No início, eram só bolhas na Antártida
Ao revirar arquivos climáticos preservados nas calotas polares, um grupo de especialistas em gelo demonstrou o papel desempenhado pelo CO2 no aquecimento climático. Um deles conta aqui como essa descoberta científica se tornou um desafio político mundialDominique Raynaud
Desde os anos 1960, nossa jovem equipe tentava extrair o gás contido em núcleos de gelo retirados da Antártida. A ideia fora de Claude Lorius, fundador do grupo, ao observar as miríades de pequenas bolhas que escapavam de um cubo de gelo, formado há milhares de anos, quando o mergulhava num copo de uísque.1 Com nossos colegas do Instituto de Física da Universidade de Berna, partilhávamos o sonho de reencontrar as variações do gás carbônico (CO2) na atmosfera do passado. As medidas tomadas sistematicamente desde 1958 por David Keeling no Observatório de Mauna Loa, no Havaí, sugeriam que as atividades humanas modificavam as concentrações desse gás. Esperávamos também confirmar a previsão do químico sueco Svante Arrhenius, formulada em 1896, a propósito do papel do CO2 no ciclo das glaciações.
Nossa motivação vinha, sobretudo, da esperança de descobrir os tesouros escondidos da Antártida. A decodificação dos arquivos do clima representava um desafio considerável, e não apenas porque nosso terreno de pesquisa era acossado por frios extremos e ventos impetuosos. Após o longo trabalho de instalar as brocas para perfurar uma calota com quilômetros de espessura, a datação dos núcleos de gelo e a determinação exata de sua composição representavam um verdadeiro quebra-cabeça. Mais de dez anos de trabalho em laboratório, pontilhados de momentos de esperança e desânimo, foram necessários para resolvê-lo.
QUESTIONAMENTOS AO CONJUNTO DA HUMANIDADE
Em 1980, as bolhas de ar aprisionadas pelo frio começaram a revelar seus segredos. Confirmaram que a atmosfera da última era glacial máxima, há 20 mil anos, continha menos gás carbônico. Esse valor corroborava a hipótese de Arrhenius, que atribuía o resfriamento da era glacial a uma queda de 40% na concentração de CO2.
A etapa mais marcante ocorreu em 1º de outubro de 1987, com a publicação conjunta de três artigos na revista Nature.2 Com glaciólogos franceses e soviéticos trabalhando ombro a ombro, mostramos que o conteúdo de gás carbônico na atmosfera e a temperatura desta evoluíram paralelamente no curso dos últimos 170 mil anos, ou seja, a totalidade do último ciclo glacial-interglacial.3 Nossa demonstração se apoia, pois, na análise meticulosa do núcleo de gelo retirado na estação antártica de Vostok. Desde então, os arquivos polares confirmaram a correlação entre o CO2 e a temperatura ao longo de 800 mil anos, que perfazem oito ciclos astronômicos completos (ver a curva na p. 20).4 Outras medidas estabeleceram igualmente o vínculo entre a proporção de metano (CH4) na atmosfera e a temperatura, o que dá consistência à ideia de que as variações do efeito estufa desempenharam um papel importante nas mudanças climáticas do passado.
Tais descobertas nos escaparam e passaram a questionar o conjunto da humanidade. Um ano após a publicação dos resultados de Vostok, por iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e da Organização Meteorológica Mundial (OMM), nascia o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPPC). Sua missão, à qual nos associamos, era e continua sendo avaliar periodicamente o estado dos conhecimentos científicos, socioeconômicos e técnicos sobre as alterações do clima.
O exame do vínculo provável entre as atividades humanas e a evolução climática se colocava dali em diante no âmbito dos governos. A curva de Mauna Loa mostrava, sem ambiguidade, o aumento constante do CO2, o que não permitia mais nenhuma dúvida quanto à sua origem antrópica. Além do mais, o ar fóssil capturado em Vostok revelava que a taxa de CO2 na atmosfera dos anos 1980 (352 ppm, isto é, 0,0352% em volume)5 sem dúvida não fora jamais igualada no curso do último grande ciclo glacial-interglacial. Assim, a curva de Mauna Loa e a de Vostok tinham uma dimensão icônica na gênese de uma tomada de consciência.
Essas revelações abalavam a tranquilidade dos pesquisadores. Seria conveniente insistir na ciência fundamental ou entrar em contato, amplamente, com os dirigentes políticos e com os cidadãos? Certamente, devíamos de preferência continuar propondo nossos trabalhos às revistas científicas de repercussão internacional a fim de validar a qualidade dos resultados e sua interpretação. Essa postura é imprescindível para garantir às descobertas um grau razoável de credibilidade.
O mundo dos pesquisadores é tão diversificado quanto o gênero humano. Alguns querem tomar o máximo de precauções para garantir que eliminaram qualquer possibilidade de erro e de interpretação antes de apresentar seus trabalhos. Outros – a maioria – divulgam mais rapidamente suas descobertas, anexando uma lista das possíveis fontes de erro e das diversas interpretações viáveis. Debatemos acaloradamente essas duas opções no momento de publicar nossos resultados na Nature. Por fim, prevaleceu a atitude fundada sobre a dúvida racional, e os trabalhos posteriores corroboraram as primeiras demonstrações.
