A viabilidade fiscal da proposta do movimento de greve dos docentes
O governo federal decidiu encerrar as negociações com o movimento grevista dos docentes das Instituições Federais do Ensino Superior (Ifes). Em 27 de maio, depois de pedir que o Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes) apresentasse a sua contraproposta, encerrou abruptamente as conversações, aceitando “dar um tiro no pé!”. Tudo em nome do equilíbrio fiscal que, em nada, depende dessa decisão. Isso faz algum sentido? Não, não faz. Não tem nenhum sentido político ou econômico justificável
As tendências de longo prazo do endividamento público brasileiro
Em primeiro lugar, é preciso definir alguns conceitos básicos. O setor público consolidado reúne o governo central (governo federal + Banco Central + Previdência Social), os governos regionais (estados e municípios) e as empresas estatais. Importante observar que o governo central, sobre o qual recaem as regras do Novo Arcabouço, é uma parte (importante, por certo) do setor público consolidado, mas não se pode confundi-los.

Grosso modo, o resultado primário do governo central é obtido pela subtração das receitas e despesas não financeiras. Se o resultado for positivo, temos um superávit primário, se for negativo um déficit primário. O resultado primário é o balanço de despesas e receitas com o funcionamento do governo propriamente dito, computando coisas como a arrecadação de impostos e contribuições, e descontando outras, tais como o pagamento de salários e demais despesas como o custeio (diárias, passagens, luz, água etc.) e o investimento público.
O resultado nominal, por sua vez, é obtido subtraindo do resultado primário as despesas (descontadas) com juros, correção monetária e variações cambiais. É o resultado nominal que, de fato, representa um aumento da dívida pública do país. Em geral, para a maioria dos países se verifica um resultado nominal negativo, ou seja, um déficit nominal. Desde 2003, segundo dados do FMI, o Brasil apresentou na maioria dos anos um resultado primário superior à média dos grupos de países, mas em termos de resultado nominal o resultado foi inferior, justamente devido ao maior pagamento de juros. Isso fica claro segundo o Gráfico
Gráfico 1. Evolução anual do Resultado Primário e Nominal entre 2003 e 2023 (% do PIB)

Nos doze meses terminados em abril, o déficit primário foi de R$ 266,5 bilhões, o déficit nominal foi de R$ 1,043 trilhão e R$ 776,3 bilhões corresponderam ao déficit da conta de juros. Como visto, é exatamente o gasto com juros nominais que distingue a experiência brasileira dos demais países. Importante observar que dada a autonomia operacional do Banco Central e o regime de metas de inflação por ele perseguida, a política monetária e, portanto, as despesas com juros, não se encontram diretamente sob controle do Ministério da Fazenda, cuja ação é exercitada sobre as receitas e despesas primárias. Esse tema carece de amplo debate público.
Por sua vez, o resultado nominal tem impacto sobre o estoque de dívida pública e, assim, sobre os principais indicadores de endividamento público, seja a dívida bruta ou a dívida líquida. No caso do Brasil, a principal diferença entre os dois indicadores são as reservas internacionais, ativos sob controle do BC, que são deduzidos da dívida bruta para o cálculo da dívida líquida. Como mostra o Gráfico 2, vemos uma trajetória de longo prazo relativamente estável de ambos os indicadores, longe de um “comportamento explosivo”, sobretudo tendo em vista que o país enfrentou a pandemia de Covid-19, a partir de 2020, cujos efeitos recessivos ainda não se esgotaram sobre o conjunto da economia, como ocorre em diversos outros países. Por outro lado, no comparativo internacional, os indicadores fiscais de dívida bruta e líquida brasileira vêm apresentando uma tendência relativamente estável nos últimos anos quando comparados aos indicadores das economias avançadas, de renda média e de baixa renda, como mostra o Gráfico 2.
Gráfico 2. Evolução anual da dívida bruta e da dívida líquida¹ entre 2003 e 2023 (% do PIB)²

