Não é possível ser internacionalista sem ser anti-imperialista
Em tempos passados, toda a esquerda compreendia como progressivas as reivindicações de um programa nacional nos países periféricos que sofrem a opressão imperialista. Mas não nos países centrais que dominam o mundo, porque, nestes, o nacionalismo equivalia – e continua sendo indivisível dela – à defesa de um imperialismo contra outro
O nacionalismo é hoje o vocabulário de uma extrema direita neofascista em inúmeros países. “Brasil acima de tudo” foi um dos slogans que levaram Bolsonaro à vitória eleitoral. Esse discurso tem uma história.
O nacionalismo é a ideologia do Estado-nação. Ela nos remete a uma tradição ideológica que nasceu com a Revolução Francesa. Conquistou peso político de massas na Europa, em disputa contra o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo nas últimas décadas do século XIX.
O nacionalismo foi a ideologia que, em distintas versões, turbinou a legitimação dos imperialismos modernos e conduziu a humanidade à beira do abismo da destruição da vida civilizada, em guerras totais, por duas vezes no século XX.
A força do conceito de nação na percepção burguesa do mundo residia na ideia de que o Estado deveria ser a “expressão de um povo”, e cada povo teria uma tradição própria, um caráter singular e um destino único. Portanto, alguns povos, ou até raças, como então se dizia, seriam superiores, e outros, inferiores. Quanto mais exaltado o nacionalismo, mais formidável seria sua história, mais extraordinário seu caráter e mais grandioso seu destino. O nacionalismo dos países centrais sempre foi racista e reacionário. Sua versão totalitária foi o nazifascismo.
A esquerda já foi internacionalista. Em tempos passados, toda a esquerda compreendia como progressivas as reivindicações de um programa nacional nos países periféricos que sofrem a opressão imperialista. Mas não nos países centrais que dominam o mundo, porque, nestes, o nacionalismo equivalia – e continua sendo indivisível dela – à defesa de um imperialismo contra outro.
Progressiva é toda luta que, embora parcial ou incompleta quando em comparação com o programa socialista, se apoia em uma dinâmica historicamente justa. A esquerda apoiava a luta nacionalista nos países periféricos e, ao memo tempo, denunciava as ambições nacionalistas nos países centrais, ou seja, era anti-imperialista. A II Internacional explodiu quando o nacionalismo contagiou suas fileiras e as sociais-democracias francesa e alemã apoiaram suas respectivas classes dominantes, no alvorecer da Primeira Guerra Mundial.
Acontece que, sobretudo depois da restauração capitalista, nem toda esquerda é socialista. E, claro, nem toda esquerda socialista é marxista. Há uma esquerda que defende a regulação da economia de mercado, com políticas públicas que ofereçam compensações para diminuir o aumento da desigualdade social. Há outra esquerda que defende o socialismo, mas é hostil ao projeto revolucionário. E há uma esquerda anticapitalista e internacionalista. Entre esses três grandes blocos, presentes na maioria dos países mais urbanizados e industrializados, há várias formas híbridas intermediárias.
Não obstante, a necessidade da luta anti-imperialista não diminuiu. Isso hoje significa, por exemplo, defender a Venezuela contra a iminência da precipitação de uma guerra civil incentivada pelos Estados Unidos e pelo Grupo de Lima, independentemente de uma posição energicamente crítica em relação ao governo Maduro.
O marxismo sempre se distinguiu por considerar que os antagonismos de classe seriam os conflitos decisivos no mundo contemporâneo, embora não fossem, evidentemente, os únicos. Inúmeras lutas democráticas desenvolvem-se simultaneamente e, incontáveis vezes, inseparáveis do enfrentamento entre capital e trabalho: lutas democráticas contra regimes autoritários, tirânicos, ditatoriais; lutas democráticas contra as opressões racistas, machistas, lgbtfóbicas; lutas democráticas pela defesa de um programa ambiental contra a iminência de uma catástrofe ecológica provocada pelo aquecimento global; e, não menos importante, a luta democrática das nações oprimidas pelo direito à libertação nacional. Todas essas lutas são progressivas e devem ser incorporadas ao programa dos socialistas.
O marxismo sublinhou que, se a luta entre as classes era um combate que se iniciava dentro de fronteiras, ela se decidiria na arena mundial. Toda revolução socialista nacional, mais cedo ou mais tarde, teria de medir forças com a contrarrevolução internacional. Essa bússola é o fundamento granítico do internacionalismo. O nome desse programa é revolução permanente.
A ordem imperialista mundial não pode ser mantida indefinidamente sem guerra
Essas conclusões repousam em uma análise de nossa época. Em perspectiva histórica, a obra mais importante do capitalismo foi impulsionar a formação do mercado mundial, liberando forças produtivas até então inimagináveis. Mas essa façanha teve um custo catastrófico para a humanidade: a luta pelo domínio imperialista do mundo. Alguns poucos Estados controlam, comandam e oprimem a imensa maioria dos países e impõem sua ordem. E disputam para manter suas posições de poder, ameaçando regularmente a paz mundial.
O nome desse sistema é ordem mundial imperialista. Ela não pode ser preservada sem guerras. O capitalismo é um obstáculo intransponível para a tendência mais profunda do desenvolvimento histórico que o próprio capital potencializou. Essa tendência é somente uma possibilidade, não um destino: a crescente unificação da humanidade em uma civilização mundial. Mas o capitalismo não pode unificar a humanidade. O socialismo é o nome desse programa. Ser de esquerda é ser anti-imperialista.
