Na Argentina, a direita faz muito barulho, mas pouco inova
Afundada na dívida externa, a Argentina enfrenta uma inflação estrutural que mergulhou grande parte da população no desemprego e na pobreza. Diante do fracasso dos peronistas, os eleitores parecem inclinados a se voltar para a direita autoritária nas eleições de 22 de outubro: seja a clássica, representada por Patricia Bullrich, ou a mais radical, personificada por Javier Milei
Um quadro branco com etiquetas coladas: uma para cada ministério do governo argentino. Um homem de cabelos desgrenhados – que se orgulha de não pentear há três anos (e apresenta como obra da “mão invisível do mercado”), com costeletas de roqueiro e olhos azuis penetrantes, aproxima-se. Ele grita o nome do ministério que cada etiqueta representa, para em seguida arrancá-la com um gesto seco: “Turismo e Esporte, fora! Ministério da Cultura, fora! Ministério do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, fora! Ministério da Mulher, Gênero e Diversidade, fora! Ministério das Obras Públicas, fora!”. Esta última não sai inteira, e ele precisa puxar duas vezes. “Mesmo que resista! Ministério da Tecnologia, Ciência e Inovação, fora! Ministério do Trabalho, fora! Ministério da Educação. Ah, a doutrinação! Fora! Ministério dos Transportes, fora! Ministério da Saúde, fora! Ministério do Desenvolvimento Social, fora!” Satisfeito, contempla o quadro branco: “O que restou do Estado?”. Os ministérios do Capital Humano, da Infraestrutura, Economia, Justiça, Segurança, Defesa, Relações Exteriores e Interior. “Acabou o negócio da política! Viva a liberdade, caralho!”
Confira a animação do Le Monde Diplomatique Brasil baseada nesta reportagem.
O homem que acaba de ilustrar seu projeto político para a Argentina é o economista Javier Milei. Até então, suas declarações nos palcos da TV – onde, vermelho de raiva, ele chamava os políticos de “esquerdistas de merda” e os jornalistas de “idiotas”, “imbecis” ou “ignorantes” – tinham-lhe rendido fama, mas não muita credibilidade. Em 13 de agosto de 2023, porém, ele ficou em primeiro lugar nas primárias obrigatórias (que servem de teste em escala real para a eleição presidencial de 22 de outubro), com 30% dos votos, pela coalizão La Libertad Avanza. Dessa forma, Milei não apenas ganha vantagem sobre seus rivais – Patricia Bullrich, da coalizão conservadora Juntos por el Cambio, com 28% dos votos, e Sergio Massa pelo peronismo (21%) –, mas também é impulsionado por uma virada geral para a direita: cada um dos outros dois candidatos representa a ala mais à direita de sua família política.
Conservadorismo e livre comércio
Como explicar o sucesso de um autoproclamado “anarcocapitalista” que propõe cortar gastos públicos “na base da motosserra”, “dinamitar” o Banco Central, dolarizar a economia, romper relações com o principal parceiro comercial da Argentina – a China, porque é “comunista” –, criminalizar o aborto, autorizar o porte de armas, colocar manifestantes na cadeia, autorizar a venda de órgãos e até de crianças? Tal como no Brasil, cuja cena política recente ficou marcada pelo surgimento de Jair Bolsonaro – que tem um estilo e uma formação distintos, mas oferece um coquetel semelhante de autoritarismo, conservadorismo e livre comércio –, a emergência de Milei explica-se pela reconfiguração de uma direita que enfrenta uma crise, a qual luta para superar.
Na realidade, as propostas desse que se apresenta como “revolucionário” não têm nada de realmente novo. Durante a ditadura do general Jorge Videla (1976-1981), que era aconselhado pelos Chicago Boys – economistas liberais formados na Universidade de Chicago e influenciados por Milton Friedman e Arnold Harberger –, a abertura do comércio, a desregulamentação financeira e as privatizações das empresas públicas foram aplicadas com disciplina militar. Ao contrário do que diz Milei, tais receitas não “libertaram” a Argentina, mas “destruíram o tecido social e industrial do país”, destaca Mario Rapoport, especialista na história econômica argentina. Na época, o pacote de medidas enfraqueceu as capacidades produtivas locais e aumentou a dependência do país em relação às exportações agrícolas para financiar a importação de bens manufaturados. Isso reforçou o déficit estrutural da balança comercial, que está na origem de uma inflação crônica: se antes do golpe de Estado de 1976 essa taxa chegava a uma taxa média anual de 78%, durante a ditadura ela atingiu uma média de 191%.
