Nagorno-Karabakh entre Armênia e Azerbaijão
Atualmente, o “Jardim Negro” (modo pelo qual o nome Nagorno-Karabakh pode ser traduzido do turco) é um território oficialmente reconhecido como pertencente ao Azerbaijão, embora ainda seja habitado por uma maioria de armênios. Em 27 de setembro de 2020 reiniciou-se a guerra entre Armênia e Azerbaijão, país rico em petróleo, pela disputa do território
Cruzamento de continentes e civilizações, mosaico de povos, tabuleiro do xadrez geopolítico de impérios do mundo atual e do passado, Nagorno-Karabakh, o enclave localizado entre a Armênia e o Azerbaijão voltou a chamar a atenção do mundo.
No decorrer da história o território tornou-se conhecido por se tratar de uma encruzilhada de impérios que travaram múltiplos conflitos nas estepes da Eurásia. Tornando-se ainda mais complexo quando incorporaram ali a inépcia da guerra. O território era originalmente considerado uma terra armênia. Nos séculos IV-II A.C a região pertencia a Grande Armênia e a província tinha o nome de “Artsakh”. A vida e cultura do povo armênio floresceram ali durante séculos.
Atualmente, o “Jardim Negro” (modo pelo qual o nome Nagorno-Karabakh pode ser traduzido do turco) é um território oficialmente reconhecido como pertencente ao Azerbaijão, embora ainda seja habitado por uma maioria de armênios. A partir de 1747 os armênios de cultura ortodoxa cristã passaram a conviver nessa terra com os mulçumanos de origem turco-otomana e azerbaijana.
Um conflito pelo controle da região se arrastou ao longo dos tempos. Até que com a criação da União Soviética pretendeu-se fazer com que esse território pudesse ser governado por dois países historicamente em conflito, mas naquela altura, “conciliados” no interior das repúblicas socialistas.
Devido a concepção de mundo engendrada no interior da URSS, um enclave historicamente disputado entre Armênia e Azerbaijão pertencer oficialmente ao Azerbaijão, mesmo sendo povoado majoritariamente por armênios, não foi compreendido como um grande problema. Tendo em vista que no interior da URSS as diferenças religiosas e culturais pré-soviéticas não eram computadas enquanto determinações predominantes.
“Congelamento” do conflito
No ano de 1920, os bolcheviques começaram a enfrentar seus problemas internos voltando a atenção de Moscou para as regiões circunvizinhas da antiga Rússia. Armênia e Azerbaijão foram sovietizados com a ajuda dos comunistas locais de ambos os países, o que proporcionou uma aparente “paz na região”. Os problemas mais complexos que os soviéticos teriam que resolver eram as disputas territoriais locais.
Os líderes comunistas armênios e azerbaijanos tentaram constantemente solucionar o problema em torno de Nagorno-Karabakh reivindicando a intromissão de Moscou. Ambas as repúblicas enviaram dezenas de cartas ao Comitê Central exigindo que o território em disputa fosse transferido a elas e caso isto não ocorresse, as repúblicas ameaçavam se desligar do novo governo instaurado a partir da Revolução de Outubro de 1917.
A República de “Artsakh” (ou Nagorno-Karabakh) foi anexada ao Azerbaijão por Stalin em 1923. Post Festun podemos dizer que a anexação realizada no interior da URSS, que “desconhecia” as diferenças étnicas e culturais, pavimentou o terreno para no porvir um barril de pólvora inevitavelmente explodir.
Antes mesmo do colapso da URSS, Armênia e Azerbaijão já travaram um conflito bélico em lados opostos da trincheira. A guerra iniciou-se em 1988, ainda no interior da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas quando a Perestroika de Mikhail Gorbachev, entre outras coisas, “descongelou” a discussão de temas anteriormente proibidos por Moscou.
No ano de declínio da URSS, Nagorno-Karabakh tinha uma população composta de xiitas azeris (azerbaijanos) e cristãos ortodoxos (armênios). Se na época da criação da autonomia de Nagorno-Karabakh, os armênios representavam 90% da população local, então, na época do colapso da URSS, eles representavam 76%.
Em 1991 a República de Nagorno-Karabakh declarou sua independência que não foi reconhecida pela “comunidade internacional” e nem pela própria Armênia. Por outro lado, o exército do Azerbaijão não conseguiu estabelecer controle sobre a região.
