Nacionalismo, globalização e cidadania em Israel
O discurso recorrente já assimilado pelo povo é de que o Estado de Israel está “cercado de inimigos por todos os lados os quais ardorosamente almejam a sua destruição e que sem o uso da força é impossível mantê-lo no decorrer do tempo”, é a ideologia da militarização que se estende pela educação e todas as esferas da vida.
A história de Israel como país teve como antecedente a entrega pelos ingleses da administração da Palestina à Organização das Nações Unidas devido ao recorrente e crescente conflito entre judeus, árabes e britânicos. Em 1947 a região foi dividida em dois Estados, um judeu e outro árabe, sendo que tal partilha agradou parcialmente o movimento sionista e não foi aceita pela Liga Árabe. No ano de 1948 ocorreu a declaração de independência do Estado israelense e em 1949 aconteceu a primeira eleição, a aprovação das leis destinadas a assegurar o retorno de todos os judeus e a criação das instituições necessárias ao funcionamento do país, particularmente as Forças Armadas.
O decesso de entendimento e tolerância entre as partes envolvidas provocou o aparecimento de vários embates no decorrer dos anos. Guerra árabe-israelense 1948 e 1949, Guerra do Suez 1956, Guerra dos Seis Dias 167, Guerra do Desgaste 1969 e 1970, Guerra do Yom Kippur 1973, Guerra Civil Libanesa 1975 a 1985, Operação Litani 1978, Conflito no Sul do Líbano 1982 a 2000, Primeira Intifada 1987 a 1993, Segunda Intifada 2000 a 2005, Guerra do Líbano 2006, Operação Chumbo Fundido 2008 e 2009, Operação Pilar Defensivo 2012, Operação Margem Protetora 2014, Conflitos na Faixa de Gaza 2018 a 2021.
Sem dúvida estas frequentes e incessantes contendas conferiram às Forças Armadas uma posição de destaque no país. Tal realce permite dizer que Israel se mostra claramente como um Estado Guarnição o qual existe em vários recantos do planeta como por exemplo o paquistanês, resultante de uma mistura de ameaças existenciais reais e imaginárias durante a Guerra Fria e da Eritréia que apareceu após o cessar-fogo com a Etiópia. Essencialmente ele é um Estado mantido pelo poder militar. Vale lembrar que apesar de sustentado pelas hostes castrenses se encontra organizado e funcionando por meio do regime democrático parlamentarista embora seja dirigido por uma elite composta por fardados de alto escalão juntamente com civis militarizados. Observe-se que muitos militares ocuparam o cargo de primeiro ministro, tais como Ehud Barak, Yatzhak Rabin, Ariel Sharon, Naftali Bennett e Benjamin Netanyahu. Considerando que o núcleo do poder gira em torno dos integrantes da caserna ele espelha o militarismo.
Por ser uma instituição desta natureza predomina em seu interior a ideologia da militarização entendida tanto em seu sentido original quanto em seu sentido derivado. O primeiro diz respeito à situação caracterizada pelo contumaz uso da força e emprego de grandes exércitos permanentes legitimados por um consoante e recorrente discurso apregoador de mudanças nas crenças reinantes na sociedade. Esta situação tende a incentivar a presença ativa de militares em diversas instâncias da vida social ou o emprego de concepções militares em múltiplos setores da coletividade e constitui o segundo sentido anteriormente citado.
De fato, o discurso recorrente já assimilado pelo povo e aceito sem questionamentos é de que o Estado de Israel está “cercado de inimigos por todos os lados os quais ardorosamente almejam a sua destruição e que sem o uso da força é impossível mantê-lo no decorrer do tempo”. Esta narrativa permitiu a Israel organizar, talvez, as Forças Armadas mais capacitadas e eficientes de todas. Não é à toa que o percentual de gasto do governo com elas seja um dos mais elevados do mundo, haja vista que emprega aproximadamente seis por cento do produto interno bruto.
Quanto ao segundo sentido sabe-se que ele é demasiadamente notório no dia a dia. Inicialmente vale lembrar que paisanos e fardados se encontram intimamente entrelaçados porquanto durante muitos anos tanto homens quanto mulheres, após prestarem o serviço militar, continuam realizando treinamentos com vistas a se manterem aptos para o combate. Existe, portanto, um constante rodízio entre fardados e não fardados, entre a vida civil e a vida militar.