Paradoxalmente, após o retorno à democracia, em 1983, os governos de Raúl Alfonsín, da União Cívica Radical (1983-1989), e do peronista neoliberal Carlos Menem (1989-1999) seguiram o mesmo roteiro. “O ‘menemismo’ propôs muitas das medidas que Milei retoma hoje”, observa Rapoport. Quando, em 1989, a inflação passava os três dígitos, o ministro da Economia de Menem, Domingo Cavallo, presidente do Banco Central durante a ditadura militar, decidiu, para pôr fim a esse flagelo, dar o primeiro passo rumo à dolarização da economia. Em 27 de março de 1991, decretou o Plano de Convertibilidade, que estabeleceria, cinco dias depois, uma paridade fixa entre o peso e o dólar (um peso para um dólar).
“Essa tentativa de dolarização com o plano de convertibilidade fracassou totalmente”, continua Rapoport. Embora a medida tenha conseguido conter a hiperinflação, outras dificuldades logo apareceram: sendo o dólar uma moeda mais forte que o peso, a paridade elevou a taxa de câmbio, tornando as exportações mais custosas. Menos competitivas, estas não conseguiram crescer o suficiente para satisfazer a procura por dólares necessária para sustentar a paridade das duas moedas. Consequência: a Argentina se endividou. Em 2001, o sistema implodiu. Percebendo que o colapso estava próximo, os argentinos correram para os bancos decididos a sacar suas economias, que o governo se apressou em congelar, em 3 de dezembro de 2001.
A sequência da crise, apelidada de corralito (curralinho), é conhecida: em 21 de dezembro de 2001, o presidente Fernando de la Rúa (1999-2001), sucessor de Menem, e o ministro Domingo Cavallo fugiram de helicóptero, a Argentina deu o calote e cinco presidentes se sucederam em onze dias. A população recuperou suas economias em pesos desvalorizados. Entre 2001 e 2002, o PIB caiu 10%, a pobreza aumentou de 46% para 66% e o desemprego foi de 18,3% para 21,5%.
Em abril de 2003, as manifestações bradando “Que se vayan todos!” acabaram com a eleição de Nestor Kirchner (falecido em 2013), um peronista progressista. Recuperando o país em frangalhos, Kirchner renegociou a dívida pública, nacionalizou algumas empresas estratégicas e criou importantes programas sociais. Durante seu primeiro mandato, a pobreza caiu pela metade. Contudo, quando sua esposa, Cristina Kirchner, lhe sucedeu, em 2007, ela foi longe demais aos olhos dos poderosos: com o preço das commodities agrícolas subindo às alturas, a presidenta “ousou” adotar um imposto de 35% sobre as exportações de soja, pulmão econômico da Argentina. Com o apoio da classe média urbana, o agronegócio bloqueou o país durante 129 dias. Cristina foi obrigada a recuar. As reformas esbarraram no teto estabelecido pelos conservadores, que, em 2015, conseguiram eleger Mauricio Macri, um empresário que prometia o retorno da austeridade e do livre comércio.