Quando dizemos que a ordem mundial se estrutura – pelo menos nos últimos cem anos – como uma ordem imperialista, não estamos afirmando que exista um governo mundial. O capitalismo não conseguiu superar as fronteiras nacionais de seus Estados imperialistas. O Brexit é mais uma demonstração de que permanece intensa a competição entre as burguesias dos países centrais na disputa por espaços econômicos e arbitragem de conflitos políticos. Não se confirmou a hipótese de um superimperialismo, discutida na época da II Internacional: uma fusão dos interesses imperialistas dos países centrais. O ultraimperialismo nunca foi senão uma utopia reacionária.
Turbulências crescentes dentro do sistema internacional de Estados
Seria obtuso não reconhecer que as burguesias dos principais países imperialistas conseguiram construir um centro no sistema internacional de Estados, depois da destruição quase terminal da Segunda Guerra Mundial. Institucionalmente, ele se expressa ainda hoje, 25 anos depois do fim da União Soviética, nas organizações do sistema ONU e Bretton Woods – portanto, por meio do FMI, do Banco Mundial, da OMC e no BIS de Basileia – e, finalmente, no G7. A contrarrevolução aprendeu com a história.
No centro de poder da ordem imperialista está a Tríade: Estados Unidos, União Europeia e Japão. União Europeia e Japão têm relações associadas e complementares com Washington e aceitam sua superioridade desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A mudança de etapa histórica em 1989/1991 não alterou esse papel da Tríade e, em especial, o lugar dos Estados Unidos.
Embora sua liderança tenha diminuído, ainda prevalece. A dimensão de sua economia com um PIB acima de US$ 21,5 trilhões (o PIB mundial está estimado em US$ 88 trilhões; o da China, em US$ 14 trilhões),1 o peso de seu mercado interno, o apelo do dólar como moeda de reserva ou entesouramento, a superioridade militar e a capacidade de iniciativa política permitiram, entre outros fatores, apesar de uma tendência de debilitamento, manter sua posição de liderança no sistema de Estados. O papel de Trump é preservar esse lugar, em especial diante da China.
Nenhum Estado da periferia passou a ser aceito no centro do sistema nos últimos 25 anos. China e Rússia são Estados que preservaram a independência política, embora tenham restaurado o capitalismo, recorrendo inclusive a endividamento no mercado mundial, e exercem papel protoimperialista em suas regiões de influência.
No entanto, mudanças ocorreram na inserção dos Estados da periferia. Alguns têm uma situação de dependência maior, e outros, de dependência menor. O que predominou, depois dos anos 1980, foi um processo de inserção subalterna, ou “recolonização”, ainda que com oscilações. Há uma dinâmica histórico-social em curso, e ela é inversa daquela que predominou entre 1945 e 1975, depois da derrota do nazifascismo, quando a maior parte das antigas colônias na periferia conquistou parcialmente a independência política, ainda que no contexto de uma condição dependente ou mesmo semicolonial.
A maioria dos Estados que conquistaram independência política na onda de revoluções anti-imperialistas que se seguiram à vitória da revolução chinesa, coreana e vietnamita perdeu essa conquista: Argélia e Egito, ou Líbia, Iraque e Síria são exemplos, entre outros, dessa regressão histórica, posterior a 1991. Alguns regrediram à condição de protetorados. Ainda existem, porém, governos independentes, como Venezuela, Irã e Cuba.
Não se pode ser internacionalista pela metade
Uma análise que equaciona os conflitos entre as classes nos países ou continentes decisivos ignorando o lugar e a política dos Estados na situação mundial diminui a força da contrarrevolução. O caminho inverso é ainda mais desanimador. Quando se subestimam os conflitos entre as classes em cada sociedade, a análise redunda, fatalmente, em avaliações superficiais, exagerando a força da contrarrevolução.
Esse segundo caminho foi percorrido por boa parte da esquerda mundial no século XX, sobretudo aquela que considerou que o destino da causa socialista estava indissoluvelmente associado ao futuro do governo da União Soviética e seus aliados. Infelizmente, o internacionalismo quase desapereceu.
Esse “nacionalismo da URSS”, ou stalinismo, não deve ser confundido com o internacionalismo e merece ser denominado de campismo socialista. A existência de países onde a propriedade privada dos grandes meios de produção foi expropriada, ainda que seus regimes políticos fossem aberrações burocráticas, um híbrido histórico, necessariamente transitório, colocou a esquerda internacionalista, no pós-guerra, em uma situação paradoxal e desconcertante. Ela deveria defender a natureza social dos Estados diante da pressão imperialista pela restauração capitalista, mas, ao mesmo tempo, apoiar as mobilizações dos trabalhadores pelas liberdades democráticas. Ou seja, uma defesa condicionada ao signo de classe do conflito, algo muito mais intricado do que uma defesa incondicional ou uma oposição incondicional. A oscilação do pêndulo foi sempre muito complexa, originando desequilíbrios: stalinofilia ou stalinofobia.
O mesmo problema político se coloca hoje diante da Venezuela ou de Cuba. A defesa de países independentes perante a agressão imperialista não desobriga da crítica contra esses regimes. O desafio é a análise concreta de qual é, em cada conjuntura, o maior perigo imediato para os trabalhadores. Porque nunca é possível lutar contra todos ao mesmo tempo. Os dilemas do internacionalismo são complicados.
Só uma esquerda internacionalista, porém, é digna de futuro.
*Valerio Arcary é professor titular de História do IFSP, doutor pela USP, autor de O martelo da história (Sundermann, 2016), entre outros livros, e militante do Psol.