Cabe mencionar também que os integrantes da caserna se encontram presentes em todos os setores da vida em sociedade. Caminham pelas ruas das cidades, postam-se em praças e em frente de estabelecimentos comerciais, prestam colaboração aos conterrâneos, visitam escolas para falar com os estudantes, para lá se dirigem para fazer apresentações orais e participar das solenidades alusivas às datas nacionais comemoráveis. No ensino superior existem parceiras entre universidades e o aparato militar de segurança. Na área empresarial muitos reservistas ocupam cargos de direção e assessoramento, particularmente na indústria bélica. Costumam acolher imigrantes e ensinar a eles a língua hebraica. Uma brigada de infantaria, o Nahal, presta ajuda às comunidades agrícolas espalhadas pelo deserto de Neguev. Tais ocorrências tornam as Forças Armadas uma instituição muito popular e admirada por todos os judeus. Seu prestígio social ultrapassa a casa dos noventa por cento, os pais querem que seus filhos nelas adentrem e estes almejam muito seguir a carreira militar.
Ao lado da ação militar combativa circulam grupos civis armados. É o caso da Liga de Defesa Judaica que age para proteger as sinagogas locais e os Guardiões de Lod que se movimentam para garantir o comparecimento judaico na Cidade Velha. Há também a presença de grupos espontâneos de curta existência, incentivados por policiais e pelo movimento sionista MyIsrael, que se voltam para o ataque a palestinos na cidade de Jaffa.
Por estas colocações é possível notar que as relações civis militares são muito boas e profícuas. A esse respeito é preciso dizer que o envolvimento dos militares na política é uma ocorrência normal, quer nas manifestações verbais ou em processos decisórios, sendo que ele é devidamente norteado pelo Ruach Tzahal, o código de ética castrense. Nestas relações percebe-se que os fardados buscam acalmar e conter as recorrentes condutas beligerantes da cúpula governamental quando são chamados para ajudar a decidir sobre assuntos importantes, apoiar ou refutar planos. Entretanto, a última palavra cabe sempre à esfera civil cujo setor militar se mostra devidamente subordinado.
Estes liames entre fardados e paisanos são estreitados e fortalecidos por meio da ideologia nacionalista, uma forma de consciência coletiva que envolve coesão, senso de unidade e identificação dos indivíduos com o Estado. Ela expõe que o poder legítimo se fundamenta na nação, que nela deve predominar o autogoverno e a soberania absoluta, isto é, que nenhuma interferência vinda de fora seja aceita, que a concretização dos interesses do povo realmente aconteça e que o orgulho nacional seja vistoso e perene. Vale recordar aqui a importância dos Kibutz na história de Israel, um projeto coletivista que durante muitas décadas, ajudou bastante na construção da unidade nacional. Tal nacionalismo é assimilado pelos indivíduos por meio da socialização secundária bem como pelos processos educativos formais próprios das escolas e informais que ocorrem fora da escola. Com efeito a preparação cívica em andamento enfatiza os valores judaicos, assenta-se no etnocentrismo e se centraliza em Israel como um Estado Judeu e democrático.
A formação da juventude acata esta orientação, e se submete a outras diretrizes. Uma delas é a clara distinção entre cidadãos judeus e cidadãos não judeus. Outra é o discurso étnico-religioso estimulado por partidos de direita e grupos de colonos judeus. Consequentemente, aparece realçada a narrativa de que a terra bíblica de Israel é primordial, possui caráter divino e que o título de cidadão só pode ser outorgado aos judeus. A lei vigente já estabeleceu que Israel, acima de tudo, é um Estado nacional judeu e que o compromisso dele é com os cidadãos judeus em detrimento dos não judeus. Isto significa que os valores seculares, liberais e democráticos se subordinam aos valores e compromissos religiosos étnico-nacionais.
Pesquisas sobre a prática educativa revelam a existência do denominado currículo do ódio, haja vista que a programação escolar e os livros didáticos assentam-se na ideia da presença de um inimigo comum que é descrito em termos ofensivos, principalmente, como agressores enquanto que a nação israelense é retratada como heroica e os judeus como vítimas. Portanto, os inimigos, isto é, os palestinos são apresentados de modo estereotipado, como um povo primitivo e atrasado, como pessoas desumanas, como um grupo que precisa ser trazido para o âmbito da modernidade. As meninas são orientadas a não se aproximarem dos meninos palestinos sob a alegação de que eles constituem uma ameaça a elas.