Tal como em 2001, foi um fracasso. “A chuva de investimento privado”1 que as medidas de Macri deveriam atrair para relançar o crescimento nunca veio. Além disso, o fim do imposto sobre as exportações e de todos os controles sobre os capitais fez o país confrontar-se com o velho problema da escassez de dólares. Macri pediu ajuda ao FMI, que, em 2018, desembolsou um empréstimo de US$ 57 bilhões, ao preço mais uma vez da administração do remédio da austeridade. E não só isso, “a quantia era impossível de pagar”, aponta Rapoport, que sublinha ter sido o valor mais elevado já concedido pelo FMI. Entretanto, a medida revelou-se ineficaz: “A maior parte desse capital fugiu para o estrangeiro”. Um relatório do Banco Central da Argentina de maio de 2020 estima que, dos US$ 100 bilhões que entraram no país em moeda estrangeira durante o mandato de Macri, US$ 86 bilhões foram imediatamente para o exterior.2
Em 2019, quando Alberto Fernández chegou à presidência pela coalizão peronista Frente de Todos, tendo Cristina Fernández Kirchner como vice-presidente (não há nenhum laço de parentesco entre os dois), ele encontrou o país em uma situação que lembrava a de 2001: o PIB tinha caído em média 1,3% em três anos, a dívida havia saltado de 52% para 86% do PIB, o peso perdera mais de metade de seu valor, o desemprego passara de 7% para 10% e a pobreza, de 30% para 35%. Contudo, Fernández não conseguiu resolver a crise. O fardo de pagar a dívida herdada de Macri atou as mãos do governo, que enfrentou novas dificuldades: além da pandemia, que fez 130 mil mortos, a guerra na Ucrânia elevou o preço da energia e uma seca histórica devastou a agricultura.
Fernández, que se descreve como um “liberal progressista”,3 resolveu negociar um novo acordo com o FMI – à custa de novas medidas de austeridade e da ruptura com sua vice-presidenta, contrária à decisão. Resultado: a taxa de pobreza está acima de 40%, a inflação anual chega a 116% e a popularidade de Fernández mal supera a marca dos 20% de opiniões favoráveis.4 Desacreditado, ele desistiu de concorrer às eleições presidenciais de 22 de outubro de 2023. Assim como Cristina, que, além de ter sofrido uma tentativa de assassinato em 1º de setembro de 2022, foi alvo de uma estratégia de lawfare (guerra judicial) para bloquear seu caminho rumo à presidência.
Da guerrilha ao Ministério da Segurança
A ausência de uma candidatura popular e radical à esquerda, bem como a divisão nesse campo político abriram a porta para a volta da direita e suas velhas receitas. Trata-se, portanto, de um retorno, apesar das novas roupagens.
De um lado, uma corrente que se apresenta como “séria” e “experiente”: a de Patricia Bullrich, sempre de terninho e chanel com franja, como as mulheres das classes abastadas de Buenos Aires. Vinda de uma importante família da oligarquia rural, Bullrich foi se radicalizando para a direita, depois de ter participado das guerrilhas marxistas na década de 1970. Ela se tornou ministra do Trabalho sob o governo centrista de Fernando de la Rúa (1999-2001), sendo nomeada, catorze anos depois, ministra da Segurança de Macri, posição na qual se tornou conhecida por sua violenta repressão aos movimentos sociais.
O programa de Bullrich inscreve-se na continuação do “macrismo”: ela propõe uma reforma da legislação do trabalho, o fim dos controles de preços e drásticos cortes orçamentários. No entanto, crítica da estratégia “gradualista” de seu mentor, que desejava evitar uma rebelião popular, Bullrich defende uma estratégia “de choque”: “É tudo ou nada”,5 afirma em um vídeo de campanha. Fiel à imagem de “dama de ferro”, ela promete restaurar a “ordem nas ruas”6 e “pôr fim à era dos ‘piquetes’”7 – bloqueios de estradas organizados regularmente em Buenos Aires por movimentos sociais de desempregados nascidos nos anos 1990.
