Mulheres na política: a desigualdade persiste
Durante uma década e meia, a lei da cota simplesmente não pegou. Vários subterfúgios foram usados pelos partidos, sendo um desses que eles reservariam as vagas para as mulheres, mas não poderiam se responsabilizar por seu preenchimento. As eleições de 2012 foram as primeiras em que o TSE exigiu seu cumprimentoMaíra Kubík Mano|Bruno Wilhelm Speck
“Além de representante feminina, única nesta Assembleia, sou, como todos os que aqui se encontram, uma brasileira, integrada nos destinos do seu país e identificada para sempre com os seus problemas. […] Num momento como este, em que se trata de refazer o arcabouço das nossas leis, era justo, portanto, que [a mulher] também fosse chamada a colaborar. […] Quem observar a evolução da mulher na vida não deixará por certo de compreender esta conquista, resultante da grande evolução industrial que se operou no mundo e que já repercutiu no nosso país. […] As moças passaram a estudar nas mesmas escolas que os rapazes, para obter as mesmas oportunidades na vida. E assim foi que ingressaram nas carreiras liberais. Essa nova situação despertou-lhes o interesse pelas questões políticas e administrativas, pelas questões sociais. O lugar que ocupo neste momento nada mais significa, portanto, do que o fruto dessa evolução.”1
Com essas palavras, Carlota Pereira de Queirós, a primeira mulher eleita deputada federal no Brasil, estreava na tribuna da Câmara. Em 1932, o presidente Getúlio Vargas havia autorizado as mulheres a votar e a se candidatar, e Carlota, médica, se elegera pelo estado de São Paulo, onde havia se destacado na Revolução Constitucionalista.
Oitenta anos se passaram. Atualmente, as mulheres ocupam 8,9% dos cargos na Câmara Federal e 12% no Senado, segundo dados de 2010 da União Interparlamentar (IPU). Em termos de igualdade de gênero na política, o Brasil está em um longínquo 106o lugar entre 187 países no ranking da IPU.
Segundo a Social Watch, uma organização que avalia a desigualdade de gênero entre países no acesso à educação, no mercado de trabalho e em cargos de poder na economia e na política, nessa última esfera as mulheres brasileiras estão mais distantes de padrões aceitáveis de igualdade. Em uma escala de 0 a 100, o Brasil se encontra próximo de condições iguais na educação (98), apresenta uma distância significativa entre homens e mulheres no mercado de trabalho (75) e graves desigualdades na ocupação de posições de poder (43).
Por que, apesar desse tempo transcorrido, as mulheres ainda têm baixa participação na política institucional? Qual foi o impacto da política de cotas, colocada em prática em 1995 com a Lei n. 9.100, de cota mínima de 20%, e ampliada em 1997 para 30%, com a Lei n. 9.504?
Histórico
O direito ao voto e à participação das mulheres na política institucional brasileira começou a ser debatido ainda no século XIX. Na Constituinte republicana de 1891, essa possibilidade foi formalmente discutida, ainda que não tenha sido aprovada. Desse período até a década de 1930, as mulheres fizeram uma forte campanha pelo sufragismo, tendo como líder Bertha Lutz. Em 1932, o Decreto n. 21.076 foi assinado pelo presidente autorizando as mulheres a votar e, em 1934, Carlota tornou-se a primeira deputada federal em um plenário com 252 homens. Em 1936, Bertha Lutz, suplente, assumiu como deputada após a morte de um congressista. Ambas tiveram o mandato cassado em 1937.
Até o fim do Estado Novo, em 1946, nenhuma mulher foi eleita para a Câmara. Durante os quinze anos seguintes, a presença máxima foi de duas deputadas federais. Na ditadura militar, quatro eleições foram realizadas em sistema bipartidário. Em 1966, o Brasil passou de duas para seis deputadas federais – das quais cinco tiveram o mandato cassado com o AI-5, em 1968 –; em 1970, somente uma mulher, Necy Novaes, chegou à Câmara Federal; em 1974, de novo apenas uma deputada federal foi eleita, Lígia Lessa Bastos. Já o pleito de 1978 foi marcante. O debate geral girava em torno da anistia, das eleições livres e diretas, da Assembleia Geral Constituinte e do fim da carestia; enquanto os específicos eram a criação de creches, a ampliação e melhoria da merenda escolar, igualdade salarial, condições melhores de trabalho, entre outros. Duas mulheres chegaram à Câmara − Cristina Tavares e June Marise − e vinte às assembleias estaduais (um recorde). Porém, o dado mais significativo foi o número de candidatas, que saltou para 83.2
Em 1982, o Brasil experimentou a primeira eleição livre (exceto para presidente) desde 1966, e a política nacional era a pauta em destaque. Foram eleitas oito mulheres para a Câmara Federal e 28 deputadas estaduais. Em 1986, a Assembleia Nacional Constituinte foi eleita com 26 mulheres, o triplo da legislatura anterior. Elas estavam divididas em nove partidos e, apesar das diferenças partidárias e ideológicas, reuniram-se na “Bancada do Batom” para reivindicar propostas que consideravam fundamentais, naquele momento, para as brasileiras.
Em 1990, 29 mulheres chegaram à Câmara Federal. Em 1994, foram 32, além de seis senadoras. Em 1998, elegeram-se novamente 29 deputadas e apenas duas senadoras. Em 2002, foram 42, e seis senadoras. Em 2006, 46 deputadas e quatro senadoras; e, em 2010, 44 deputadas e oito senadoras, novo recorde.3
Nesse período, houve três novidades: a cota mínima de 20%, posteriormente ampliada para 30% em 1997; as mulheres se tornaram, em 2000, a maioria do eleitorado (Ipea); e, em 2010, o Brasil elegeu a primeira mulher para a Presidência, entrando no seleto grupo de vinte países com uma mulher na chefia do Executivo.
