Negacionismo estatístico e apagão de dados
Nova gestão no governo federal levará anos para reconstruir sistemas de informação em áreas como a saúde e o controle de agrotóxicos
Uma das questões mais simbólicas e, ao mesmo tempo, perigosas, deixadas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro é o fato dele ter escondido o seu cartão de vacina, alvo de investigação pela Polícia Federal em um suposto esquema de falsificação. A vida pessoal de qualquer cidadão merece ser respeitada, mas seria possível um gestor público enfrentar uma pandemia e evitar um grande número de mortes sem utilizar do exemplo que podemos dar através dos nossos atos e gestos? A morte por Covid-19 de quase 700 mil brasileiras e brasileiros durante a gestão de Bolsonaro, segundo os dados oficiais, deixou marcas dolorosas em famílias e comunidades de todo o país.
Esconder o seu documento vacinal não foi, porém, uma atitude isolada de Bolsonaro. O desrespeito com os sistemas de informação, de um modo geral, foi a tônica do governante anterior, parte de uma verdadeira “política de desinformação” estabelecida durante os seus quatro anos de mandato. Vale mencionar, por exemplo, que o Grupo de Transição para o atual Governo Lula denunciou ter recebido dados confusos e incompletos, inclusive do Ministério da Saúde. O fato é que a gestão que se encerrou em 2022 foi negligente com a questão da informação em diversas áreas, incluindo a vacinação, política em que o Brasil costumava ser exemplo mundial, gerando um verdadeiro “apagão de dados”.
“É preciso criar uma política pública mais ampla de transparência com financiamento do Estado e o reinvestimento nas políticas setoriais. Como houve um desfinanciamento sistemático de todas as políticas públicas de interesse social nos últimos anos, a tendência é que as plataformas fiquem desatualizadas, os websites fiquem desatualizados, até mesmo saiam do ar… Porque essas plataformas de dados, como praticamente toda forma de tecnologia, é uma coisa que você precisa ir atualizando sempre e, conforme também o acesso vai se dando, o aperfeiçoamento tecnológico é necessário e isso tem um custo para a administração pública. Acaba que são fases da política pública de sistematização e organização de dados que perdem prioridade quando você tem muitos cortes acontecendo, então é uma questão também de desenho orçamentário, implementação e avaliação para aperfeiçoar progressivamente”, explica Carmela Zigoni, assessora política no Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) e integrante do Fórum de Direito de Acesso às Informações Públicas.
Outro exemplo do desprezo com o controle social por meio de plataformas de dados e pesquisas foi o desrespeito dos prazos do Censo 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Tradicionalmente, o maior levantamento sobre a população brasileira é divulgado nos anos terminados em zero, mas o atraso tem ocasionado que diversas decisões políticas, inclusive referentes à distribuição de recursos públicos, sejam realizadas com números antigos e, provavelmente, defasados.
Apenas no dia 28 de fevereiro de 2023, o IBGE encerrou a cobertura da coleta domiciliar do Censo 2022. Segundo o instituto, foram recenseadas 189.261.144 pessoas, o que representa 91% da população estimada do país, considerando o divulgado em 28 de dezembro de 2022. A partir de então, o órgão iniciou “Ações de Mobilização” em áreas específicas, como favelas e condomínios de alta renda, ainda em curso no fechamento desta reportagem, em paralelo à apuração dos dados. Há ainda a possibilidade de que domicílios que não foram recenseados façam contato com o IBGE para agendar visitas. “Essas tarefas implicam alguns retornos a campo, ou seja, alguns domicílios ainda vão receber visitas de recenseadores ou supervisores. A divulgação dos primeiros resultados do Censo Demográfico está prevista para o final de abril”, informava o IBGE em seu site, no mês de março, logo após a finalização da fase de coleta.
Importa lembrar que o último Censo foi realizado em 2010, portanto o mais recente deveria ter acontecido em 2020. O Governo Bolsonaro, entretanto, utilizou a pandemia para justificar o atraso e a pesquisa foi postergada para 2022, ainda assim sendo finalizada apenas no ano seguinte.