Cursos de economia nas praças
A essa forma de neoliberalismo autoritário responde o autoritarismo neoliberal da “nova direita rock and roll” de Milei. O libertariano defende o método da força contra a insegurança e os movimentos sociais, cujos líderes descreve como “delinquentes” – uma linha que sua maior referência intelectual, o economista norte-americano Murray Rothbard (1926-1995), chama de “populismo de direita”. Milei opõe os “argentinos de bem” à “casta política”, formada pelo Estado e pelos partidos políticos tradicionais, segundo ele, intrinsecamente corruptos. Ao contrário de Macri, que se orgulhava de nunca ter reagido aos insultos de seus detratores, Milei reivindica a vulgaridade para canalizar a ira popular. “Eu grito com veemência porque estou indignado e cansado da casta política que, dia após dia, rouba nosso futuro.”8
Rapidamente transformado em economista estrela da televisão e do rádio, ávidos por sua extravagância, Milei aproveitou as restrições sanitárias durante a pandemia para acusar o governo de querer estabelecer uma “ditadura da infecção” (infectadura). Vários escândalos ajudaram a alimentar a ideia de uma “casta” que zomba do povo: em pleno confinamento, no dia 24 de julho de 2020, a foto de uma festa na residência presidencial para comemorar o aniversário da esposa de Alberto Fernández foi para as redes sociais; em fevereiro de 2021, explodiu um escândalo ligado à vacinação privilegiada de pessoas ligada aos círculos do poder.
As intervenções midiáticas do candidato libertariano são maciçamente exibidas por influenciadores como Agustín Laje, Álvaro Zicarelli, Emmanuel Danann, “Tipito Enojado” e “El Presto”. Em guerra contra o que chamam de “marxismo cultural”, eles atacam o Estado, a ecologia e as conquistas do movimento feminista.
O discurso de Milei atrai sobretudo os jovens, particularmente expostos às redes sociais e às consequências econômicas e sociais da crise sanitária. “Nunca, desde o fim da ditadura, a direita radical teve uma ressonância tão poderosa junto aos jovens”, constata Ariel Goldstein, pesquisador do Conselho Nacional da Pesquisa Científica e Técnica (Conicet) em Buenos Aires. Segundo pesquisa realizada pela empresa de consultoria Synopis,9 metade dos militantes de Milei, em sua maioria homens das classes média e popular urbanas, têm menos de 29 anos. Durante a pandemia, “o Estado se transformou no inimigo”, explica Sergio Morresi, cientista político da Universidade Nacional do Littoral-Côte-d’Opale, na França. “A seus olhos, o discurso progressista segundo o qual o Estado é quem cuida de nós, nos protege, nos ajuda, não faz sentido. Sua única experiência é a de um Estado que não funciona.”
Juan, de 19 anos, passou o isolamento com a mãe (enfermeira) e a avó. Ele teve de cursar o último ano do ensino médio virtualmente, com uma conexão de internet ruim, o que deixou lacunas quando iniciou seus estudos de arquitetura na Universidade de Buenos Aires (UBA). Embora se considerasse “de esquerda” quando mais jovem, ele agora apoia Milei. “É o único candidato que tem um programa com um futuro para os jovens”, garante, com uma jaqueta de couro nas costas, durante um comício da coalizão La Libertad Avanza. Oriundo de um bairro periférico de Buenos Aires, o rapaz precisa, como muitos jovens, trabalhar paralelamente aos estudos para fechar as contas no fim do mês: “Na Argentina, não podemos fazer planos”. Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Recenseamento, 45% dos jovens entre 15 e 29 anos estão em situação de pobreza.10 De acordo com uma pesquisa da UBA, 68% dos argentinos com idade entre 18 e 29 anos escolheriam emigrar se tivessem recursos para isso.11
Estimulado por sua popularidade crescente, Milei partiu para a ofensiva política. Em 25 de maio de 2020, um dia após o anúncio da prorrogação do confinamento até 6 de junho, ele convocou manifestações viralizando a hashtag #bastadecuarentena. Quase duzentas pessoas seguiram então para a Praça de Maio, em frente ao palácio presidencial, no centro histórico da capital. Considerada a certidão de nascimento da “nova direita argentina”, a mobilização se multiplicou. “Como [em razão do isolamento] os movimentos sociais tinham reduzido sua presença nas ruas, esses grupos antigovernamentais, minoritários, gozaram de uma visibilidade incomum”, explica Melina Vázquez, socióloga do Conicet e professora da UBA. “Longe da direita clássica que expressa os interesses de uma elite, os jovens militantes libertarianos se afirmam mais irreverentes, plebeus, incorretos e pensam ir contra o consenso. Nessas condições, o discurso libertariano se torna subversivo.”
