“Mulheres, paz e segurança” no Brasil: o debate que não pode morrer
A existência do Plano Nacional de Ação sobre Mulheres, Paz e Segurança e o seu aprimoramento estão ameaçados no Brasil em um contexto de restrições orçamentárias, desmembramento e fechamento de órgãos políticos e de acirradas tensões partidárias. Cresce no país a sensação de intolerância a opiniões políticas diversas e a polarização em torno de normativas internacionais consagradas, como igualdade de gênero e proteção dos direitos humanos, ora contestadas como doutrinação ideológica
A violência no Brasil assume proporções de uma zona de guerra, com números de mortes violentas comparadas aos conflitos na Síria e no Iraque. O Atlas da Violência, publicado pelo Instituto de Política Econômica Aplicada (Ipea) em 2017, aponta as consequências letais para as brasileiras: 4,5 mortes para cada 100 mil mulheres, com impacto desproporcional sobre as mulheres negras, cuja taxa de mortalidade aumentou 22% entre 2005 e 2015. Para além da violência letal, os dados referentes à violência sexual problematizam a imagem do Brasil como uma zona de “paz”: 135 brasileiras são estupradas por dia, ou um estupro a cada 11 minutos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São dimensões de violências travadas diariamente sobre os corpos das mulheres.
Esses dados estão em descompasso com os esforços do governo brasileiro de alavancar seu perfil internacional na agenda sobre “Mulheres, paz e segurança” da ONU. Em 8 de março de 2017, data de celebração do Dia Internacional das Mulheres, o Brasil se destacou por ser um dos únicos países da América Latina a adotar um Plano Nacional de Ação sobre Mulheres, Paz e Segurança (PNA). O documento é uma resposta direta do Brasil aos apelos das Nações Unidas para que seus Estados-membros promovam estratégias nacionais para a aplicação da Resolução 1325 do Conselho de Segurança. Aprovada há dezoito anos, a Resolução 1325 lança as bases para o entendimento de que a construção de uma paz sustentável depende da ampliação da participação das mulheres e do combate a todas as formas de violência e discriminação contra o gênero.
A adoção do PNA mostrou que a área de segurança tem sido, historicamente, um ambiente voltado para as experiências e práticas dos homens. Levando isso em consideração, o documento se compromete a fomentar o envolvimento de mulheres em todas as atividades relacionadas à paz, a elaboração de iniciativas de proteção e combate às violências baseadas em gênero e o engajamento da sociedade civil nos debates de consolidação da paz e reconstrução pós-conflito.
Estamos diante, portanto, de uma pequena vitória, ao vermos as questões de gênero reconhecidas e incorporadas nos debates de paz e segurança. Mas, um ano após a aprovação do PNA, o que o Brasil tem feito concretamente para avançar esta agenda?
Atualmente, o Brasil ocupa a 82a posição no Women, Peace, and Security Index, um índice desenvolvido pelo Instituto Georgetown sobre Mulheres, Paz e Segurança (GIWPS) e pelo Peace Research Institute Oslo (PRIO) que classifica 153 países a partir de dados publicados pelo Banco Mundial, pesquisas Gallup e ONU em políticas de inclusão, justiça e segurança. Posicionado abaixo de outros países do Sul Global como Namíbia, Gana e Paraguai, é importante que o Brasil repense suas estratégias de igualdade de gênero. O PNA, nesse sentido, pode ser um aliado.
O plano surpreende positivamente com seu compromisso expresso de ampliar e qualificar a inclusão e a participação de mulheres brasileiras em iniciativas de promoção e consolidação da paz. Trata-se de uma iniciativa fundamental que abre espaço para a maior representatividade de mulheres nas áreas de política externa e defesa, tradicionalmente dominadas por homens. Mas para que o documento traga os resultados esperados alguns desafios para a sua operacionalização precisam ser superados.
Especificamente no tocante ao aumento da participação das mulheres nas forças armadas, na polícia e na diplomacia, é notória a ausência de reflexão não apenas sobre os gargalos de entrada e de retenção nas carreiras relacionadas à paz e à segurança como também em questões de paridade salarial e condições laborais, incluindo abuso sexual e moral. O documento também é impreciso com relação às medidas de apoio à família a serem avançadas para facilitar o exercício dessas funções, como licença maternidade e creches.
O PNA poderia se beneficiar ainda de uma abordagem interseccional que considere a sobreposição do gênero com outras categorias identitárias como raça, classe e sexualidade. O reconhecimento da realidade plural e bastante diversa das mulheres brasileiras negras, indígenas e de origem rural ajudaria a combater invisibilidades e hierarquias, conferindo ao documento maior potencial para a promoção de uma sociedade mais justa e igualitária. Para além do alcance do equilíbrio perfeito entre homens e mulheres em determinados espaços, as políticas de transversalização de gênero devem considerar quais são os grupos de mulheres que estão sendo beneficiadas e quais podem estar sendo potencialmente excluídas ou silenciadas nos programas e políticas de gênero.
Com vigência de dois anos, o iminente processo de revisão do PNA é uma oportunidade para que o Brasil supere esses desafios e apresente um discurso de gênero relevante e condizente com as transformações nacionais e internacionais em curso. Esse processo depende da efetiva e ampla inclusão da sociedade civil nacional e da sensibilidade às demandas e particularidades locais e regionais.
Atualmente, a existência do PNA e o seu aprimoramento estão ameaçados em um contexto de restrições orçamentárias, desmembramento e fechamento de órgãos políticos e de acirradas tensões partidárias. No Brasil, cresce a sensação de intolerância a opiniões políticas diversas e a polarização em torno de normativas internacionais consagradas, como igualdade de gênero e proteção dos direitos humanos, ora contestadas como doutrinação ideológica. Em meio aos recentes ataques contra os pilares da agenda de direitos humanos e sociais, faltam vozes dispostas a pensar e defender estratégias concretas para a efetivação do PNA e o avanço da agenda sobre “mulheres, paz e segurança”. As pequenas conquistas estão sendo gradualmente silenciadas pelas controvérsias em torno da construção de políticas, indo na contramão da igualdade de gênero e respeito pela vida humana.
O PNA, enquanto política pública, tem o potencial de contribuir com a institucionalização dessa agenda, criando um novo patamar de diálogo com as instituições-chave do governo brasileiro diretamente comprometidas com esse documento[1] e ampliando os recursos materiais e simbólicos para os defensores dessa causa atuarem em âmbito doméstico. A pluralidade de políticas, perspectivas e ações é crucial na busca de uma abordagem integrada em defesa dos direitos das mulheres, pautada pelo reconhecimento de oportunidades iguais e respeito à dignidade.
*Paula Drumond é professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e Pesquisadora do Global South Unit for Mediation (GSUM); e Tamya Rebelo é doutora em Relações Internacionais pelo IRI-USP e atualmente professora dos cursos de Relações Internacionais do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e do Centro Universitário Senac.
[1] Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Defesa, Ministérios da Justiça e Segurança Pública e dos Direitos Humanos.