Mas, segundo o alerta de especialistas e instituições da sociedade civil, a crise sanitária não foi o único motivo para o atraso. “Nesse contexto de guerra contra o funcionalismo público, o presidente Bolsonaro também, já em abril de 2019, por várias vezes, veio a público criticar os dados do IBGE sobre o emprego e o desemprego. Ele não tinha nenhum pudor em dizer que o IBGE produziu índices feitos para enganar a população, que essas estatísticas eram uma farsa. Sem nenhuma base, ele questionava as técnicas de cálculo”, disse o professor Fabio Betioli Contel, em artigo publicado no site da Universidade de São Paulo (USP).
O pesquisador nomeia essas atitudes como um “negacionismo estatístico”, em que o desinvestimento, por meio de cortes orçamentários, também é uma das ações. Em 2021, mais de 90% do orçamento destinado ao Censo, que era cerca de R$ 2 bilhões, foi cortado. O impacto disso foi não apenas um desmonte da instituição, mas também a impossibilidade de cogitar o início da execução da pesquisa naquele ano.
Mesmo em 2022, os números de trabalhadores empregados no recenseamento ficaram abaixo do esperado, houve desistência pelos baixos valores pagos às equipes de recenseadores e foi necessário rever o processo para atender populações e locais específicos. Em Roraima, por exemplo, foi preciso criar uma força-tarefa para buscar os dados dos Yanomami mesmo depois do encerramento da coleta domiciliar.
Questionada sobre o Censo 2022, Conceição Silva, que representa a União de Negros pela Igualdade (Unegro) no Conselho Nacional de Saúde (CNS), lembra que “você não tendo uma segurança de dados, fica muito difícil trabalhar para promover política pública e sobretudo nos repasses que o Ministério [da Saúde] faz para os estados e municípios. Muitas dificuldades, muitas reclamações, mas também todas as ações [de denúncia] foram expostas ali no Conselho Nacional de Saúde através de um conjunto imenso de notas públicas, recomendações, com relação à própria questão do financiamento”.
Um exemplo das ações do CNS foi, no início de 2022, o questionamento feito ao então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e a reivindicação por transparência e a inclusão da sociedade civil no debate do compartilhamento de dados. Em relação a esse caso, o CNS se posicionou contra uma plataforma chamada Open Health, criada para reunir dados de usuárias(os) de planos privados de saúde, possibilitando o compartilhamento das informações entre empresas do setor para oferta de produtos personalizados. Para o Conselho, a consolidação da saúde digital no Brasil deve ser uma prioridade do Ministério da Saúde, porém a medida deve ter como objetivos a priorização do SUS, fortalecendo o sistema público e universal, e a proteção dos dados pessoais das suas usuárias(os), tanto contra vazamentos quanto ao uso indevido das informações pelo setor privado.
Essa preocupação com a privacidade e os dados pessoais – seja de usuários(as), seja de profissionais – motivou a realização de uma pesquisa, coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e pelo Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), que aponta, como indicado no Sumário Executivo do estudo, que “o uso das novas tecnologias de informação e comunicação no campo da saúde trazem oportunidades, mas também riscos no que se refere à proteção de dados pessoais que precisam ser mais bem investigados para que boas práticas sejam construídas”.
A existência de boas práticas demanda participação social. “É essencial aprofundar e ampliar a questão democrática neste momento civilizatório de grande impasse político. ‘Saúde é democracia, democracia é saúde’ sempre foi o lema que norteia nossas atividades. Portanto, neste momento de virada da sociedade brasileira, de recuperação e afirmação da democracia, é importante que contemple, de forma radical, um controle da sociedade sobre as políticas e as ações de saúde, com orçamento participativo e territórios organizados produzindo vida em todo o Brasil”, escreveu a presidenta do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), Lucia Souto, em editorial da revista Saúde em Debate, edição de Julho/Setembro de 2022.
Um caso emblemático
Criado em 1980, o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) é responsável pela coleta, compilação, análise e divulgação dos casos de intoxicação e envenenamento, através de dados registrados pela Rede Nacional de Centros de Informação e Assistência Toxicológica (RENACIAT), nos estados e no Distrito Federal. Apesar do papel de fornecer informação e orientação sobre o diagnóstico, prognóstico, tratamento e prevenção das intoxicações, assim como sobre a toxicidade das substâncias químicas e biológicas e os riscos que elas ocasionam à saúde, a ferramenta está desatualizada e os últimos números disponíveis são de 2017.