Outrora, a militância da juventude era monopolizada por La Cámpora, uma organização política de juventude fundada em 2006 por Máximo Kirchner, filho de Cristina e Néstor Kirchner. “A esquerda fala muito com os jovens, ensina coisas, oferece ferramentas de emancipação”, reconhece Fernando Cerimedo, assessor de comunicação de Milei desde 2019, que possui um conglomerado de veículos de comunicação de extrema direita. Todavia, os dirigentes de La Cámpora já passaram dos 40 anos e enfrentam um novo concorrente: “Milei também começou a dar aos jovens ferramentas para se defenderem”.
Cerimedo, que leciona na escola de negócios N&W Professional Traders, em Buenos Aires, organiza “cursos de economia ao ar livre” em parques. “Não vim aqui para guiar os cordeiros, mas para acordar os leões!”, repete com frequência. O homem quase sempre tem um livro debaixo do braço e gosta de recomendar leituras a seus militantes. Muitos deles sabem de cor a definição de liberalismo segundo o intelectual de direita argentino Alberto Benegas Lynch: “Liberalismo é o respeito irrestrito ao projeto de vida do outro, fundado no princípio da não agressão (PNA) e na defesa do direito à vida, à liberdade e à propriedade privada”, recita sem hesitação José Maria Lezcano, de 23 anos, estudante de Cinesiologia na Universidade Católica Argentina. Ele usa uma corrente com um pingente de leão: o emblema de Milei.
Eleito deputado em 2021 com 17% dos votos, o economista anunciou que iria “começar a percorrer todos os cantos da Argentina para que em 2023 haja uma cédula de voto liberal em cada distrito do país”.12 E trabalha para conquistar, além da juventude, outros apoios que sabe que serão úteis para alcançar a presidência. No dia 24 de julho, convidado para a exposição organizada anualmente pela Sociedade Rural Argentina (SRA), ele tentou seduzir o agronegócio. Vamos “eliminar todos os impostos sobre as exportações” e “triplicar o rendimento” do setor agrícola, prometeu, sob uma salva de palmas. Em seguida, calçou tênis para percorrer os pavilhões cobertos de feno, ao lado de sua companheira presidencial: Victoria Villarruel, católica fervorosa, contrária ao aborto e filha de um militar processado por crimes contra a humanidade. Personificação da oligarquia conservadora, Villarruel preside o Centro de Estudos Jurídicos sobre Terrorismo, organização que nega os crimes cometidos durante a ditadura militar – que, no entanto, fez mais de 30 mil vítimas. No dia 4 de setembro, ela organizou uma homenagem “às vítimas do terrorismo de extrema esquerda”, provocando a indignação das organizações de direitos humanos.13
A dupla presidencial lembra a Bela e a Fera. Ereta e vestida com um elegante casaco preto, Villarruel contrasta com a excentricidade de Milei, que diverte suas groupies falando com os animais e fazendo sua pose icônica para selfies: cabelos desgrenhados, lábios cerrados, cabeça inclinada, olhos voltados para o céu e polegares para cima. E, embora Villarruel defenda “a família tradicional”, a de Milei, o qual já disse publicamente ter participado de “sexo a três”, ser “um mestre do sexo tântrico” e “não acreditar em casamento”, é no mínimo atípica. Solteiro, ele vive, segundo revelações de sua autobiografia não autorizada escrita pelo jornalista Juan González,14 com aqueles que chama de “seus filhos de quatro patas”: cinco mastins ingleses (clones de seu primeiro cachorro, Conan, falecido em 2017). Quatro deles têm o nome de seus economistas favoritos: Murray, Robert, Lucas e Milton, de Murray Rothbard, Robert Lucas e Milton Friedman.
Como explicar essa união? Milei segue, também aqui, o roteiro de Rothbard: em seus textos, o economista norte-americano defende que, para sair do isolamento político, os libertarianos devem aliar-se às forças conservadoras e reacionárias a fim de conquistar as classes trabalhadoras. “[O ex-presidente brasileiro Jair] Bolsonaro é um conservador que se aproximou do liberalismo econômico ao nomear Paulo Guedes, da Escola de Chicago, para o Ministério da Economia. Milei é um liberal econômico que pegou o caminho do conservadorismo”, observa Goldstein. A aliança com Villarruel está dando frutos: próxima ao Vox, o partido espanhol, ela introduziu o libertariano nas redes da extrema direita internacional.
