No Chile, a luta pelo direito ao aborto
Respeitando uma promessa eleitoral da presidenta Michelle Bachelet, o Chile se prepara para descriminalizar o aborto em caso de risco de vida para a mãe, má-formação do bebê ou estupro. Contudo, se por um lado contempla as situações mais dramáticas, por outro a lei mantém na clandestinidade de milhares de mulheresJulia Pascual e Leila Miñano
“Eu tinha 14 anos e era um amor de verão. Não tinha consciência de que poderia ficar grávida.” Instalada em sua sala na hora da once – como é chamado o lanche da tarde no Chile –, Camila (que solicitou oanonimato, assim como sua mãe, também presente) mergulha em lembranças. “Uma manhã, minha mãe me estendeu um teste de gravidez”, continua a jovem santiaguense de 24 anos. O resultado deu positivo. “E ela me disse: ‘Não diga nada a ninguém. Vá para a escola tranquila’. Quando voltei, à noite, ela me perguntou o que eu queria fazer.” E então a adolescente decidiu interromper a gravidez. A mãe de Camila, Cynthia, tomou a palavra: “Avisei naquele momento que aquilo deveria ficar só entre nós, porque podia ir para a prisão. Já trabalhei bastante na clandestinidade”, acrescentou a ex-militante da Frente Patriótica Manuel Rodriguez, braço armado do Partido Comunista Chileno durante a ditadura. “Para mim, não é um problema. Mas, emocionalmente, foi duro”, conta.
“Um homem de cerca de 40 anos veio a casa”, retoma Camila. “Não sei se era médico. Ele me deu quatro pílulas e esperou que eu expelisse o feto no banheiro. Tive contrações, sangrei… Foi rápido, mas traumatizante. Fiquei deprimida por dois anos, sentia-me culpada”, revela. Antes, Camila era contra o aborto: “Achava isso terrível. Estudava em uma instituição católica, e às vezes nos mostravam imagens de curetagens, de bebês que gritavam. Mas, desde o episódio, mudei de posição”, afirma. Olhando para seu filho, Ariel, de 1 ano e meio, que brinca em um canto da sala, a jovem continua o relato: “Agora que sou mãe, sei que desejar a criança é o que há de mais importante na gravidez”. A mãe de Camila sempre defendeu, convicta, que “precisamos ser livres para decidir. Mas, em nosso país, mal falamos de educação sexual…”.
Em 2013, a história da pequena Belém, que engravidou aos 11 anos após violações sexuais repetidas de seu padrasto, reaqueceu o debate. No ano seguinte, uma adolescente de 13 anos, vítima de estupro, foi obrigada a continuar a gestação de um feto que sofria de uma patologia grave. O bebê sobreviveu apenas algumas horas após o nascimento. Ao ritmo desses acontecimentos dramáticos, o Chile relembrou sua condição de país com uma legislação particularmente retrógrada desde a proibição total do aborto nos últimos meses da ditadura do general Augusto Pinochet.
Poucos Estados são tão repressivos quanto o Chile: o Vaticano, a Ilha de Malta, El Salvador, Nicarágua, Honduras, Haiti e Suriname. Países da região como Cuba, Porto Rico, além da Cidade do México, desde 2007, e Uruguai, desde 2012, autorizam o aborto sem condição prévia durante as primeiras doze semanas de gravidez. E outros países da região permitem a interrupção terapêutica, com uma aceitação razoavelmente grande. “O aborto terapêutico existiu no Chile por quase cinquenta anos”, relembra Maria Isabel Matamala Vivaldi, médica e figura importante do movimento feminista chileno. “O aborto era autorizado nos casos de a gravidez apresentar riscos para a saúde da mãe. Durante minha residência, eu mesma pratiquei. Mas regredimos…”, observa.
Desde a retomada da democracia, apesar de dezenas de tentativas parlamentares, a lei permanece a mesma e ameaça a mulher que aborta a três anos de prisão. Ainda assim, estima-se que o número de mulheres que correm esse risco seja de 70 mil a 120 mil por ano. Esses números colocam o Chile – afirma Vivaldi – como o país “com o maior índice de abortos da América Latina”, ao lado da República Dominicana. A ausência de políticas públicas voltadas para a contracepção induz a taxas particularmente elevadas de gravidez não desejada. Com a mudança na República Dominicana, que descriminalizou o aborto em 2014 em caso de estupro, incesto e má-formação fetal, ou ainda nos casos em que a vida da mulher esteja em risco, a situação do Chile tornou-se insustentável.
Desde a campanha presidencial de 2013, a candidata da coalizão de esquerda, Michelle Bachelet, médica de formação, havia prometido a descriminalização do aborto em três situações: estupro, feto não viável ou risco de vida para a mãe. Mas foram necessários os casos dramáticos supracitados e manifestações para que o governo finalmente apresentasse um projeto de lei ao Congresso no início de 2015. Em agosto, uma primeira etapa foi vencida, com a adoção do texto em comissão.
A discussão, contudo, começou pouco auspiciosa: “Somos a favor da vida. Como consequência, nossa rede de centros de saúde são locais onde a vida é protegida; eles não realizarão abortos”, avisou o reitor da Universidade Católica, Ignacio Sánchez, diante dos deputados. Seu estabelecimento de ensino possui a rede privada de saúde mais importante do Chile, a UC-Christus. Se a lei for adotada, mais de 1,2 mil médicos que trabalham na rede não poderão aplicá-la.
