“Não se envergonhe por querer a Lua”
A crise da dívida, que está varrendo alguns países europeus, toma um contorno inédito: nascida da escolha dos Estados de emprestar dinheiro p/ salvar os bancos, ela coloca, sem derramamento de sangue, os governos locais sob a tutela de instituições “isentas” do sufrágio universal, como a Comissão Europeia e o FMISerge Halimi
Eonômica, mas também democrática, a crise europeia levanta quatro questões principais. Por que as políticas cujo fracasso era evidente geraram manifestações particularmente ferozes em quatro países (Irlanda, Espanha, Portugal e Grécia)? Por acaso os arquitetos dessas escolhas são “médicos iluminados” para multiplicar por dez a dose do remédio após cada insucesso – previsível – dessas políticas? Nos sistemas democráticos, como explicar que populações vítimas de tais prescrições parecem não ter outra opção senão substituir um governo falido por outro ideologicamente igual e determinado a praticar a mesma “terapia do choque”? Enfim, é possível fazer de outra forma?
A resposta às duas primeiras questões aparece assim que nos familiarizamos com a verborragia publicitária sobre o “interesse geral”, os “valores partilhados da Europa”, o “viver em conjunto”. Longe de serem um disparate, muito pelo contrário, as políticas adotadas nessas circunstâncias são racionais. E essencialmente alcançam o objetivo, que não é acabar com a crise econômica e financeira, e sim colher os frutos, incrivelmente suculentos. A crise legitima, por exemplo, a supressão de centenas de milhares de postos de trabalho (na Grécia, a cada dez vagas liberadas pela aposentadoria, nove não serão reocupadas), o corte de benefícios e a redução da duração das férias remuneradas, a concessão de setores inteiros da economia nacional a serviço de interesses privados, o questionamento dos direitos trabalhistas, o aumento de impostos indiretos (os mais desiguais) e das tarifas dos serviços públicos, a redução dos reembolsos para tratamentos de saúde, enfim, a realização dos desejos mais profundos da sociedade de mercado. A crise se configura, na realidade, como uma providência aos liberais. Em “tempos normais”, qualquer dessas medidas levaria a combates sangrentos e incertos; em tempos de crise, todas essas iniciativas surgem de uma vez. Por que eles desejariam sair do túnel da crise quando o caminho em direção à Terra Prometida parece ser justamente esse?
No dia 15 de junho, os dirigentes da Irish Business e da Employers Confederation (IBEC), a organização patronal irlandesa, reuniram-se com representantes da Comissão Europeia, em Bruxelas, e pediram para a União Europeia (UE) fazer pressão sobre Dublin para que uma parte da legislação trabalhista irlandesa seja desmantelada imediatamente. Na saída da reunião, Brendan McGinty, diretor de relações industriais e de recursos humanos da IBEC, declarou: “Os observatórios internacionais sabem que nossas regras salariais atravancam a criação de empregos, o crescimento e a retomada da economia. Uma reforma de envergadura nas leis trabalhistas é o elemento central do programa que recebeu o aval da União Europeia e do FMI. Não é o momento de o governo se calar diante de decisões difíceis”.1 Ora, essas decisões não serão tão difíceis de ser tomadas, pois significam nada mais que a generalização da tendência à precarização do trabalho já em curso em alguns setores: “O teto das remunerações para os novos assalariados baixou cerca de 25% nos últimos anos, o que evidencia a resposta do mercado do trabalho à crise econômica e ao desemprego”.2 Assim, o aumento da dívida pública oferece à UE e ao FMI os argumentos para impor a Dublin a ordem tão sonhada pelo patronato irlandês.
Viva a crise
A regra parece aplicar-se em outros lugares, pois alguns dias antes, em 11 de junho, um dos editorialistas da revista The Economist sublinhava que “os gregos atentos às reformas enxergam a crise como a ocasião para o país voltar ao bom caminho. Eles elogiam em silêncio os estrangeiros que tomam atitudes mais radicais em relação a seus eleitos”.3 A mesma edição do periódico liberal contava também com uma análise do plano de austeridade da UE e do FMI infligido a Portugal. “Os homens de negócios julgam de maneira categórica que não é possível contornar um plano como esse. Pedro Ferraz da Costa, diretor de uma think tank patronal, considera que nenhum partido português teria sido capaz, nos últimos trinta anos, de propor um programa de reformas tão radical. E acrescenta que Portugal não deveria deixar passar uma oportunidade como essa”.4 Em resumo, viva a crise.
Trinta anos. Essa é a idade aproximada da democracia portuguesa, com seus jovens capitães que o povo cobria de flores para agradecer o fim de uma ditadura interminável e das guerras coloniais na África, a promessa de uma reforma agrária, campanhas de alfabetização, o fortalecimento do poder operário nas indústrias. A realidade, porém, é outra: a privatização da água e do correio; as “reformas” liberais da previdência, da saúde, da educação; a redução do seguro-desemprego, entre outras medidas. O Papai Noel aparece apenas para o patronato, e o pinheiro de Natal se curva cada mais com o peso dos presentes e enfeites, como a promessa do primeiro-ministro Passos Coelho de ir além das imposições da UE e do FMI. Ele quer “surpreender” os investidores.