2. Dados disponíveis a partir de 2008.
Fonte: FMI (2024). Elaboração própria.
Vale registrar que, sobretudo após o rápido aumento da dívida pública durante a pandemia em várias partes do mundo, há atualmente um amplo debate nas universidades e organismos multilaterais, incluindo o FMI, sobre qual nível, ou trajetória, dos indicadores fiscais de endividamento pode ocasionar problemas econômicos relevantes, como aceleração inflacionária e baixo crescimento. Isto ganha ainda maior relevância quando consideramos os países de moeda soberana que emitem a própria a moeda e que, exceto por limites autoimpostos, não encontram limites financeiros ao seu endividamento.
Nesse sentido, um posicionamento dogmático em relação ao endividamento público brasileiro e a adoção de medidas drásticas na área social, como o congelamento dos salários dos servidores federais da educação superior em nome do “equilíbrio fiscal” de curto prazo, em 2024, devem ser descartados, sobretudo tendo em vista as perdas substanciais sofridas nessas áreas desde 2016, com a promulgação do Teto de Gastos (EC 95/2016) e a consequente redução dos gastos reais per capita em áreas como saúde e educação (além dos impactos negativos provocados pelas reformas trabalhista de 2017 e da Previdência de 2019).
O contexto fiscal brasileiro atual e o fundamento econômico para a reivindicação salarial do movimento de greve
No caso dos servidores federais da educação superior, após o aumento linear de 9% em maio de 2023 em sua última proposta, o governo federal estabeleceu para este ano nenhum reajuste, em janeiro de 2025, um reajuste de 9%, e 3,5% em maio de 2026. Essa proposta mantém em larga medida as perdas salariais que os docentes e os servidores técnico-administrativos em educação (Taes) tiveram desde 2015, como mostra o Gráfico 3 com a evolução do salário dos professores titulares com doutorado em regime de dedicação exclusiva (DE). Nessa proposta, o poder de compra dos salários dos professores, em 2026, não passará daquele verificado em agosto de 2021.
Gráfico 3. Evolução do salário real (R$ de Dez/2026, IPCA) do professor titular 40h com doutorado em regime de DE com a atual proposta de reajuste do governo federal
Em contraposição, o Andes apresentou uma nova proposta de recomposição salarial, que incluiria um reajuste de 3,66% em agosto de 2024, 9% e, janeiro de 2025, e 5,16%, em maio de 2016. Para atender a esta demanda seriam necessários cerca de R$ 600 milhões, em 2024, R$ 900 milhões, em 2025, e R$ 600 milhões em 2026, um total de R$ 2,1 bilhões em preços correntes a mais que aquilo que o governo está propondo, um montante equivalente a 0,02% do PIB de 2023.
No entanto, em um exercício simples, ao levar em consideração os efeitos arrecadatórios esperados, parcela do aumento dos salários dos professores retorna ao governo, na hora, em 27,5% de IRPF cobrado na fonte, tornando o impacto da proposta do Andes sobre o resultado primário do governo menor. Assim, o aumento de 3,7% no salário de um professor que ganhe R$ 10 mil lhe dará um aumento modesto de R$ 370. Esse aumento será tributado em R$ 101,75 (27,5%), que retornarão aos cofres públicos. Para toda a categoria, os menos de R$ 600 milhões, que serão pagos em salários, em 2024, serão tributados em quase R$ 165 milhões! O efeito líquido negativo sobre o resultado primário seria de R$ 435 milhões. Isso sem falar na tributação da renda que emergirá com os gastos a mais dos docentes. Por fim, ainda há o impacto positivo que a injeção de recursos no salário dos docentes teria sobre o consumo das famílias e, assim, sobre o PIB.
Por outro lado, pode-se ainda argumentar que é preciso cumprir o Arcabouço Fiscal (Novo Regime Fiscal Sustentável, PLP 93/2023), a despeito das críticas que mereça essa regra, tanto acerca dos seus pressupostos (teóricos e empíricos) como das consequências negativas sobre o Estado brasileiro no exercício de suas funções. Ainda assim, não é fato que o aumento em cerca de R$ 600 milhões para custear, em 2024, a proposta de reajuste salarial do Andes não possa ser obtido sem desrespeitar o Novo Arcabouço. Há mais ou menos um mês, o governo obteve a liberação de cerca de R$ 15,6 bilhões para gastar neste ano. O Parlamento ficou com R$ 4,4 bilhões para emendas de comissões. Essa é uma das razões que fez o Andes, o Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe) e a Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico- Administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas (Fasubra) intensificarem a pressão sobre os parlamentares para dirigir parte das emendas para o reajuste dos salários dos docentes e dos Taes.
É a hora do governo federal reabrir a mesa de negociação
Nesse contexto, o comportamento do governo, ao fechar unilateralmente as negociações, só pode ser interpretado como uma ação punitiva drástica sobre os servidores federais da educação superior em nome de um objetivo improcedente, combater o “desequilíbrio” das contas públicas. Podemos resumir os principais argumentos apresentados neste texto que justificam a viabilidade fiscal da proposta do Andes, como se segue:
1) Na área fiscal, o elemento que distingue a experiência brasileira dos demais países são as despesas com juros e não o déficit primário. Mesmo assim, o Brasil apresenta uma tendência de longo prazo relativamente estável dos indicadores de endividamento público. Dessa forma, de um ponto de vista mais geral, não se justifica a adoção de medidas drásticas de contenção de gastos em nome de atender um “equilíbrio fiscal” de curto prazo, sobretudo quando se tem em vista que há em curso atualmente um amplo debate inclusive sobre quais seriam os níveis, ou trajetória, de endividamento público que, eventualmente, poderiam gerar algum tipo de distúrbio sobre a economia.
2) A atual proposta do Andes resulta em um acréscimo nas despesas primárias de cerca 0,02% do PIB nos próximos anos, sendo o impacto ainda menor sobre o resultado primário do governo quando são considerados os efeitos positivos previstos sobre a arrecadação.
3) Em virtude da recente liberação orçamentária de cerca de R$ 15,6 bilhões para gastar neste ano de 2024, é possível o governo acomodar o reajuste salarial pleiteado pelo Andes e, ao mesmo tempo, cumprir o Novo Arcabouço Fiscal.
Essa demanda ganha ainda mais força quando tomamos em consideração as severas perdas salariais e orçamentárias que as Instituições de Ensino Superior, assim como de resto toda a área social do país, enfrentaram entre 2016 e 2022. No caso das Ifes, com mais de 130 mil docentes e mais de 1,5 milhão de estudantes, não são problema, mas parte da solução desse quadro difícil que o país se encontra atualmente. À luz dos debates e disputas que atravessam a sociedade brasileira, ainda há tempo para governo federal, democraticamente, retomar as negociações com o comando de greve, reforçando o compromisso com o serviço público, gratuito e de qualidade, na área da educação superior federal.
Antônio José Alves Junior e Miguel Carvalho são professores do Departamento de Ciências Econômicas do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DeCE-ICSA-UFRRJ).