Como não poderia deixar de ser, o ensino vem se desenvolvendo em parceria com o setor militar haja vista o consenso em relação à meta do preparo de bons soldados. Para tanto um programa vem sendo posto em prática com vistas a incutir um senso de dever e lealdade ao Estado e fortalecer os liames entre o Exército e as escolas. Ele se fundamenta na concepção de que as ações militares são corretas e que o emprego da violência é uma forma legítima de resolver problemas. Uma estratégia bastante empregada diz respeito ao conhecimento das raízes históricas do país por meio de visitas a regiões onde se encontram assentamentos, ao túmulo dos patriarcas e ao parque arqueológico da Cidade de David.
Em complemento a esta educação oficial existem iniciativas paralelas. É o caso por exemplo de uma academia organizada e dirigida por fardados que se encontra em funcionamento desde alguns anos em Jerusalém a qual conta com milhares de alunos. Nela os discentes aprendem a enfrentar os rigores da vida castrense e os procedimentos de defesa em caso de ataques. Eles realizam cursos de defesa pessoal, tiro ao alvo e atividades de identificação de inimigos. Há também acampamentos de verão organizados por militares voltados ao ensino dos jovens sobre ataques aéreos em simuladores, atividades em pistas de obstáculos, manuseio de armas semiautomáticas, visualizações de cenários pertinentes a combate em áreas urbanas e curso de guerra cibernética.
A ampla socialização deste doutrinamento tem sido capaz de desenvolver nos jovens uma postura política consoante. Com efeito, um estudo efetivado há alguns anos revelou que a juventude vem exibindo crescentemente concepções nacionalistas particularmente a de colocar mais relevância no caráter judaico do Estado do que na defesa de valores democráticos e liberais. Mostrou também que a maioria dos adolescentes considera que caso a segurança do Estado e a democracia venham a entrar em desacordo a segurança deve prevalecer. Apontou ainda a preferência pela presença de uma liderança política forte acima do estado de direito voltada ao apoio da negação dos direitos básicos aos cidadãos árabes e a subestimação da importância da democracia e da paz como objetivos nacionais.
Entretanto, a educação marcial e patriótica em questão não é aceita de modo unânime e pacífico no país, porquanto existem manifestações de resistência. Movimentos feministas condenam a superabundância de símbolos e cerimônias do Exército nas escolas bem como a sociedade israelense que naturaliza a participação militar entre os jovens. Organizações docentes já expediram notas apelando para que o sistema educacional não mais permaneça a serviço de fins políticos extremistas. Representantes de partidos de esquerda também tem ocupado a tribuna para fazer críticas contundentes.
Outra ocorrência que ajuda a dificultar a generalização do nacionalismo é a presença de instituições educativas norteadas pela gestão democrática. Yaacov Hecht é o educador que no transcorrer deste século criou um instituto para orientar pesquisas e formar professores, fundou uma escola em Hadera de perfil democrático e apoiou o surgimento de outras dezenas delas em várias cidades. Nelas todas as decisões são tomadas de modo conjunto, principalmente as relativas ao uso do orçamento e ao funcionamento diário. Neste processo participam alunos, pais, professores, funcionários e representantes da comunidade. Juntos decidem como e onde investir, respeitando os projetos individuais de cada estudante e as necessidades grupais. Existe um comitê disciplinar composto por todos os atores escolares que tem a tarefa de julgar os casos de desrespeito às normas estabelecidas. Cada estudante tem o direito de escolher o que e como aprender, sendo que a função dos professores é de fornecer o apoio pedagógico necessário para que todos os discentes sejam capazes de atingir os objetivos propostos.
Se encontra presente ainda mais um vigoroso obstáculo, ou seja, a globalização neoliberal. Como muitos sabem o neoliberalismo decadente e moldador da globalização também fincou suas raízes em Israel. De modo parecido a outras regiões do planeta, na década de oitenta do século passado começou a ocorrer uma transposição do modelo desenvolvimentista para o modelo neoliberal liderada pelos tecnocratas instalados em agências estatais. A parir de então, os sucessivos governos inclinaram-se a maximizar o papel do setor privado na economia, um acontecimento que provocou impactos nas relações políticas e sociais inclusive na vida dos palestinos.
