Mulheres negras têm urgência na construção de um país mais igualitário
A população de mulheres no Brasil é de 51%, mas apenas 12% das prefeituras são governadas por mulheres. As mulheres negras são 27% da população, mas ocupam apenas em 3% das prefeituras do país
Sempre que sou provocada a pensar sobre o papel e os desafios que nós, mulheres negras, temos que encarar na sociedade retorno a Lélia Gonzales. “O importante é procurar estar atento aos processos que estão ocorrendo dentro dessa sociedade, não só em relação ao negro, ou em relação à mulher. Você tem que estar atento a esse processo global e atuar no interior dele para poder efetivamente desenvolver estratégias de luta”. Sobre as estratégias, basta olhar ao redor para perceber que as que foram adotadas pelos últimos governantes do Rio de Janeiro fracassaram, acredito eu, justamente, por subestimar o olhar das mulheres na tomada de decisões.
Quando aceitei o desafio de ser candidata a prefeita pelo Psol, fiz um pacto comigo mesma para trabalhar exaustivamente para integrar essa cidade, para devolver ao Rio de Janeiro a sua vocação natural: o encontro. Como carioca, sinto um aperto no peito quando vejo o povo da minha cidade sofrendo as consequências das escolhas de políticos que colocam interesses pessoais e de uma elite econômica acima do bem estar da população que os elegeu. Atentem que uso o pronome no masculino porque, em 455 anos, a cidade do Rio de Janeiro nunca elegeu uma mulher para prefeita. Sucessivos governos de homens brancos fizeram do Rio de Janeiro um balcão de negócios e transformaram o Rio numa das capitais mais caras para se viver no país. A realidade, que se impõe aos cariocas, é a da falta de transporte público para ir e vir do trabalho em segurança, em plena crise econômica; é a incerteza de atendimento digno em um hospital, em meio à pandemia.
A minha candidatura para a Prefeitura representa, antes de tudo, a luta por um Rio de Janeiro de gente real. Nasci e vivi na favela da Maré, que tem mais de 300 mil moradores. É uma cidade dentro da cidade, com as dificuldades que a maioria dos trabalhadores enfrenta. O Rio de Janeiro precisa ser pensado a partir desses espaços e para a maioria das pessoas que vivem aqui. Mas, é preciso ousadia para recuperar a cidade e torná-la um lugar bom para todos. A prefeitura precisa estar conectada com o povo carioca para que nos tornemos um farol para todo Brasil. Não apenas por nossas belezas naturais, mas por um modelo de gestão e bem estar igualitários.
A população de mulheres no Brasil é de 51%, mas apenas 12% das prefeituras são governadas por mulheres. Nós, mulheres negras, somos 27% da população, mas estamos apenas em 3% das prefeituras do país. Esses dados do Instituto Alziras sobre a legislatura 2017-2020, traduzem um período do acirramento do discurso opressor em relação às mulheres no Brasil. Na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, por exemplo, dos 51 vereadores eleitos nas eleições de 2016, apenas 7 eram mulheres. Nestas mesmas eleições, de acordo com o TSE, menos de 1% das mulheres eleitas vereadoras no Brasil eram negras, uma delas era Marielle Franco, vítima de feminicídio político, conceito articulado por mim a partir do assassinato brutal de Marielle. A formulação da expressão, até então inédita, parte da constatação de que a violência no país é direcionada àqueles que já vivem em extrema vulnerabilidade, como mulheres, negros, LGBT e moradores de favelas e periferia, e de que o silenciamento de atores sociais que lutam contra essas desigualdades, em especial de defensores de direitos humanos, tornam pessoas com o perfil social, político e econômico de Marielle Franco como corpos matáveis. Vivemos em uma sociedade que não aprendeu a ver mulher construindo política, muito menos as negras e com uma trajetória de vida pobre. Somos vistas como ameaça a um poder estabelecido, a uma lógica que utiliza como método o medo e o ódio. Tentar inviabilizar nosso crescimento político é uma estratégia de exclusão política das mulheres negras.
