No período eleitoral de 2022, qual é o lugar das políticas públicas?
A um mês das eleições, as pautas públicas ainda são dominadas pela falta de ênfase programática. Em um debate reduzido, o que resta para as políticas públicas?
Se o restante do período eleitoral corresponder às expectativas, ele tem tudo para ser especialmente torturador para quem lida profissionalmente com políticas públicas. Tem tudo para sofrerem (e muito!) os servidores públicos da ponta dos serviços, os gestores de carreira, os pesquisadores e as comunidades de cada política setorial (saúde, educação…). Grande parte do que vimos até agora foi a materialização de um ambiente político especialmente hostil ao desenvolvimento do debate público maduro em cada uma das áreas de ação do Estado. A construção de entendimento a partir de visões diferentes de um mesmo problema social exige algumas condições mínimas que, infelizmente, estão ainda ausentes do período eleitoral. Nesse pequeno artigo buscarei explorar uma dessas “condições necessárias para o debate em políticas públicas”, que é a consciência pela sociedade civil de dois parâmetros que regem a ação governamental: os princípios do tempo e da complexidade.
O primeiro passo para isso é entender que debate político é diferente de debate sobre políticas públicas. Debate político é mais amplo e pode ou não conter tópicos de políticas públicas. O combate à corrupção, por exemplo, não é uma política pública em si. Existem muitas maneiras de se combater a corrupção e que passam ao largo da ideia do “Estado em ação”. Um exemplo disso é a mudança da cultura política da sociedade civil, oriunda de transformações sistêmicas da própria economia ou do fluxo de novas ideias para dentro de um país. E o combate à corrupção pode se dar através das urnas, do comportamento eleitoral. Na melhor das hipóteses, a ideia vaga de combate à corrupção pode ser um insumo que ajuda a inserir esse tema na agenda governamental, um input de uma política pública.
É perfeitamente possível imaginar um período eleitoral estéril em matéria de políticas públicas (com a licença aos grandes teóricos, que mostram que “não decisões também são decisões”). Ainda que o conceito ideal de período eleitoral nos informe que se trata de uma época propícia a contrastes entre modelos de governança, na mesma medida em que são prevalecentes os argumentos de ênfases personalistas e polarizações simplificadoras, as ideias mais ricas em políticas públicas saem de cena. O debate sobre políticas públicas exige que estejam em pauta visões claras acerca dos desafios sociais e do papel do Estado e do governo sobre eles. Devem estar bem definidas as visões a respeito dos objetivos de cada política, como implementá-las, como financiá-las e quem participará do processo. Discussões centradas no personalismo das candidaturas ou em diferenças não programáticas entre elas tendem a minar a capacidade de desenvolvimento de pautas amplas e complexas, que são justamente as que serão postas à mesa do governo eleito.
De certa forma, assim têm sido os últimos períodos eleitorais brasileiros e esse é um dos entraves para o amadurecimento de projetos políticos nos campos econômico e social. Avançar na discussão sobre políticas estatais envolve, antes de tudo, uma opinião pública consciente das condições de operação que as políticas exigem. Debates saudáveis em políticas públicas exigem atores que entendem os mecanismos pelos quais elas operam e as exigências naturais do processo de formulação das políticas. Um dos componentes essenciais para que políticas sejam entendidas, debatidas e deliberadas – pelos gestores e pelos cidadãos – é a consciência do tempo das políticas. Políticas públicas são altamente time-dependent, ou seja, suas etapas não só exigem um espaço temporal substancial para acontecer, como é necessário também que elas estejam em sintonia com a conjuntura que o sistema político como um todo fornece.
Por exemplo: o primeiro processo de qualquer ação estatal é a desnaturalização de determinada questão social. A ação do Estado em determinada questão só acontece se determinada questão deixar de ser vista pela sociedade civil e pelo próprio Estado como um elemento natural da vida cotidiana. Enquanto permanecer como um elemento inerente à sociedade, o problema ou questão social não consegue entrar na agenda governamental. A partir do momento em que a questão deixa de ser vista como um elemento natural e passa a ser vista como uma anomalia, um problema coletivo, o Estado passa a ser o ator com responsabilidade e justificativa moral de tratar o problema, através das políticas.
Os casos mais ilustrativos disso são as pautas de pobreza e desigualdade, e como elas têm seguido por caminhos diferentes. Até bem pouco tempo, enquanto as sociedades viam a pobreza como algo natural do trajeto histórico ou do próprio modo capitalista, a questão permaneceu ausente do rol de problemas públicos, ficando restrita às esferas da filantropia e da caridade. A partir do momento em que, pela ação da sociedade civil ou dos próprios partidos, Estado e sociedade passam a vê-la como uma situação social de violação de direitos, a pobreza é reenquadrada como uma anomalia e, portanto, um problema a ser alvo de intervenções estatais.
O exemplo oposto é o da desigualdade. Enquanto parece que a pobreza tem sido desnaturalizada e, aos poucos, alvo de políticas públicas (ou foi até o atual governo), a questão da desigualdade social ainda engatinha e não parece ainda ter passado pelo mesmo processo – com a exceção da consciência acadêmica e dos movimentos sociais. A maior prova de que a desigualdade não passou pelo mesmo processo é que ela ainda continua a ser confundida com a problemática da pobreza, como se fossem o mesmo problema. Assim, o resultante da ação social são políticas distributivas, mas não redistributivas, ou seja, há um gasto público para os grupos mais pobres, mas ele é financiado por toda a sociedade e não pelos grupos mais ricos.
