Mulheres negras estão cansadas de serem silenciadas
A experiência das pessoas negras passa, sobretudo, pelo silenciamento em diferentes espaços. Leia o relato de Jessica Penha sobre os diferentes silenciamentos que experienciou ao longo de sua vida.
Mulheres negras estão cansadas de serem silenciadas. As lutas que fazem parte da vivência da mulher negra na sociedade se dão todos os dias da semana, 24 horas por dia. Carolina Maria de Jesus, em seu livro “O Quarto dos Despejos”, dizia que seu sonho era escrever e tinha raiva dos políticos e patrões porque o pobre não pode ter sequer o sonho de escrever sobre sua realidade, essa passagem me marcou pela sinceridade e consciência de que escrever é um ato revolucionário, principalmente, quando são mulheres pobres e negras trazendo à luz debates que concernem à sua realidade.
Hoje, quando escrevo ou leio artigos de autoras negras, me sinto dando voz às diversas mulheres sublimes que tiveram sua vida limitada pela cor, gênero e classe. O silenciamento da mulher negra é a junção de pequenas limitações que lhes são impostas ao longo da vida e que são passadas de geração em geração, acumulando anos de políticas do medo que, de acordo com Angela Davis, nos colocam na base da pirâmide social.
Diversas organizações nacionais e internacionais estão mobilizando uma série de setores da economia para enfrentar o racismo. Nos últimos anos, diversos filmes e livros com atores, autores e personagens negros têm recebido destaque ao redor do mundo, esse processo cria visibilidade ao debate da história negra dentro e fora do ambiente acadêmico.
O aumento do estudo pós-colonial e decolonial – cuja premissa é reescrever a história do mundo de forma não eurocêntrica e a partir do sul global -, abriu caminho para discursos que colocam o papel social das pessoas negras em pauta, trazendo a oportunidade para que nós, mulheres negras, possamos reivindicar nossa voz, historicamente silenciada e retirada de nós.

Ao longo da minha vida observei mulheres negras sendo categorizadas como geniosas, raivosas e brutas por tentarem impor suas opiniões e limites, esse abuso psicológico muitas vezes é feito de forma velada e nos insere diariamente em processos cruéis. Quando temos um espaço de fala, muitas vezes nós somos interrompidas, tendo nossas falas reformuladas, como se, ao invés do português, uma espécie de língua alienígena despontasse de nossos lábios.
Mulheres negras de pele clara estão cansadas de serem claras demais para serem pretas ou escuras demais para serem brancas. Ao longo da minha vida, me vi inserida em uma busca constante do que é ser eu já que, para quebrar a barreira que me tira o poder de fala, preciso primeiro saber o que proclamar, mas como falar de raça quando se está em um limbo sem cor entre o “ser branco” e o “ser preto”?
Nosso país passou por um processo histórico de branqueamento da população e apagamento social que criou corpos com diversos tons, ter a pele mais clara possibilita ser chamada de mulata, morena, parda ou qualquer outro nome que remeta à mestiçagem, a mulher negra de pele clara pode ser tudo, só não pode ser preta. E, se não somos pretas, não podemos falar sobre raça. Essa limitação da nossa cor também é um silenciamento, querem nos impedir de contar nossa história e qualquer meio parece se tornar viável para tal.
Enquanto a mulher negra retinta é vista como um corpo para trabalhos braçais, a mulher negra de pele clara tem seu corpo sexualizado e é vista como objeto para relações sexuais casuais. Essa imagem sexualizada se estende também aos corpos negros retintos, tanto femininos quanto masculinos, mas toma outra forma na ideia da “mulata da cor do pecado”, uma imagem de controle que circula dentro e fora do Brasil.
A experiência das pessoas negras passa, sobretudo, pelo silenciamento em diferentes espaços. Silenciam sua fala, questionam sua capacidade intelectual e até mesmo sua cor. Ter pele negra é passar por diversos processos de adaptação forçada, criando versões do sujeito que se moldam dentro do limitado timbre de voz que lhe é concedido.
Essa adaptação forçada se dá tanto no nosso corpo mental, quanto no físico. Quando nova, me via em diversos embates sobre os espaços deveria ocupar, esses debates nem sempre se deram e forma racional, muitas vezes vinham em forma de dor aguda e inexplicável, onde eu, no auge da minha fé, me colocava de joelhos todas as noites chorando e pedindo para acordar branca.
O sofrimento das meninas negras começa na infância, quando elas se negam a ir para a praia por temerem ficar “escura demais”; se intensifica na adolescência, quando os banhos se tornam mais longos e a pele cada vez mais sensível de tanto ser esfregada numa tentativa falha “de se limpar”, afinal, sua cor não é sujeira acumulada.
Perdidas em choros e criadas em bases religiosas, incontáveis crianças e jovens negros ainda se prostram de joelhos antes de dormir e pedem com toda sua força que Deus lhes dê cabelos mais lisos e pele mais clara. Todos os dias a prece é feita com força, às vezes acompanhada de choro por não aguentar mais não se parecer com seu ídolo, por não ter aquele corpo, aquele rosto e aquela cor.
E, ao acordarem e correrem para o espelho, cada vez mais se apaga a fé. O que fizemos para que Deus não nos acolhesse? Por que nos fez assim? A revolta e a descrença tomam forma e muitas vezes se faz necessária a intervenção física, já que a espiritual não parece trazer resultado. Somos então levadas ao salão de beleza para refletirmos no espelho a imagem que a mídia e a história nos dão do que é ser bela, enfrentamos a química, a cabeça quente e o cheiro forte. Arrancamos pelos, clareamos tudo que é possível e começamos cada vez mais a fugir do sol.
Mesmo com o avanço dos debates e da cultura negra, muitas jovens ainda estão inseridas em meios nos quais o “tipo ideal” é a mulher cisgênero, branca, de pele clara, magrinha e frágil. A menina negra sequer tem a abertura para saber o que é fragilidade. Sempre lhe falaram sobre ser forte, fragilidade nunca nos foi uma opção.
Mulheres negras tem seu corpo e alma silenciados todos os dias, a necropolítica estatal, escondida ainda em um discurso de democracia racial, nos coloca em posição subalterna onde até para ler e escrever, ato tão simples para tantos, temos que lutar e mover montanhas. Mulheres negras estão cansadas de serem silenciadas, então parem de nos silenciar. A luta continua e a cada dia reunimos mais vozes para conquistar espaços onde sempre estivemos, só não éramos aceitas. Hoje, muitas de nós ainda estão em casas brancas, mas, desta vez, nós ditamos as regras.