A primeira mulher eleita prefeita no Brasil foi Luiza Alzira Teixeira Soriano. Ela foi eleita com 60% dos votos em 1928, para comandar o município de Lages, no Rio Grande do Norte, sua cidade natal. Apenas em 1934, foram retiradas as limitações ao voto feminino no Brasil, mas o Estado do Rio Grande do Norte foi pioneiro ao dispor em 1926, em sua Lei Eleitoral, a ausência de restrição de sexos entre aqueles cidadãos que tivessem as condições exigidas por lei para votar e serem votados. Luiza, primeira mulher eleita prefeita de um município da América Latina, pertencia a uma família influente da cidade, mas o fato dela ser uma aristocrata e branca não a protegeu de receber ofensas misóginas durante a campanha. Apesar do pioneirismo, em um levantamento da ONU Mulheres, entre 33 países latino-americanos e caribenhos, o Brasil ficou com a 32ª posição quanto à presença de mulheres nos parlamentos nacionais, estando à frente somente de Belize (3,1%). Na América Latina e no Caribe, a média do número de mulheres parlamentares nas câmaras de deputados ou câmaras únicas ficou em 28,8%. Esse não é um problema apenas no Brasil, ao redor do mundo as mulheres representam apenas 25% dos parlamentares eleitos.
A primeira mulher negra a ser eleita para uma Assembleia Legislativa no Brasil foi Antonieta de Barros em 1934. De lá para cá, os avanços são inegáveis, mas ainda há um longo caminho a ser trilhado. Em uma sociedade patriarcal, machista e racista, a luta pela sobrevivência própria e de seus filhos se impõe às mulheres negras. Ser mulher apresenta-se como um fator de risco, sobretudo se possuem especificidades raciais, étnicas e de classe social. Basta dizer que, entre as mulheres negras, o índice de vítimas de feminicídio aumentou drasticamente no país. Um estudo do Ipea demonstrou que a taxa de feminicídio que atinge mulheres negras é maior e cresce mais do que a das mulheres não negras: entre 2007 e 2017, casos de feminicídio contra mulheres negras cresceram 29,9%, enquanto casos contra mulheres não negras cresceram 1,6%. Todos esses dados nos afastam da possibilidade de disputar em pé de igualdade cargos eletivos.
Enquanto as mulheres brancas buscavam igualdade de direitos com homens brancos, mulheres negras lutavam para sair da posição de subordinadas, pois sofriam opressão tanto de homens como de mulheres brancas. Até hoje as relações sociais são permeadas pelos reflexos do período escravocrata. Mulheres negras amargam a falta de oportunidades, a violência e o racismo enquanto lutam para transformar suas histórias. A participação política de mulheres vem crescendo, mas quando se trata especificamente de mulheres negras, o déficit é grande. Em uma decisão histórica, o Superior Tribunal Eleitoral (TSE) determinou que os partidos terão que usar de forma proporcional os recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral para campanhas negras, e uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a medida entre em vigor já nas eleições de 2020.
O número de mulheres eleitas em 2018 cresceu 52,6% em relação a 2014. Foram eleitas 290 mulheres no total. Para a Câmara Federal, foram 77, sendo 13 delas negras e uma indígena. No Senado Federal, foram 7 senadoras, o que significa 13% do total de parlamentares, porém nenhuma negra. Garantir maior participação das mulheres negras na política, além de ser um processo de reparação histórica é também uma forma de promover a democracia e a pluralidade de vozes nos espaços de tomada de decisões.
Está na hora do Rio de Janeiro ser governado por alguém que, além de uma sólida formação política, tenha a vivência da cidade da mesma perspectiva da população mais pobre. Perspectiva da qual eu faço parte, desse Rio real. Vivi o ônibus cheio, a falta de dinheiro para pagar a passagem cara, o atendimento pelo SUS. E esse Rio precisa ser encarado com atenção. Precisamos derrotar um projeto de cidade que é excludente e que não foi implementado somente no atual governo. O Rio se tornou uma das cidades mais caras do mundo e foi ficando cada vez mais precarizado. Saúde, emprego, saneamento, moradia, educação têm que estar na pauta do dia, num programa sério de recuperação da cidade a partir da diminuição das desigualdades. A participação de mulheres negras na política importa!