Dentre outras bandeiras, os aficionados da ideologia neoliberal apregoam que cabe ao governo a tarefa de facilitar o processo de mercantilização de todas as coisas. Defendem, que a figura do cidadão deve ser substituída pela figura do consumidor. Pretendem criar e legitimar um outro consenso assentado nos valores empresariais, ou seja, na mensurabilidade, na competividade, no lucro, na meritocracia, no individualismo e no empreendedorismo. Portanto, o escopo primordial é modificar a cultura vigente e incutir na subjetividade das pessoas os valores do mercado. Não é necessário fazer nenhuma atividade analítica para inferir que o ideário neoliberal não se coaduna com as concepções patrióticas e nacionalistas tradicionais que se encontram estabelecidas desde há muito tempo. Ademais, os próprios preceitos liberais relativos à ampla liberdade do indivíduo e a outorga e garantia de direitos, norteadores do Estado israelense, também revelam tal dissonância.
Por sua vez, o avanço da globalização também causa sérias dificuldades. Com efeito, desde há um bom tempo Israel, que é carente em recursos naturais, vem buscando compensação por meio do incremento da área tecnológica onde se encontra consolidado nos primeiros lugares do mundo. Na Nasdaq, templo da alta tecnologia, centenas de empresas judias se encontram muito bem cotadas. É muito dinâmico no comércio internacional haja vista que tem acordos com a União Europeia, a Associação Europeia de Livre Comércio, os Estados Unidos da América do Norte e o Brasil.
O crescente e consolidado intercâmbio do país com outras nações do planeta o levou também a estabelecer barganhas com Estados anteriormente considerados como inimigos, por meio dos Acordos de Abraão assinados em 2020 com Bahrein, Emirados Árabes, Marrocos e Sudão. Embora o regime teocrático iraniano comprometido com a expansão de sua influência regional tenha servido como um elemento estimulador, o motivo mais importante se encontra relacionado à era pós-petróleo. A provável perda de relevância das atividades petrolíferas levou os árabes a buscar parcerias na área tecnológica. Em decorrência, centenas de milhares de empresários e turistas israelitas já viajaram para estes países aproximando povos e culturas anteriormente nunca visto. Essa bem sucedida convivência externa contrasta com a execrável ausência de camaradagem interna e pode vir a alterá-la futuramente. Não pode ser esquecido também que a globalização provoca a contenção dos Estados nacionais e tende a fragilizar sua soberania e autonomia principalmente por causa da assinatura de inúmeros acordos internacionais.
Há alguns anos a influência da globalização levou as autoridades educacionais do país a implementarem o projeto denominado Educação Para a Cidadania Global, que visa oferecer oportunidades para os alunos perceberem cada vez mais as conexões globais, aprenderem a utilizá-las, adquirirem a habilidade de formar parcerias com outras pessoas ao redor do mundo transcendendo a linguagem, a cultura e as fronteiras geográficas. Ao introduzir questões globais nas aulas de educação cívica do ensino médio almeja-se fazer com que os alunos vejam a humanidade como um todo, proporcionar a eles os estímulos necessários para se transformarem em cidadãos cosmopolitas, capacitá-los como líderes globais dotados de um senso de solidariedade ultrapassador das fronteiras nacionais e comprometidos com a moldagem de uma nova ordem internacional. Sem dúvida alguma é uma educação totalmente avessa ao militarismo cultural e ao cidadão ufanista ainda hegemônicos, mas com grande chance de sofrer abalos consideráveis e irreversíveis no decorrer do tempo.
Derradeiramente, acrescente-se as graves e recorrentes acusações internacionais contra o país, tais como a da União Europeia sobre as demolições em Jerusalém e a anexação do Vale do Jordão, a da Promotoria do Tribunal Penal Internacional que elaborou um inquérito formal sobre a situação da Palestina e a do Secretário Geral da Organização das Nações Unidas que acusou as forças israelitas de terem matado e ferido centenas de crianças. Portanto, parece certo que todos os fatores adversos aqui elencados constituem barreiras significativas à continuação dessa cabulosa e extemporânea sociedade nacionalista.
Antonio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em Educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes).