Mulheres negras e as cidades do amanhã
O planejamento urbano contemporâneo é pensado a partir de categorias concebidas para a preservação do homem branco heterossexual e cisgênero como padrão normativo, reafirmando as hierarquias raciais e as construções sociais sobre os papéis de gênero
Em 2018, após Marielle Franco ter sua trajetória política violentamente interrompida, deputados no Rio de Janeiro retiram e quebram a placa feita em sua memória. Existem vários caminhos possíveis para a compreensão deste fato que se conectam com a discussão sobre quais narrativas históricas e corpos sofrem constantes tentativas de apagamento nas cidades. Sobretudo, trago este breve relato para provocar uma reflexão acerca das constantes violações do direito das mulheres negras de existir politicamente, simbolicamente e fisicamente. Dentro da perspectiva de que diferentes formas de opressão produzem formas distintas de respostas coletivas, provoco aqui uma reflexão acerca da reivindicação das mulheres negras pelo direito de existir e de criação de outros projetos de re-existência nas cidades brasileiras.

Nas cidades brasileiras, que são herdeiras do colonialismo escravista patriarcal, as hierarquias raciais e de gênero tornaram-se estruturantes das desigualdades sociais e as marcas dessa distinção grafam o espaço urbano. O planejamento urbano contemporâneo é pensado a partir de categorias concebidas para a preservação do homem branco heterossexual e cisgênero como padrão normativo, reafirmando as hierarquias raciais e as construções sociais sobre os papéis de gênero. Por exemplo, os deslocamentos cotidianos realizados pelas mulheres, muitas vezes ligados às suas trajetórias para o trabalho, escola dos filhos etc. não são considerados. Já que o corpo feminino negro é afetado tanto pelo racismo quanto pelo sexismo, à medida que essas relações sociais se territorializam, as mulheres negras têm experiências urbanas marcadas por iniquidades. Isso determina sua condição marginal e faz com que ocupem espaços vulnerabilizados. Além disso, enfrentam maiores obstáculos ao acesso a oportunidades de emprego e renda, à moradia adequada e a transitar livremente em determinados espaços. Dessa forma, ser uma mulher negra transitando no espaço urbano apresenta-se também como um fator de risco. Suas experiências na cidade também são marcadas pelo sentimento de medo frente às violências de gênero e raça, o que faz com que elas criem estratégias para transitar na cidade em segurança.
Enquanto a mulher negra empobrecida e periférica tem uma das experiências mais radicais de precarização nas cidades brasileiras, historicamente tais mulheres têm desenvolvido um acúmulo de práticas urbanas para viabilizar a vida e organizar demandas, assim protagonizando as lutas pelo direito à cidade. O direito à cidade, expressão cunhada por Henri Lefebvre em seu livro homônimo, diz respeito ao nosso direito de habitar, usufruir e transformar a cidade de forma justa e igualitária. Segundo Harvey, o direito à cidade pode ser visto como o nosso direito coletivo de mudar a nós mesmos, mudando a cidade. Pensar esse direito a partir das experiências das mulheres negras, reafirma o seu caráter enquanto uma utopia orientadora da luta social que confronta as diferentes formas de desigualdades e opressões (racismo, desigualdades de gênero, lesbofobia, transfobia etc.) materializadas no território urbano. Isso permite o enfrentamento das condições sociais que inibem as possibilidades de transformação dos processos de urbanização.
Como concebido por Patrícia Hill Collins em seu livro Pensamento Feminista Negro, as mulheres negras têm um ponto de vista privilegiado, onde a partir da base da pirâmide social se revela não só uma compreensão diferenciada das estruturas da sociedade, mas também a criação de possibilidades de ruptura das opressões. Isso justifica a urgência do reconhecimento das perspectivas das mulheres negras nos debates de direito à cidade. Inclusive para o alcance de um projeto emancipatório de cidades mais justas, democráticas e inclusivas. Afinal, como dito por Angela Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Mas, por qual cidade lutam hoje as mulheres negras?
Antes de tudo, aponto que não existe uma experiência feminina negra única nas cidades brasileiras, assim como existem diversos movimentos de mulheres negras. De forma geral, a agenda antirracista e feminista está intimamente ligada à sua reivindicação pelo direito à vida e à sobrevivência nas cidades. Diz respeito tanto à liberdade do corpo feminino negro de ocupar e transitar quaisquer espaços físicos e políticos, quanto a reivindicação por redistribuição material. Ângela Figueiredo aponta que essa é uma agenda ampla que não se limita somente aos interesses femininos e abarca demandas de uma rede de pessoas que depende dos seus cuidados ou do seu apoio financeiro. Assim, as reivindicações vão desde o acesso à infraestrutura urbana, habitação adequada até a luta contra a violência de gênero e a violência policial que afeta seus filhos e companheiros.
Marielle, enquanto mulher negra periférica LBGTQIA+, representa o corpo feminino negro tido como violável e não pertencente, mas também semente de resistência e transformação dos espaços urbanos. Marielle continua a impulsionar lutas vindas de diferentes lugares, mesmo diante da supressão da sua existência. Dentro disso, retomo a performance realizada no ato de quebrar a sua placa, com a justificativa de “restaurar a ordem”, para revelar a fragilidade da autoridade masculina branca para quem a existência da mulher negra em espaços de poder, de memória e no próprio espaço urbano, é uma ameaça à estrutura racista, sexista e classista existente. Se é na cidade que se encontra a expressão espacial dos processos de disputa de poder e é nela onde estes processos são legitimados ou contestados, essa tensão causada pelo corpo feminino negro e sua memória nos dá um indicativo de como a sua presença em espaços hegemônicos transforma as dinâmicas urbanas e desafia as estruturas de poder. Dentro disso, o planejamento urbano se apresenta como uma ferramenta importantíssima para fomentar a equidade racial e de gênero a partir da luta pelo direito à cidade.

Por qual cidade lutam hoje as mulheres negras?
Como dito por Gabriela Leandro Pereira, as experiências das mulheres negras nas cidades brasileiras são formadas também por um acúmulo de uma expertise de como sobreviver ao racismo, ao patriarcado e ao capitalismo e continuar mantendo a vida possível. Vilma Reis, defensora de direitos humanos e co-fundadora da Mahin – Organização de Mulheres Negras, nos diz que “não será possível uma cidade que não tenha as mulheres negras mais empobrecidas como foco das políticas urbanas. E não abrimos mão de ocupar espaços de representação direta. Já que a gente vem das margens, periferias, encostas, becos e vielas nós sabemos as demandas que mais apertam a cabeça e a barriga do nosso povo. Esse desenho de novas políticas é pelo direito à cidade, pelo acesso à cultura, pela diminuição das taxas dos serviços públicos e por novos arranjos econômicos”.
Para Maura Cristina, coordenadora estadual do MSTB, “as mulheres negras lutam por uma cidade que tenha políticas públicas para viver com qualidade. E além da habitação, precisamos de postos de saúde que funcionem, escolas de qualidade e creches…mobilidade, enfim”. Já Ana Caminha, presidente da Associação de Moradores da Gamboa de Baixo, nos diz que “as mulheres negras lutam hoje por uma cidade onde elas tenham espaço, tenham voz e direitos. A nossa participação nas lutas pelo direito à moradia e nos projetos de políticas públicas são iniciativas que criamos para garantir o direito à cidade. Principalmente ocupando espaços de liderança nos movimentos”. Thifany Odara, Ialorixá e mulher trans, nos diz que “as mulheres negras lutam hoje e desde sempre por uma cidade de direitos, pelo bem viver, pelo direito de existir. Lutando inclusive contra a necropolítica e este Estado genocida. Que mulheres e homens negros tenham direito de viver. É uma luta pela equidade social que se dá desde o processo de insurgência contra a escravidão. Como Ialorixá, considero que os terreiros e quilombos são espaços de preservação de cultura e memória, que conseguem traçar metas contra as opressões. São espaços de ensinamento de como se dá o processo de luta antirracista e pelo direito à cidade”.
Nos seus desejos de cidade encontram-se os processos de resistência que esses corpos carregam, seja na construção coletiva de formas de existência desenvolvidas nas suas comunidades, na preservação de práticas ancestrais nos terreiros de candomblé, na criação de oportunidades de renda, na coragem de ocupar para assegurar o direito à moradia ou na insurgência de ocupar lugares físicos e políticos que não destinados aos seus corpos. Ao me basear no termo desenvolvido por Rossana Tavares em sua tese de doutorado, considero que todos esses processos grafam espaços generificados de resistência que são criados com a presença ou o trânsito do corpo feminino negro. Em um contexto onde o racismo e o sexismo determinam a escolha de quem deve ser eliminado, física, política ou simbolicamente, resistir e transformar não é uma opção, mas uma condição de existência. Pensar sobre o direito à cidade e a luta das mulheres negras perpassa por reconhecer essa urgência de vida, essa expertise e esse movimento contínuo de resistência.
Bethânia Boaventura é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal da Bahia e atualmente Research Fellow da University College London. Tem mestrado em Urban Development Planning pela Bartlett Development Planning Unit (University College London) e cursa o mestrado em Arquitetura e Urbanismo na UFBA com o projeto de pesquisa “O Processo de Revisão do PDDU de Salvador (2016) e as Mobilizações ‘Contra um PDDU Racista e Higienista’”. Bethânia atua na área de desenvolvimento internacional com foco em países do “Sul Global”. Possui experiência em análise de políticas urbanas, projetos participativos e pesquisa-ação no Brasil, Indonésia e Inglaterra. Apaixonada por cidades, Bethânia tem um interesse especial em temas como participação popular, desigualdades sociais (raça, gênero, etnia e classe), migração e políticas públicas voltadas para a justiça social.