“Sejam eles conscientes ou não, os dirigentes políticos servem quase exclusivamente aos interesses dos rentistas – aqueles com lucros exorbitantes a partir de suas fortunas, que emprestaram muito dinheiro no passado e hoje são protegidos contra perdas simplesmente transferindo-as aos outros”, analisa o economista norte-americano Paul Krugman. Segundo ele, as preferências desses detentores de capital se impõem naturalmente em função “das somas importantes investidas em campanhas eleitorais e do acesso que ganham aos dirigentes políticos, que muitas vezes passam a trabalhar para eles quando param de exercer funções públicas”.5 Na ocasião da discussão europeia em relação à recuperação financeira da Grécia, o ministro austríaco de Finanças, Mark Fekter, sugeriu que “os bancos não abusem dos lucros enquanto os contribuintes pagam pelas perdas”.6 Inocência tocante: após hesitar por 48 horas, a Europa deixou os “interesses dos rentistas” se imporem uma vez mais.
“Especialistas” e “analfabetos”
Aparentemente, a crise da dívida pública decorre de mecanismos “complexos” cuja compreensão exige entender as inovações permanentes da engenharia financeira: produtos derivados, bônus e spread(os famosos swaps de default de crédito, ou CDS, na sigla em inglês) etc. Essa sofisticação perturba a análise, ou antes a torna exclusividade de um pequeno círculo de “especialistas”, em geral os próprios beneficiados por esses mecanismos. Eles embolsam por conhecimento de causa, enquanto os “analfabetos” econômicos pagam e imaginam que se trata de um atributo do destino, ou de uma modernidade que os supera, o que dá no mesmo. Tentemos, pois, a simplicidade, ou seja, a política.
Em outros tempos, os monarcas europeus obtinham empréstimos dos doges de Veneza, dos mercadores florentinos, dos banqueiros genoveses. Ninguém podia obrigá-los a reembolsar; às vezes, eximiam-se da responsabilidade, o que resolvia o problema da dívida pública… Muito tempo depois, a jovem União Soviética comunicou que não devolveria as somas emprestadas e dilapidadas pelos czares: gerações de investidores ficaram com “empréstimos russos” sem valor algum nas mãos.
Mas outros meios, mais sutis, permitiam afrouxar o garrote do credor.7 Assim, a dívida pública britânica passou de 216% do Produto Interno Bruto (PIB) em 1945 para 138% do PIB em 1955; a dos Estados Unidos foi de 116% para 66% do PIB. Sem qualquer plano de austeridade, ao contrário. Sem dúvida, o desenvolvimento econômico impetuoso do pós-guerra e a riqueza nacional gerada nesse período absorveram automaticamente boa parte das dívidas. Mas isso não foi tudo. Os Estados reembolsavam um valor nominal que diminuía anualmente em relação ao índice da inflação. Quando um empréstimo contraído com uma taxa de juros anual de 5% é reembolsado com uma moeda que, a cada ano, valoriza-se 10%, a chamada “taxa de juro real” torna-se negativa e o devedor sai ganhando. Justamente, de 1945 a 1980 as taxas de juros reais foram negativas quase todos os anos na maior parte dos países ocidentais. Resultado: “Os poupadores depositaram seu capital nos bancos que emprestavam aos Estados Unidos com taxas inferiores à da inflação”.8 Assim, a dívida pública foi reabsorvida sem muito esforço. Nos Estados Unidos, as taxas de interesse real negativo geraram ao Tesouro norte-americano um montante equivalente a 6,3% do PIB por ano durante toda a década de 1945-1955.9
Por que os “poupadores” aceitaram a situação desvantajosa? Eles não tinham escolha. Em razão do controle de capitais e da nacionalização dos bancos, eles não podiam fazer outra coisa senão emprestar ao Estado, que se financiava dessa maneira.10 De acordo com essa lógica, as fortunas privadas não comprariam no mercado especulativo ações brasileiras indexadas à evolução do preço da soja nos três próximos anos… Restaria a fuga de capitais em malas de barras de ouro saindo da França em direção à Suíça às vésperas de uma desvalorização monetária ou de uma disputa eleitoral que a esquerda poderia vencer. E os defraudadores arriscaram aterrissar na prisão.