Em 1993 a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou quatro resoluções incumbindo a retirada da Armênia do que fora compreendido como território do Azerbaijão. Esse é o fundamento da estratégia de Baku, capital do Azerbaijão, para reiniciar uma ofensiva contra aquilo que considera ser um “exército estrangeiro” ocupando 20% de suas terras. Por outro lado, para Erevan, capital da Armênia, as resoluções da ONU têm peso nulo e, ademais, não têm consequências, tendo em vista que Nagorno-Karabakh acolhe uma população majoritariamente armênia que almeja tornar-se independente do Azerbaijão.
Com a mediação da Rússia, o conflito foi “congelado”, mas não resolvido. Em 1994 a guerra terminou gerando um saldo sombrio de 30 mil mortos e cerca de um milhão de feridos. Desde então, a região se configurou décadas como uma área cinzenta – uma espécie de terra de ninguém. As hostilidades ativas cessaram, mas ocasionalmente ocorrem confrontos na linha de contato, como em 2016, cujo combate durou por quatro dias.
O tabuleiro geopolítico atual
Em 27 de setembro de 2020 reiniciou-se a guerra entre Armênia e Azerbaijão, país rico em petróleo, pela disputa do território. Ainda não podemos declarar com certeza quem iniciou os conflitos, pois ambos os países se acusam reciprocamente e desde o início das hostilidades decretaram lei marcial.
Atualmente, sem a mediação da URSS, a guerra ganha outras formas e envolve potências regionais como o Irã, a Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), por meio da presença ativa da Turquia. Embora exista um tabuleiro amplo de personagens na circunferência desse conflito, a Rússia é a o principal ator internacional nessa região.
Os Estados Unidos e a União Europeia não declararam apoio a nenhum dos lados envolvidos no conflito e junto à Rússia solicitaram um cessar-fogo imediato. Embora a Rússia tenha uma base militar na Armênia com mil soldados, tudo parecia indicar que Vladimir Putin não iria entrar em cena de modo tão explícito como vem atuando Erdogan.
A Rússia e o Irã, país vizinho ao Azerbaijão, não podem ganhar absolutamente nada com o desenrolar dessa guerra. O conflito preocupa ambos os países pois há ali a potencialidade de um transbordamento de suas fronteiras, levando o conflito a espalhar-se por seus territórios.
Cabe lembrar que a Rússia faz parte da Organização da Conferência Islâmica, que agrega 57 Estados mulçumanos. O país é composto por 15% de mulçumanos e tem povos originários de suas 21 repúblicas autônomas que professam a fé na religião islâmica. Vladimir Putin já chegou afirmar publicamente que a Rússia “de certa forma, integra o mundo muçulmano”.
Desde os anos da antiga URSS os russos já se comportavam como aliados dos Estados árabes anti-imperialistas e de perspectiva socialista. Com a queda do muro de Berlim, Moscou vem buscando reestabelecer relações políticas com países como o Irã e a Síria, e tentando somar nessa amálgama a Arábia Saudita, o Egito e a Turquia, os quais são parceiros comerciais e aliados políticos dos Estados Unidos há muito tempo.
O sultão neo-otomano vive de guerras
Diferente de todos os países envolvidos indiretamente no conflito, a Turquia tomou partido e vem contribuindo ativamente nessa guerra em aliança com Baku. “Todos devem saber que as relações entre Turquia e o Azerbaijão são as de dois países, mas um só povo”, disse o ministro da Defesa da Turquia, Hulusi Akar, após reunião com o presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev.
Segundo jornais armênios, militares turcos comandam as ações em Astarkh. Soma-se ao poderio militar turco os soldados sírios pertencentes aos grupos que lutaram ao lado dos turcos contra Bashar al-Assad na guerra da Síria. Erevan acusa Ancara de ter contratado 4 mil jihadistas na Síria para defender os interesses da maioria xiita do Azerbaijão.
A Turquia nega a sua participação nos conflitos nesses termos, apesar de admitir publicamente que continuará apoiando o Azerbaijão no desenrolar da guerra. A relação entre os turcos e o Azerbaijão vem de tempos longínquos, são etnicamente o mesmo povo e ambos professam a mesma fé.
Por outro lado, fazem muitos séculos a animosidade entre Armênia e Turquia. Cuja a máxima expressão pode ser exemplificada com o genocídio armênio iniciado em 1915 que se desdobrou até 1922 com um milhão de armênios mortos. Genocídio que não é reconhecido por boa parte da comunidade internacional, incluindo o próprio Brasil.
Ora, sabemos que a Turquia sempre esteve ao lado de Baku quando o assunto girava em torno de Nagorno-Karabakh. Então, por que exatamente agora, Erdogan se dispõe inteiramente nessa guerra contribuindo militarmente e até mesmo se apresentado como um personagem na mesa de negociações?
