Não há perspectiva de normalidade para quem sempre esteve na barbárie
Ainda que parte da sociedade esteja vislumbrando um horizonte de retorno com o avanço da vacina, há nessa volta uma verdade invisibilizada: não há perspectiva de normalidade para quem sempre esteve na barbárie. A pandemia nas prisões acumulou – e segue amontoando – incontáveis violações de direitos básicos.
“Como eu fiquei sabendo que meu filho teve Covid-19? Foi preciso eu ir por mais de três semanas no presídio atrás de informações”. “As pessoas saíam dali para ir para o médico, não voltavam. Então, ninguém sabia se tinha morrido, se estava vivo, se transferiram, se ganhou a liberdade”. “A realidade é uma só: fomos deixados para morrer. Esquecidos”. Esses são alguns relatos de sobreviventes do sistema prisional e familiares de pessoas privadas de liberdade sobre a realidade da pandemia nas prisões que constam na campanha Deixados para Morrer.
Ainda que parte da sociedade esteja vislumbrando um horizonte de retorno com o avanço da vacina, há nessa volta uma verdade invisibilizada: não há perspectiva de normalidade para quem sempre esteve na barbárie. A pandemia nas prisões acumulou – e segue amontoando – incontáveis violações de direitos básicos.
Desde 2020, a Rede Justiça Criminal (RJC), junto à sociedade civil organizada, movimentos anticárcere, familiares e defensorias públicas têm articulado diversas ações para o enfrentamento da doença no sistema prisional e socioeducativo. Foi necessária uma série de articulações, como ações diretas para o combate à fome, provocação de órgãos competentes para fiscalização e garantia mínima de acesso à saúde, denúncias sobre o aumento de tortura, além do combate à absurda ideia de usar contêineres como cela.
E quem saberá quantas mortes ocorreram no sistema prisional?
De acordo com o projeto Deixados para Morrer, a inconsistência de dados entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Secretarias de Administração Penitenciária (SAP) e Secretarias de Estado de Administração Penitenciária (Seap) chama atenção. No Rio de Janeiro, por exemplo, o CNJ contabilizou 19 mortes até o final de julho de 2021. Já a Seap, 29 mortes. Denúncias de familiares indicam que o número pode ser consideravelmente maior. O projeto também analisa dados da Bahia, Pernambuco e São Paulo.
Com a superlotação (realidade de 72,15% das prisões brasileiras), não houve isolamento possível. A falta de água também foi uma questão – um dos exemplos é o Conjunto Penal de Serrinha, na Bahia, onde não há descarga nos banheiros e os custodiados recebiam apenas três baldes de água para banho e descarga na cela.
Já a interrupção de visitação e comunicação com familiares fez com que um dos únicos elos de fiscalização, já que mecanismos de combate e prevenção à tortura estão sendo desmontados, fosse também enfraquecido. Após um ano e três meses de pandemia, algumas unidades reabriram a visitação e mães relataram não reconhecer seus filhos por adoecimento mental e físico.
É importante colocar que, apesar de figurar no imaginário popular a ideia que pessoas presas são perigosas, a grande maioria é acusada de crimes sem violência – e um terço da população carcerária não foi sequer julgada. Não podemos esquecer que, nas últimas semanas, vieram à tona uma série de casos de pessoas presas por fome no Brasil. Uma mãe acusada de furtar miojo, dois homens que ficaram presos por mais de dois anos acusados de “furto” de alimentos vencidos que haviam sido descartados por um supermercado – casos que demonstram a quem e a que o sistema de justiça penal no Brasil serve.
A verdade é que os três poderes brasileiros – Executivo, Legislativo e Judiciário – foram cúmplices na maneira vergonhosa com que enfrentaram a pandemia de Covid-19 no sistema prisional.
Especificamente quanto ao Judiciário, em levantamento feito pela RJC, foram coletadas diversas sentenças, nas cinco regiões do país, que confirmam a relutância de magistrados e magistradas em reconhecer o direito à vida e à dignidade pertencente a toda pessoa presa. De argumentos vagos e intangíveis como o de que a pessoa “estaria se aglomerando”, até afirmações de que “o preso estaria mais protegido dentro do que fora dos presídios”, as decisões judiciais atestam o perfil marcadamente conservador e alheio à realidade social que permeia a magistratura brasileira. São estes os mesmos juízes e juízas que desconsideram que a clientela preferencial do sistema penal tem cor e classe pré-definidos e que preferem se esconder por detrás de sentenças rebuscadas e moralistas a fim de ignorar sua responsabilidade e conivência com o extermínio de pessoas em curso.
Diante de um Estado que banaliza mortes de determinados grupos sociais, torna-se ainda mais importante a vigilância e resistência constantes contra abusos e violações infelizmente históricos nos estabelecimentos de privação de liberdade.
A opacidade de dados oficiais mais exatos sobre a disseminação e efeitos da Covid-19 nos sistemas prisional e socioeducativo ferem o direito da sociedade à memória e veracidade dos fatos. Se é certo que ainda faltam elementos para traçar um panorama completo sobre os reais impactos de uma pandemia ainda em curso, também é certo que ela aprofundou ainda mais as mazelas causadas por uma política de encarceramento em massa. Resta saber como a história irá cobrar daqueles e daquelas que preferiram se calar diante das milhares de mortes de quem foi deixado para morrer.
Janine Salles de Carvalho e Giovanna Preti, respectivamente secretária executiva e assessora de comunicação da Rede Justiça Criminal.