Naquele ano, conforme estudo realizado por pesquisadores brasileiros, o Sinitox registrou 2.548 casos de contaminação por agrotóxicos no Brasil. Os pesquisadores denunciam que, considerando o fato das intoxicações por agrotóxicos não serem notificadas compulsoriamente no país (conforme Portaria nº 777/GM, de 28/04/2014), e de que o próprio Ministério da Saúde estima 50 não notificações para cada ocorrência registrada, os casos humanos de intoxicação por agrotóxicos são um problema de saúde alarmante e, ao mesmo tempo, negligenciado no país.
Mesmo que o Sinitox e os outros sistemas que registram intoxicações estivessem atualizados, muitos casos de intoxicação jamais chegariam ao poder público, simplesmente porque os sujeitos afetados não têm o menor conhecimento sobre o que está acontecendo ou sobre como buscar ajuda. A falta de dados, a desatualização das informações e a sistemática política de desinformação acabam agravando a situação. Estudiosos do campo da agricultura, por exemplo, reclamam da falta de dados nacionais que possam demonstrar através dos receituários agronômicos quais agrotóxicos estão sendo mais vendidos por cidade e região, já que sem esses números é difícil entender como enfrentar os problemas de saúde e socioambientais nas regiões específicas.
Parece fazer sentido, de uma maneira bastante perigosa, que populações como os indígenas Yanomami e os trabalhadores assalariados no campo sejam os sujeitos que acabam sendo subnotificados ou estejam de fora das estatísticas. Nesse sentido, serão necessários muitos esforços para que a nova gestão do governo federal enfrente uma política genocida, que tinha como uma das bases da sua estratégia violenta dificultar o entendimento da sociedade sobre essas populações historicamente marginalizadas.
A representante da Unegro no Conselho Nacional de Saúde, Conceição Silva, considera importante, como estratégia para repensar o controle social, a retomada das conferências nacionais, estaduais e municipais do setor. Além de iniciativas como o IdeiaSUS, que é um banco de dados sobre iniciativas em saúde e ambiente, Conceição vive a expectativa da realização da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental e da 17ª Conferência Nacional de Saúde, que terá o mote “Garantir direitos e defender o SUS, a vida e a democracia – Amanhã vai ser outro dia”.
Carmela Zigoni, do Inesc, lembra que a Constituição Federal prevê que além do voto o cidadão pode contar com diversas estratégias de participação: plebiscitos, audiências públicas, conselhos e conferências. “Os conselhos e conferências devem ser retomados sim e reabertos e mais democratizados e participativos do que eram neste primeiro ciclo também”, afirma. Ela considera que os conselhos reproduziam relações de desigualdade internamente de gênero e de raça. “No âmbito municipal o controle social de conselhos implica também a aprovação de contas públicas, então também é necessário rever o papel dos conselhos, para que sejam mais deliberativos e que tenham competências técnicas de acordo com o perfil dos conselheiros. No caso das conferências elas continuam sendo super importantes, precisam ser retomadas, mas também é importante lembrar que existe um acúmulo do período anterior de conferências de demandas que nunca foram implementadas e que seguem sendo demandas dos movimentos sociais. Então, até por ser um período de redução de recursos, crise econômica e de reconstrução de todas as políticas públicas que foram desmontadas nos últimos quatro anos, é importante que o governo priorize verificar também os acúmulos das conferências. Mas elas também são espaços importantes de construção participativas”, diz a integrante do Fórum de Direito de Acesso às Informações Públicas.
Ainda não foi possível dimensionar integralmente as consequências para o conjunto da população brasileira de quatro anos de uma gestão que foi criminosa também quando o assunto é acesso à informação pública. Mas, certamente, será necessária muita pressão social para que o Governo Lula seja obrigado a investir e melhorar as plataformas ou mesmo criar políticas fundamentais, como a de controle nacional dos receituários agronômicos, tendo como princípio o direito humano ao acesso às informações de caráter público.
Eduardo Amorim é jornalista, doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.