Nos anos 1980, o cenário econômico mudou. A escala móvel dos salários protegia a maior parte dos trabalhadores das consequências da inflação, enquanto a ausência de liberdade nas movimentações de capitais obrigava os investidores a se submeterem às taxas de juros negativas. A partir dessa época, passou a vigorar o contrário. A escala móvel dos salários praticamente desapareceu – na França, o economista Alain Cotta chamaria essa decisão capital, tomada em 1982, de “don Delors” (ao patronato). Ademais, entre 1981 e 2007 a inflação recorrente e galopante foi contida e as taxas de juros reais tornaram-se quase sempre positivas. Aproveitando a liberalização dos movimentos de capitais, os “poupadores” (esclarecemos que não se trata aqui da aposentada em Lisboa com conta no correio ou de um empregado de Tessalônica…) colocaram os Estados em concorrência e, segundo a famosa expressão de François Mitterrand, “ganham dinheiro dormindo”. Spread de investimento de risco sem risco! É necessário reforçar que a passagem da escala móvel dos salários com taxas de juros negativas para a queda acelerada do poder de compra com uma remuneração elevada do capital resulta na inversão total da distribuição social?
Novas ditaduras na Europa
E tudo isso parece não ser suficiente. Aos mecanismos que atualmente beneficiam o capital em detrimento do trabalho, a “tríade” (Comissão Europeia, BCE e FMI) decidiu somar a restrição, a chantagem, o ultimato. Estados dilacerados pelos socorros generosos dos bancos internacionais imploram empréstimos para fechar as contas do fim do mês, enquanto a tríade obriga-os a escolher entre a falência e a torneira liberal. A parcela da Europa que ontem bania as ditaduras de Salazar, de Franco e dos coronéis gregos hoje se encontra rebaixada a protetorados administrados por Bruxelas, Frankfurt e Washington. Missão principal: reembolsar os bancos.
Os governos desses Estados permanecem intactos, mas apenas para zelar pela boa execução das ordens e receber os eventuais escrachos da população que compreendeu que o sistema não se compadece perante os cada vez mais pobres. “A maior parte dos gregos compara a tutela orçamentária internacional a uma nova ditadura, após a dos coronéis entre 1967 e 1974”,11 sublinha Le Figaro. Como imaginar que a ideia europeia sairá fortalecida de tal camisa de força, de um juiz que se apropria de ilhas e praias para vendê-las ao capital privado? Desde 1919 e do Tratado de Versalhes, quem não conhece o nacionalismo destrutivo que esse sentimento de humilhação popular pode engendrar? E que ele é proporcional à multiplicação dessas humilhações?
O próximo diretor do BCE, Mario Draghi – vice-presidente da Goldman Sachs no momento em que esse banco de investimento ajudava a direita grega a maquiar as contas públicas12 –, dará ordens de “rigor” a Atenas, assim como seu predecessor. O FMI, que também opina sobre a Constituição francesa, solicitou a Paris a instituição de uma “regra de equilíbrio das finanças públicas”; e Nicolas Sarkozy atendeu. De sua parte, a França expressa o desejo de que, ao contrário de seus homólogos portugueses, os partidos gregos “se unam e formem uma aliança”; o primeiro-ministro François Fillon e José Barroso, presidente da Comissão Europeia, já tentaram convencer o dirigente da direita grega, Antonis Samaras. Jean-Claude Trichet, presidente do BCE, imagina que “as autoridades europeias têm direito de veto sobre certas decisões da política econômica nacional”.
Honduras criou zonas francas onde a soberania nacional não se aplica.13 Atualmente, a Europa encabeça a discussão de “temas francos” (socioeconômicos) – cujo debate entre partidos políticos dos países torna-se irrelevante porque são âmbitos de soberania limitada ou nula. A discussão dos partidos se concentra, então, nos “temas da sociedade”: burca, legalização da Cannabis, radares nas estradas, polêmicas do dia sobre frases mal-entendidas, gestos impacientes, palavrões de um político exaltado ou de um artista que bebeu muito. Esse cenário oficializa uma tendência observada há décadas: o deslocamento do poder político real a vácuos democráticos. Até o dia em que a indignação explode. Aqui estamos.
Mas a indignação pode estar desarmada se não tem conhecimento dos mecanismos que a incitaram. As soluções – virar as costas às políticas monetaristas que agravam a “crise”, anular parte dessa dívida, confiscar os bancos, domar as finanças, desmundializar, recuperar as centenas de bilhões de euros que o Estado perdeu sob a forma da diminuição dos impostos inigualitários (70 bilhões somente na França em dez anos) – são conhecidas. E as pessoas com uma formação em economia tão respeitável quanto a de Trichet, mas que não servem aos mesmos interesses que ele, já as detalharam.14
Assim, trata-se menos de um debate “técnico” e financeiro do que de um embate político e social. Certamente, os liberais caçoarão dos progressistas e dirão que reivindicam o impossível. Mas que fazem eles a não ser concluir o insuportável? Chegou o momento de lembrar a exortação que Jean-Paul Sartre emprestava a Paul Nizan: “Não se envergonhe por querer a Lua: ela é necessária”.15
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).