Além de Villarruel, Milei se aproximou, para as eleições provinciais de 2023 (que acontecem em datas diferentes), dos partidos conservadores locais, a fim de estabelecer sua força política para além de Buenos Aires. Paradoxalmente, o candidato que se autodenomina “antissistema” confiou essa tarefa a um profissional da política: Carlos Kikuchi, ex-porta-voz de Cavallo. Na província de Tucumán, ele firmou uma aliança com o partido Força Republicana, de Ricardo Bussi, filho do general Antonio Domingo Bussi, condenado à prisão perpétua em 2008 por crimes contra a humanidade durante a ditadura e para quem Milei trabalhou como assessor econômico em 1994. Em La Rioja, conseguiu o apoio de Martín Menem, sobrinho do ex-presidente Carlos Menem. Na Terra do Fogo, aproximou-se da pastora evangélica Laura Almirón, do partido Republicanos Unidos, fervorosa antifeminista.
Na maioria das províncias, essas alianças foram um fiasco e dividem a coalizão La Libertad Avanza. “Essas candidaturas eram inapresentáveis”, lamenta Carlos Maslatón, advogado milionário considerado uma das principais figuras liberais do país, que aconselhou Milei antes das eleições provinciais e não viu com bons olhos esse casamento entre La Libertad Avanza e partidos “da casta”.
Maslatón, como muitas pessoas que foram excluídas da coalizão de Milei por se oporem a essas candidaturas, garante que elas foram selecionadas em função de seus “benefícios econômicos”. Em 7 de julho, após múltiplas denúncias, a justiça argentina abriu uma investigação sobre a “venda de candidaturas” em troca de quantias que variam de US$ 10 mil a US$ 100 mil.15 No final, La Libertad Avanza é ainda “pior que a casta”, lamenta Maslatón, enquanto, decepcionado, passa queijo no pão no hotel cinco estrelas onde falou conosco.
A tentação de uma aliança
Entretanto, as contradições da “nova direita” de Milei não afetam sua popularidade. Diante do sucesso do “leão”, Bullrich tentou, antes das primárias, seduzir seu eleitorado “rebelde” com um programa cada vez mais liberal no plano econômico. Estaríamos, nessas condições, caminhando para uma convergência das “duas direitas”, com o neoliberalismo autoritário vendo no autoritarismo neoliberal uma tábua de salvação? Desestabilizada pelo avanço surpreendente de Milei nas eleições, Bullrich, em queda nas pesquisas, parece querer aproximar-se dele. Durante seu discurso de celebração da vitória, ela foi rápida em “parabenizar” o libertariano por sua “grande eleição”. “Ele contribuiu para o debate e também disse que não queria, como nós, que o Estado fosse uma caverna de La Cámpora”, declarou.
No momento, Milei recusa qualquer aliança com sua rival. Porém, parece mais sensível aos avanços de outra figura influente da direita: Macri, que, antes de voar para o Marrocos a fim de participar da Copa do Mundo de Bridge, teve tempo de lhe enviar uma calorosa mensagem de felicitações. Embora Milei tenha certa vez chamado o ex-presidente de “delinquente”,16 os dois agora mantêm “um diálogo frutífero”.17 Em 19 de agosto, Milei até lhe prometeu, em caso de vitória, um cargo de “superembaixador” em seu governo, para “abrir mercados”.18 A despeito do lema da coalizão La Libertad Avanza: “Não vamos mudar a Argentina mantendo os mesmos”.
*Anne-Dominique Correa é jornalista.
1 “En la presidencia de Macri, la ‘lluvia de inversiones’ fue menos de la décima parte de los dólares que ingresaron por endeudamiento” [Durante a presidência de Macri, a “chuva de investimentos” foi inferior a um décimo dos dólares que entraram por endividamento], 22 jan. 2020. Disponível em: www.infobae.com.
