de russos (frequentemente apátridas). O referendo organizado na Crimeia foi visto como uma ameaça nesses países, assim como na Moldávia – onde cresce o conflito da Transnístria – e no Cazaquistão, onde todo o norte permanece amplamente russófono. Desde 1991, Nazarbaiev sempre se comportou como um aliado indefectível de Moscou. Seus sucessores serão assim tão dóceis? Depois da saída da Geórgia, em 2008, e da Ucrânia, em 19 de março de 2014, da CEI, uma simples distância crítica de Astana marcaria a falência de mais de vinte anos de tentativas dos russos de reorganizar segundo sua vontade o que eles chamariam no início dos anos 1990 de seu “estrangeiro próximo”.
Pudemos ver o primeiro sinal de um isolamento diplomático de Moscou no dia 27 de março, quando do voto na ONU sobre a resolução condenando a anexação da Crimeia: entre os Estados “amigos”, apenas a Armênia e a Bielorrússia votaram contra. A China se absteve, assim como o Cazaquistão. O Quirguistão e o Tadjiquistão nem sequer tomaram parte no voto.11
Para além dos gritos de vitória dos manifestantes russos saudando seu retorno ao seio da mãe-pátria, e sem esperar eventuais derrapagens na Ucrânia oriental, a anexação da Crimeia bem que poderia se revelar uma “vitória de Pirro”.
Jean Radvanyi é professor no Instituto Nacional das Línguas e Civilizações Orientais (Inalco), autor de La nouvelle Russie, Paris Armand Colin, 2007.