Devemos observar com mais cuidado a doutrina exterior turca, atualmente trata-se, pois, de uma espécie de tentativa de “revificar o império Otomano” de outrora. A doutrina “neo-otomana turca” busca recuperar a influência geopolítica na região. E nos dias de hoje, o interesse do país é de se posicionar como líder regional.
Nos últimos anos Ancara envolveu-se em diversos conflitos em países vizinhos como sucedeu na Síria, mas também se preocupou em marcar presença em países longínquo, como podemos observar na guerra da Líbia. Sem contar as incursões regulares no território iraquiano com o objetivo de combater as forças curdas. Do mesmo modo, não poderíamos deixar de observar as tensões que Ancara vem criando com seus vizinhos no Mediterrâneo, em especial, com a Grécia pela disputa sobre a exploração de hidrocarbonetos na região. E, mais recentemente, sua retomada em direção ao Cáucaso Oriental.
No entanto, a Turquia teria forças suficientes para atuar em diferentes fronts? Os riscos de uma extensão demasiada são reais, mas ao mesmo tempo é preciso pontuar que o governo de Erdogan mobiliza todas essas frentes de atuação e, concomitante a isso, mobiliza também a população turca para as apoiar. Essas atuais extensões da “doutrina neo-otomana turca” são importantes, uma vez que serve para desviar a atenção dos turcos sobre a situação econômica do país, que se deteriora cada vez mais.
A economia turca encontra-se em uma decadência absoluta, com inflação altíssima e a lira (moeda turca) em depreciação. O Azerbaijão tem uma riqueza relevante em petróleo que pode tornar-se disponível à Ancara. O que faz, justamente, o setor militar turco se mobilizar ao Cáucaso Oriental fazendo a política “neo-otomana turca” rufar os tambores da guerra em Nagorno-Karabakh.
Da janela aberta na Duma de Moscou
Podemos também observar os conflitos em Nagorno-Karabakh a partir do ângulo das “manobras da Otan”. Talvez a tentativa de intensificação dos conflitos nessa região não seja algo exclusivamente oriundo dos desejos de Erdogan. Como a Turquia é um país membro da Otan, potencialmente existiria ali um movimento tático de querer levar a atenção de Moscou ao Cáucaso, enquanto nessa zona pós-soviética explodem manifestações e diferentes níveis de conflitos.
Todo emaranhado geopolítico pode ser assistido a partir de um grande janela aberta na Duma de Moscou. Visto desse ângulo não seria difícil vislumbrar que os impasses em Nagorno-Karabakh tratear-se-ia de um golpe geopolítico da Otan contra a Rússia através de um dos seus membros, a Turquia.
Depois da (re)anexação da Crimeia pelos russos em 2014, a Ucrânia busca aliados para derrubar a Rússia. Ainda ao leste há um impasse sem perspectiva de resolução na Bielorrússia. A Covid-19 retornou com força nos países europeus e não esqueçamos a “ameaça” que o Nord Stream significa para a Otan. Uma das hipóteses estaria em fazer com que a Rússia gaste suas energias com o drama entre Armênia-Azerbaijão empurrando o kremlin a se inclinar para o Cáucaso.
A Rússia, que caminha sobre a navalha da geopolítica, começou perdendo esse novo jogo no tabuleiro da geopolítica atual. Mas, na madrugada do dia 09 de outubro, após dez horas de negociações o chanceler russo Serguei Lavrov, anunciou a trégua dos conflitos. As negociações mediada pela Duma de Moscou chegou ao acordo para o cessar-fogo em Nagorno-Karabakh.
O acordo realizado consistiu na aceitação de troca de prisioneiros de guerra e devolução dos corpos das vítimas, um total de 400 mortos, no confronto. Até o momento, todos os detalhes do acordo ainda não foram divulgados integralmente.
Por mais que não se possa responsabilizar Ancara por esses conflitos, os quais têm raízes históricas profundas, é verdade que sem a participação ativa da doutrina “neo-otomana turca” para suas relações exteriores, essa guerra teria minúsculas possibilidades de se ampliar. Exatamente, devido à falta de interesse das potências circunvizinhas: Irã e Rússia.
Embora até o momento o kremlin tenha parecido virar o jogo com o anúncio de cessar-fogo, no entanto, Moscou não deve esquecer um ditado turco antigo: “o sultão otomano nunca dorme”.
Virgínio Gouveia é doutorando em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com estadia em andamento no Instituto de Filosofia de Moscou/ Rússia – Academia de Ciências da Rússia (Rossiyskaya Akademiya Nauk, Ran).