“Além de representante feminina, única nesta Assembleia, sou, como todos os que aqui se encontram, uma brasileira, integrada nos destinos do seu país e identificada para sempre com os seus problemas. […] Num momento como este, em que se trata de refazer o arcabouço das nossas leis, era justo, portanto, que [a mulher] também fosse chamada a colaborar. […] Quem observar a evolução da mulher na vida não deixará por certo de compreender esta conquista, resultante da grande evolução industrial que se operou no mundo e que já repercutiu no nosso país. […] As moças passaram a estudar nas mesmas escolas que os rapazes, para obter as mesmas oportunidades na vida. E assim foi que ingressaram nas carreiras liberais. Essa nova situação despertou-lhes o interesse pelas questões políticas e administrativas, pelas questões sociais. O lugar que ocupo neste momento nada mais significa, portanto, do que o fruto dessa evolução.”1
Com essas palavras, Carlota Pereira de Queirós, a primeira mulher eleita deputada federal no Brasil, estreava na tribuna da Câmara. Em 1932, o presidente Getúlio Vargas havia autorizado as mulheres a votar e a se candidatar, e Carlota, médica, se elegera pelo estado de São Paulo, onde havia se destacado na Revolução Constitucionalista.
Oitenta anos se passaram. Atualmente, as mulheres ocupam 8,9% dos cargos na Câmara Federal e 12% no Senado, segundo dados de 2010 da União Interparlamentar (IPU). Em termos de igualdade de gênero na política, o Brasil está em um longínquo 106o lugar entre 187 países no ranking da IPU.
Segundo a Social Watch, uma organização que avalia a desigualdade de gênero entre países no acesso à educação, no mercado de trabalho e em cargos de poder na economia e na política, nessa última esfera as mulheres brasileiras estão mais distantes de padrões aceitáveis de igualdade. Em uma escala de 0 a 100, o Brasil se encontra próximo de condições iguais na educação (98), apresenta uma distância significativa entre homens e mulheres no mercado de trabalho (75) e graves desigualdades na ocupação de posições de poder (43).
Por que, apesar desse tempo transcorrido, as mulheres ainda têm baixa participação na política institucional? Qual foi o impacto da política de cotas, colocada em prática em 1995 com a Lei n. 9.100, de cota mínima de 20%, e ampliada em 1997 para 30%, com a Lei n. 9.504?
Histórico
O direito ao voto e à participação das mulheres na política institucional brasileira começou a ser debatido ainda no século XIX. Na Constituinte republicana de 1891, essa possibilidade foi formalmente discutida, ainda que não tenha sido aprovada. Desse período até a década de 1930, as mulheres fizeram uma forte campanha pelo sufragismo, tendo como líder Bertha Lutz. Em 1932, o Decreto n. 21.076 foi assinado pelo presidente autorizando as mulheres a votar e, em 1934, Carlota tornou-se a primeira deputada federal em um plenário com 252 homens. Em 1936, Bertha Lutz, suplente, assumiu como deputada após a morte de um congressista. Ambas tiveram o mandato cassado em 1937.
Até o fim do Estado Novo, em 1946, nenhuma mulher foi eleita para a Câmara. Durante os quinze anos seguintes, a presença máxima foi de duas deputadas federais. Na ditadura militar, quatro eleições foram realizadas em sistema bipartidário. Em 1966, o Brasil passou de duas para seis deputadas federais – das quais cinco tiveram o mandato cassado com o AI-5, em 1968 –; em 1970, somente uma mulher, Necy Novaes, chegou à Câmara Federal; em 1974, de novo apenas uma deputada federal foi eleita, Lígia Lessa Bastos. Já o pleito de 1978 foi marcante. O debate geral girava em torno da anistia, das eleições livres e diretas, da Assembleia Geral Constituinte e do fim da carestia; enquanto os específicos eram a criação de creches, a ampliação e melhoria da merenda escolar, igualdade salarial, condições melhores de trabalho, entre outros. Duas mulheres chegaram à Câmara − Cristina Tavares e June Marise − e vinte às assembleias estaduais (um recorde). Porém, o dado mais significativo foi o número de candidatas, que saltou para 83.2
Em 1982, o Brasil experimentou a primeira eleição livre (exceto para presidente) desde 1966, e a política nacional era a pauta em destaque. Foram eleitas oito mulheres para a Câmara Federal e 28 deputadas estaduais. Em 1986, a Assembleia Nacional Constituinte foi eleita com 26 mulheres, o triplo da legislatura anterior. Elas estavam divididas em nove partidos e, apesar das diferenças partidárias e ideológicas, reuniram-se na “Bancada do Batom” para reivindicar propostas que consideravam fundamentais, naquele momento, para as brasileiras.
Em 1990, 29 mulheres chegaram à Câmara Federal. Em 1994, foram 32, além de seis senadoras. Em 1998, elegeram-se novamente 29 deputadas e apenas duas senadoras. Em 2002, foram 42, e seis senadoras. Em 2006, 46 deputadas e quatro senadoras; e, em 2010, 44 deputadas e oito senadoras, novo recorde.3
Nesse período, houve três novidades: a cota mínima de 20%, posteriormente ampliada para 30% em 1997; as mulheres se tornaram, em 2000, a maioria do eleitorado (Ipea); e, em 2010, o Brasil elegeu a primeira mulher para a Presidência, entrando no seleto grupo de vinte países com uma mulher na chefia do Executivo.
Porém, no contexto do sistema eleitoral brasileiro de listas abertas, a cota de 30% não garante a eleição de mais mulheres. Em última instância, se o eleitor continuar votando em homens, a entrada de mulheres nos legislativos continuará sendo exceção. E, apesar de serem maioria, estudos apontam que o eleitorado feminino tem preconceito em votar em mulheres e que persiste um distanciamento, ainda que cada vez menor, da política em sua vida cotidiana. Mesmo assim, os partidos simplesmente não cumpriram as cotas exigidas. Durante uma década e meia, a lei da cota, introduzida em 1995 e reformulada em 1997, simplesmente não pegou. Vários subterfúgios foram usados pelos partidos para escapar dela, como a alegação de que reservariam as vagas para as mulheres, mas não poderiam se responsabilizar por seu preenchimento. Somente em 2012 o TSE exigiu o cumprimento da lei (gráfico 1), condicionando o registro do partido e das coligações ao seu atendimento.
Na medida em que os partidos efetivamente cumpriram a cota, as questões da dinâmica da disputa eleitoral se tornam relevantes. Em sistemas de lista fechada, as cotas têm um impacto imediato sobre a representação. Com listas abertas, a eleição de mulheres depende de seu desempenho na disputa individual por votos. Nessa briga, três fatores são importantes no Brasil: o fato de o concorrente já ocupar um cargo eletivo eleva as probabilidades de vitória; o apoio do partido (como maior tempo no horário eleitoral) confere ao postulante melhores chances na disputa; e a capacidade de financiar a campanha. Quem conseguir injetar mais recursos do próprio bolso ou tiver acesso a doações, principalmente de empresas, estará mais bem posicionado para disputar os votos dos eleitores.
Em todas essas três dimensões os homens são favorecidos. Pesquisas sobre a posição das mulheres nos partidos brasileiros mostram que estes ainda são majoritariamente dominados por homens, e o padrão de autorrecrutamento na política brasileira torna a virada do jogo extremamente complicada.4 Alguns sucessos simbólicos, como a eleição de uma mulher presidente, não devem ser subestimados – ainda que seja necessário pesar o fenômeno de transferência de votos de Luiz Inácio Lula da Silva. Porém, os dados das eleições municipais são menos animadores. O gráfico 2 ilustra que, entre 2008 e 2012, o aumento em 12,2 pontos percentuais (de 20,2% para 32,4%) de mulheres entre os candidatos levou ao aumento de somente de 2,2 pontos percentuais nos votos, que, por sua vez, resultou em somente 1 ponto percentual de aumento na presença de mulheres eleitas nas câmaras municipais.
O papel expressivo do dinheiro nas campanhas eleitorais no Brasil é outro fator que atua contra as mulheres. A declaração dos candidatos mostra que as mulheres têm menos bens disponíveis que seus concorrentes masculinos. A dificuldade de arrecadar recursos de empresas aponta que elas são menos conectadas com o mundo dos negócios no Brasil.
Diferenças regionais
Um olhar sobre os municípios brasileiros mostra que a entrada das mulheres na política provavelmente virá das cidades pequenas e das regiões Norte e Nordeste, onde tanto candidatas à vereança quanto à Prefeitura ganham mais votos que nas outras regiões (gráficos 3 e 4).
Calculamos um índice de presença da mulher na política municipal a partir dos dados sobre candidaturas femininas, votos e resultados eleitorais, para os cargos de prefeito e vereador, respectivamente. O índice varia de 0 a 100, sendo 50 representativo de um equilíbrio de presença entre homens e mulheres. O Índice de Equidade de Gênero na Política (IEGP) está crescendo ano a ano nos municípios brasileiros, mas os avanços são moderados. A nota melhorou de 10 para 17 em doze anos. Também é possível notar diferenças entre as regiões. Os municípios do Norte e Nordeste têm tradicionalmente as melhores notas. E os municípios pequenos fizeram avanços muito maiores que os grandes: de 2000 a 2012, as cidades de até 10 mil habitantes, que representavam 33% e 27% do total, dobraram sua nota no IEGP, passando na frente dos grandes municípios e das metrópoles, que pouco progrediram na última década. (Ver tabela abaixo.)
A cota aponta na direção certa, mas ela precisa ser complementada por mudanças que melhorem a posição das mulheres nas disputas eleitorais. Para fortalecer a posição das mulheres dentro das organizações partidárias e promover candidaturas femininas nas disputas eleitorais, uma política explícita por parte dos partidos políticos é condição necessária.
Porém, é preciso considerar também que a limitação dos recursos e a alocação mais equitativa influenciarão profundamente a disputa eleitoral no Brasil e poderão contribuir para uma maior equidade das chances dos dois sexos. Não à toa, em pesquisa recente realizada pelo Cesop/Unicamp para a ONU Mulheres, a maioria das deputadas estaduais e federais entrevistadas disse ver no financiamento público de campanha a única saída para essa situação.5
É necessário refletir ainda que a presença de mulheres não necessariamente garante a defesa de políticas associadas ao movimento feminista. Mulheres eleitas podem igualmente defender bandeiras conservadoras. De quais mulheres estamos falando, afinal? Será que a eleição de partidos comprometidos com as causas das mulheres não seria um caminho mais apropriado para alcançar os objetivos do feminismo?
Maíra Kubík Mano é jornalista, foi editora de Le Monde Diplomatique Brasil e atualmente é docente do Bacharelado em Gênero e Diversidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Bruno Wilhelm Speck é doutor em Ciência Política pela Universidade de Freiburg, Alemanha. Foi assessor sênior da Transparency International na América Latina. É professor e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).