Em um país onde o divórcio só foi autorizado em 2004 e 57% da população se diz católica, essa posição não é surpresa. “A Igreja faz pressão sobre o governo, como sempre”, revolta-se Matamala Vivaldi. “E, se pode, revida, ameaça exercer pressão social, como os evangélicos no Brasil”, completa.
A eficácia da ofensiva é diretamente proporcional ao número de partidos de direita que compõem a Democracia Cristã (DC), que faz parte da coalizão governamental. No fim de julho, a DC – que aderiu ao programa presidencial da candidata Bachelet em 2013 – declarou que menos de um terço de seus 21 deputados apoiam o texto. Seu vice-presidente, Matías Walker, lembrou que os membros de seu partido eram majoritariamente contra a descriminalização do aborto em caso de estupro.
Manual prático circula na internet
Enquanto um caso de especulação imobiliária envolvendo seu filho e sua nora estremece sua imagem, Bachelet administra seus aliados para preservar a maioria no Congresso e respeita todas as recomendações das organizações internacionais. No fim de 2014, um grupo de especialistas da ONU, em que a presidenta foi primeira-dirigente da organização ONU Mulheres, apressou o Chile a superar “os entraves de uma sociedade patriarcal e conservadora”. Há pouco tempo, organizações feministas também estruturaram o discurso sobre o aborto, convidando para o debate. É o caso de Miles, uma associação de defesa dos direitos sexuais e reprodutivos fundada em 2010, que concentra suas reivindicações na descriminalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG) terapêutica – apoiada por 60% a 70% dos chilenos, de acordo com pesquisas recentes.1
Outras organizações gostariam de pressionar o governo a ir mais longe. Se por um lado conta com apenas cerca de cem militantes ativos, a Coordenação Feminista em Luta, criada em 2014, já conseguiu organizar três marchas pró-IVG em Santiago. “O texto de Bachelet não leva em conta a problemática de classe”, explica Hillary Hiner, professora de História na Universidade Diego Portales, na capital. “As ricas sempre poderão abortar em clínicas privadas ou viajar para fora do país para fazê-lo”, argumenta. E quanto àquelas que não possuem esses meios? “Há uma grande inquietude em relação ao acesso à IVG sem riscos, e isso não será resolvido com um projeto de lei”, reconhece Soledad Díaz, membro do Instituto Chileno de Medicina Reprodutiva.
“As situações nas quais a lei prevê a descriminalização se referem a apenas 2% das IVGs”, sublinha Carolina, que pediu anonimato. Ela pertence à Linea Aborto Chile (Linha Aborto Chile), cujas militantes foram formadas originalmente pela associação holandesa pró-escolha Women on Waves.2 Todas as noites durante a semana, das 20h às 23h, elas oferecem uma linha telefônica que fornece informações necessárias para um aborto medicamentoso sem riscos.
Enquanto isso, milhares de mulheres continuam condenadas aos revendedores do mercado negro. Importado clandestinamente por países vizinhos, o abortivo Misoprostol é negociado com altos preços (entre 40 mil e 120 mil pesos chilenos, o que corresponde a R$ 234 e R$ 701) e às vezes com dosagens insuficientes ou fora do prazo – o remédio é eficaz apenas até a 12ª semana de gravidez. Como explica um relatório da Universidade Diego Portales,3 quando essas mulheres que abortam sofrem complicações (hemorragias e infecções, principalmente), elas se expõem a riscos sanitários, pois, se procuram um hospital, em geral são “submetidas a interrogatórios e tratamento brusco, além da possibilidade de serem denunciadas”. “Vejo chegarem mulheres muito angustiadas e sem recursos”, reconhece a presidenta do sindicato nacional das parteiras, Anita Román, que trabalha no hospital Luis Tisné, de Santiago. “Elas esperam que o estado seja realmente grave para ir ao hospital.” Mas assegura: “Nós não denunciamos”. Princípio compartilhado por Maurício Besio, da Universidade Católica do Chile.
Em 2013, contudo, 166 mulheres foram denunciadas. “Entre elas, 22 foram condenadas”, indica o procurador Félix Inostroza, diretor da unidade especializada em delitos violentos, dos quais a IVG faz parte. “A maioria entre elas não é presa, é beneficiada com penas alternativas”, explica Ana Piquer, advogada e diretora da Anistia Internacional no Chile. Em 2015, seis homens foram condenados à prisão: o último deles, um enfermeiro de 76 anos, foi condenado em 2013 a 818 dias de detenção por ter praticado a IVG de forma reiterada.
A criminalização estaria, portanto, diminuindo. “A situação é bem mais grave em El Salvador”, retoma Piquer. “Lá, as mulheres são efetivamente jogadas na cadeia.” A Anistia Internacional lançou, em abril de 2015, a campanha chamada “17”, em referência às dezessete mulheres que, entre 1999 e 2011, foram condenadas no país a penas de até quarenta anos de prisão, a maioria por homicídio em circunstâncias agravantes. Seus advogados solicitaram o perdão presidencial quando uma delas, Guadalupe Vásquez, foi libertada depois de uma década atrás das grades, em janeiro. Alguns quiseram ver esse episódio como um sinal. A revisão da legislação estará próxima em El Salvador?
Em toda a região, grupos de ação direta trabalham há vários anos construindo laços de solidariedade. A Linea Aborto Chile disponibilizou um manual prático do aborto medicamentoso distribuído e baixado aos milhares. “Inspiramo-nos no primeiro manual da América Latina, publicado na Argentina”, explica Carolina. Agora, foi a vez de os bolivianos se apropriarem da obra – talvez os primeiros passos do que poderá se tornar uma verdadeira rede pan-americana.
Julia Pascual e Leila Miñano são jornalistas.