Porém, no contexto do sistema eleitoral brasileiro de listas abertas, a cota de 30% não garante a eleição de mais mulheres. Em última instância, se o eleitor continuar votando em homens, a entrada de mulheres nos legislativos continuará sendo exceção. E, apesar de serem maioria, estudos apontam que o eleitorado feminino tem preconceito em votar em mulheres e que persiste um distanciamento, ainda que cada vez menor, da política em sua vida cotidiana. Mesmo assim, os partidos simplesmente não cumpriram as cotas exigidas. Durante uma década e meia, a lei da cota, introduzida em 1995 e reformulada em 1997, simplesmente não pegou. Vários subterfúgios foram usados pelos partidos para escapar dela, como a alegação de que reservariam as vagas para as mulheres, mas não poderiam se responsabilizar por seu preenchimento. Somente em 2012 o TSE exigiu o cumprimento da lei (gráfico 1), condicionando o registro do partido e das coligações ao seu atendimento.
Na medida em que os partidos efetivamente cumpriram a cota, as questões da dinâmica da disputa eleitoral se tornam relevantes. Em sistemas de lista fechada, as cotas têm um impacto imediato sobre a representação. Com listas abertas, a eleição de mulheres depende de seu desempenho na disputa individual por votos. Nessa briga, três fatores são importantes no Brasil: o fato de o concorrente já ocupar um cargo eletivo eleva as probabilidades de vitória; o apoio do partido (como maior tempo no horário eleitoral) confere ao postulante melhores chances na disputa; e a capacidade de financiar a campanha. Quem conseguir injetar mais recursos do próprio bolso ou tiver acesso a doações, principalmente de empresas, estará mais bem posicionado para disputar os votos dos eleitores.
Em todas essas três dimensões os homens são favorecidos. Pesquisas sobre a posição das mulheres nos partidos brasileiros mostram que estes ainda são majoritariamente dominados por homens, e o padrão de autorrecrutamento na política brasileira torna a virada do jogo extremamente complicada.4 Alguns sucessos simbólicos, como a eleição de uma mulher presidente, não devem ser subestimados – ainda que seja necessário pesar o fenômeno de transferência de votos de Luiz Inácio Lula da Silva. Porém, os dados das eleições municipais são menos animadores. O gráfico 2 ilustra que, entre 2008 e 2012, o aumento em 12,2 pontos percentuais (de 20,2% para 32,4%) de mulheres entre os candidatos levou ao aumento de somente de 2,2 pontos percentuais nos votos, que, por sua vez, resultou em somente 1 ponto percentual de aumento na presença de mulheres eleitas nas câmaras municipais.
O papel expressivo do dinheiro nas campanhas eleitorais no Brasil é outro fator que atua contra as mulheres. A declaração dos candidatos mostra que as mulheres têm menos bens disponíveis que seus concorrentes masculinos. A dificuldade de arrecadar recursos de empresas aponta que elas são menos conectadas com o mundo dos negócios no Brasil.
Diferenças regionais
Um olhar sobre os municípios brasileiros mostra que a entrada das mulheres na política provavelmente virá das cidades pequenas e das regiões Norte e Nordeste, onde tanto candidatas à vereança quanto à Prefeitura ganham mais votos que nas outras regiões (gráficos 3 e 4).
Calculamos um índice de presença da mulher na política municipal a partir dos dados sobre candidaturas femininas, votos e resultados eleitorais, para os cargos de prefeito e vereador, respectivamente. O índice varia de 0 a 100, sendo 50 representativo de um equilíbrio de presença entre homens e mulheres. O Índice de Equidade de Gênero na Política (IEGP) está crescendo ano a ano nos municípios brasileiros, mas os avanços são moderados. A nota melhorou de 10 para 17 em doze anos. Também é possível notar diferenças entre as regiões. Os municípios do Norte e Nordeste têm tradicionalmente as melhores notas. E os municípios pequenos fizeram avanços muito maiores que os grandes: de 2000 a 2012, as cidades de até 10 mil habitantes, que representavam 33% e 27% do total, dobraram sua nota no IEGP, passando na frente dos grandes municípios e das metrópoles, que pouco progrediram na última década. (Ver tabela abaixo.)
A cota aponta na direção certa, mas ela precisa ser complementada por mudanças que melhorem a posição das mulheres nas disputas eleitorais. Para fortalecer a posição das mulheres dentro das organizações partidárias e promover candidaturas femininas nas disputas eleitorais, uma política explícita por parte dos partidos políticos é condição necessária.
Porém, é preciso considerar também que a limitação dos recursos e a alocação mais equitativa influenciarão profundamente a disputa eleitoral no Brasil e poderão contribuir para uma maior equidade das chances dos dois sexos. Não à toa, em pesquisa recente realizada pelo Cesop/Unicamp para a ONU Mulheres, a maioria das deputadas estaduais e federais entrevistadas disse ver no financiamento público de campanha a única saída para essa situação.5
É necessário refletir ainda que a presença de mulheres não necessariamente garante a defesa de políticas associadas ao movimento feminista. Mulheres eleitas podem igualmente defender bandeiras conservadoras. De quais mulheres estamos falando, afinal? Será que a eleição de partidos comprometidos com as causas das mulheres não seria um caminho mais apropriado para alcançar os objetivos do feminismo?
Maíra Kubík Mano é jornalista, foi editora de Le Monde Diplomatique Brasil e atualmente é docente do Bacharelado em Gênero e Diversidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Bruno Wilhelm Speck é doutor em Ciência Política pela Universidade de Freiburg, Alemanha. Foi assessor sênior da Transparency International na América Latina. É professor e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).