Hoje, o estado dos conhecimentos evolui depressa graças aos progressos tecnológicos e à modelização. O número cada vez maior de publicações científicas permitiu à climatologia avançar celeremente durante as últimas décadas. Uma das principais missões do IPCC consiste, de resto, em examinar e avaliar essa literatura científica.
Convidado pelo IPCC a me tornar um dos autores principais do capítulo concernente ao ciclo do carbono, pude vivenciar a extraordinária riqueza intelectual e científica da interdisciplinaridade. Outrora os pesquisadores, sobretudo jovens, não tinham tantas chances de intercâmbio. Isso também me permitiu acesso ao conjunto da literatura sobre o ciclo do carbono, a atmosfera, o oceano, os continentes, as diversas escalas de tempo. Todas essas enciclopédias vivas estavam reunidas em torno de uma mesa para elaborar o balanço exato do saber em seu campo, antes de confrontá-lo com o trabalho de outros grupos. Quando, em seguida, me tornei o autor principal e depois o revisor de um capítulo sobre a paleoclimatologia, meu entusiasmo não arrefeceu. Milhares de cientistas do mundo inteiro contribuíram para os trabalhos do IPCC desde sua fundação. Postas em comum, suas especialidades cobrem o conjunto dos domínios necessários à determinação do estado dos conhecimentos.
Nada mais legítimo que questionar a independência dos cientistas, sobretudo quando eles são convocados pela política ou quando lobbies de poder financeiro considerável tentam promover conjecturas em interesse próprio. Como poderia o cientista não correr o risco de se enganar, de ver seus trabalhos instrumentalizados ao entrar no campo político, cujos códigos não domina? Creio ter contribuído com algumas realizações modestas, mas nem por isso consigo vislumbrar como os climatologistas oriundos da pesquisa pública, esses forjadores do saber em nosso campo, seriam globalmente utilizados por um grupo de lobistas ou renunciariam à sua independência de espírito. Não é fácil imaginar que todos os 259 pesquisadores em ciência do clima que integraram o último relatório do grupo 1 do IPCC sejam culpados de conivência – tanto mais que o processo de avaliação do documento reuniu perto de 50 mil comentários de especialistas dos mais variados domínios, aos quais os autores foram obrigados a responder.
Hoje, os 195 países-membros do IPCC participam dos trabalhos sobre a compreensão da máquina climática e as causas da mudança (grupo 1), sobre suas repercussões potenciais (grupo 2) e sobre as estratégias de contenção (grupo 3). Será preciso lembrar também que essa pequena organização (doze funcionários), com sede em Genebra, requer a colaboração desinteressada de vários especialistas? Criticado às vezes, o consenso que preside à redação dos relatórios provém de um processo, não de um posicionamento prévio. Esse modo de agir não é incompatível com o respeito aos escrúpulos do pesquisador: ele não sabe tudo e não esquece jamais que a verdade científica só existe de forma transitória. Novas descobertas podem sempre invalidar um resultado.
Não obstante, haverá melhor maneira de orientar decisões? Encarregado de fomentar a reflexão política para fazer face a esse desafio maior que nossa civilização enfrenta, o IPCC constitui uma experiência institucional única. Hoje, ele é referência para o estudo da situação vulnerável da biodiversidade e talvez, amanhã, possa sê-lo para outros domínios, como os riscos tecnológicos.
Desde Louis Pasteur e da doença do bicho-da-seda, os cientistas têm sido muitas vezes recrutados para encontrar armas contra as ameaças que pesam sobre os homens – nem sempre com êxito. Mas nunca um número tão grande deles se pôs a serviço de tantas nações a fim de resolver um problema ao qual ninguém poderá escapar. Eles desempenham um papel de destaque no diagnóstico do aquecimento em curso, e seus dados constituirão a base dos debates que serão travados e das decisões que serão tomadas durante a Conferência de Paris. Muitos se envolveram nas avaliações do IPCC; alguns testemunharam diante do Parlamento de seus países ou do grande público, por ocasião de cúpulas e debates. Os trabalhos e atos dos cientistas colocam os políticos frente a frente com suas responsabilidades para com as gerações futuras.
Em nossa época – quando, por toda parte, as instituições investem principalmente na pesquisa aplicada –, podemos atestar, apoiados em nossa própria experiência, que não pode haver descobertas importantes nem análises confiáveis sobre o risco climático sem a colaboração da pesquisa de base. Para além do clima, conseguimos mensurar os benefícios de uma cooperação internacional desvinculada das rivalidades políticas – por exemplo, a que logramos estabelecer com os soviéticos em plena Guerra Fria.
Dominique Raynaud é diretor de pesquisa emérito do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), no Laboratório de Glaciologia e de Geofísica do Meio Ambiente de Grenoble, e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).