2 “Mercado de cambios, deuda y formación de activos externos 2015-2019” [Mercado de câmbio, dívida e formação de ativos externos 2015-2019], Banco Central da Argentina, 14 maio 2020.
3 “La llamativa definición política de Alberto Fernández: ‘Soy de la rama del liberalismo progresista peronista’” [A exuberante definição política de Alberto Fernández: “Sou da ala do liberalismo progressista peronista”], Clarín, Buenos Aires, 19 jun. 2019.
4 “Según una encuesta, Alberto Fernández tiene la peor imagen entre los dirigentes de la Argentina” [Segundo pesquisa, Alberto Fernández tem a pior imagem entre os líderes da Argentina], 31 maio 2023. Disponível em: www.infobae.com.
5 “La arenga de Patricia Bullrich en un nuevo spot de campaña: ‘Es todo o es nada’” [O discurso de Patricia Bullrich em novo vídeo de campanha: “É tudo ou nada”], Ámbito Financiero, Buenos Aires, 16 jul. 2023.
6 “‘Vamos a poner orden en la calle’, el mensaje de Patricia Bullrich y Joaquín de la Torre en un imponente acto de seguridad en San Miguel” [“Vamos colocar ordem nas ruas”, a mensagem de Patricia Bullrich e Joaquín de la Torre em um imponente ato de segurança em San Miguel], Perfil, Buenos Aires, 18 mar. 2023.
7 “Bullrich corre a Larreta por derecha y exige la represión de la protesta social” [Bullrich corre para Larreta pela direita e exige a repressão de protestos sociais], Página 12, Buenos Aires, 5 jul. 2023.
8 “Qué es la casta, la palabra preferida de Javier Milei para cuestionar a todos los políticos” [O que é a casta, palavra preferida de Javier Milei para questionar todos os políticos], 13 ago. 2023. Disponível em: www.a24.com.
9 Lucía Pereyra, “‘Anticasta y libertad’: las razones detrás del apoyo de los jóvenes a Milei” [“Anticasta e liberdade”: as razões do apoio dos jovens a Milei], La Nación, Buenos Aires, 29 jan. 2023.
10 “Hay 5,9 millones de chicos pobres en la Argentina; es el 54,2% de los menores de 14 años de todo el país” [Há 5,9 milhões de crianças pobres na Argentina, 54,2% dos menores de 14 anos em todo o país], 31 mar. 2023. Disponível em: www.infobae.com.
11 “El 70% de los jóvenes argentinos se iría del país según una encuesta realizada por la UBA” [Quase 70% dos jovens argentinos deixariam o país, segundo pesquisa realizada pela UBA], 4 abr. 2023. Disponível em: www.infobae.com
12 “Milei confirmó su postulación a Presidente: uno por uno, la lista de sus candidatos legislativos” [Milei confirma candidatura a presidente: um por um, a lista de seus candidatos legislativos], Perfil, Buenos Aires, 24 jun. 2023.
13 “Argentine: des manifestants dénoncent le négationnisme dans la campagne électorale” [Argentina: manifestantes denunciam negacionismo durante a campanha eleitoral], RFI, 6 set. 2023.
14 Juan González, El Loco [O louco], Editorial Planeta, Buenos Aires, 2023.
15 “Un escándalo de venta de candidaturas hunde al ultraderechista Javier Milei en Argentina” [Escândalo de venda de candidaturas afunda o ultradireitista Javier Milei na Argentina], El País, Madri, 8 jul. 2023.
16 “Milei hizo enojar a Canosa y le pegó a Mauricio Macri: ‘Es un delincuente’” [Milei irrita Canosa e bate em Mauricio Macri: “É um delinquente”], El Cronista, Buenos Aires, 1º jun. 2021.
17 “Javier Milei: ‘Macri me llamó para felicitarme y agradecerme’” [Javier Milei: “Macri me telefonou para parabenizar e agradecer”], Perfil, 11 ago. 2023.
18 “Javier Milei: ‘Si soy presidente, Macri va a ser mi representante ante el mundo’” [Javier Milei: “Se eu for presidente, Macri será meu representante no mundo”], 19 ago. 2022. Disponível em: www.infobae.com.