Com isso quero dizer que o processo de desnaturalização dos problemas sociais é uma etapa que deve ser ultrapassada, mas que exige tempo e um processo de amadurecimento. Tempo este que não foi aproveitado por nós nos últimos quatro anos e oportunidade de amadurecimento que temos negligenciado nesse período eleitoral. Ter consciência do tempo (e do processo) de desnaturalização, assim como o tempo necessário para a institucionalização de leis e práticas administrativas é essencial para termos uma sociedade civil mais participativa e eficiente em suas proposições.
A chamada “regra de ouro” da análise de políticas públicas é considerar um recorte temporal de, no mínimo, dez anos para realizar quaisquer balanços de mudanças ou sucessos em cada uma das políticas. É certo que esse é um parâmetro usado pela academia para inferir sobre as políticas públicas. Entretanto, essa estratégia não é fortuita. Realizar recortes de dez anos para um estudo significa que as políticas, na prática, se desenvolvem e têm resultados no médio e longo prazos. Paciência. Por mais que queiramos resultados rápidos da ação pública, a política agrícola exige quase um ano entre os planos Safra e o fechamento do balanço de produtividade da agricultura. Da mesma forma, um incremento no FUNDEB pode demorar uma década até ver seus primeiros resultados no PISA.
Essa é outra faceta da condição tempo. A fim de que o debate público floresça com maturidade os temas fundamentais de políticas públicas, a sociedade civil precisa estar consciente que entre a entrada na agenda e os primeiros resultados, são requeridos complexos processos de criação de camadas legais e normas jurídicas. Como sabemos, os processos legislativos não são ágeis (ao menos quando não envolvem interesses não-republicanos). Depois do aspecto meramente formal, as políticas ainda demandam processos de criação de camadas de consenso e infraestrutura básica de operação.
Ao contrário, o que o ambiente eleitoral geralmente nos mostra é o esmagamento de todas essas etapas. Ao mesmo tempo em que o papel dos partidos é angariar votos de forma rápida e eficiente, apelando às emoções, o papel da sociedade civil é estar atenta e vigilante às “condições obrigatórias das políticas públicas”. Ao não se atentar a elas, a opinião pública se torna vulnerável aos compromissos inatingíveis e a propostas que, na prática, não têm a menor viabilidade (ainda que não exista má-fé por parte dos políticos). Nada é fácil e nada é simples em matéria de política pública.

Além da condição “tempo”, a consciência da condição “complexidade” é igualmente importante. Como era esperado, depois de 20 anos as estratégias de transferência de renda foram sacudidas de suas trajetórias de estabilidade. Pelo apelo político que tem a transferência monetária em si, ela está sendo hiperenfatizada nas campanhas. Essa estratégia dos partidos (principalmente do governo) traz a impressão para a opinião pública de que programas como o extinto Bolsa Família (PBF) se esgotam com a simples transferência de dinheiro para as famílias. Ao fazê-lo, se incentiva uma competição direta entre o PBF e o Auxílio Emergencial, que (esse sim) teve a função de ser um “colchão de salvação”.
Nesse nível em que a disputa sobre transferência de renda está operando, a política social é reduzida à ideia do leilão, de quem paga mais. A política pública é reduzida à competição eleitoral. O que grande parte da sociedade civil não sabe, contudo, é que programas como o PBF não se comparam a programas como o Auxílio Emergencial e que têm intenções completamente diferentes das do Auxílio Brasil. Na comparação entre eles, a transferência monetária é somente uma das facetas.
Por natureza, o PBF não é um programa cujo objetivo é o alívio imediato da pobreza, através do benefício. Esse é um dos ganhos laterais. O programa foi concebido antes de tudo para ser uma política que quebra a transmissão intergeracional da pobreza. Esse palavrão significa simplesmente que a política não foi desenhada para tirar da pobreza as mães recebedoras do benefício, mas para tirar os seus filhos. A principal função da transferência de renda é induzir o engajamento das famílias aos serviços de saúde e educação, a fim de que se incentive nos filhos o que Amartya Sen, Nobel de economia, chamava de “constituição de capacidades”. Através do incentivo monetário aos pais, o PBF esteve centrado em superar a pobreza não-monetária das crianças e jovens.
A ideia do Auxílio Brasil é oposta. Enquanto a unidade de intervenção foi a família, hoje é o indivíduo. O benefício não é pago para as mães na lógica de um benefício por família, mas de um benefício para cada indivíduo que se enquadrar nas regras de focalização. Essa lógica desestrutura a premissa do núcleo familiar, desestrutura o compromisso que as mães constituíram com as condicionalidades para seus filhos e esvazia o sentido da quebra da pobreza intergeracional.
O que temos, portanto, é o embate claro entre dois desenhos completamente diferentes de política social: um com foco no longo prazo, com tendência ao acúmulo de capital humano e com intersetorialidade (renda, saúde, educação e assistência social) e outro com foco no curto prazo, com viés mais distributivo do que de capital humano e com pouca sobreposição de instituições.
Esse é o sentido da “condição complexidade”. Pequenas reformas ou grandes mudanças têm efeitos cumulativos importantes no meio social, pois elas estão intrincadas em várias outras instituições que estão em operação na política pública. Assim como a “condição tempo”, a “condição complexidade” também não tem sido tratada no período eleitoral. Uma das razões disso foi elaborada em outro trabalho.
É fundamental que a sociedade civil esteja atenta a essas problemáticas das políticas, que podem passar despercebidas. O que é certo é que o debate reduziu-se às pequenezas. O problema é que pequenezas podem ter efeitos catastróficos quando se traduzem para o campo das políticas públicas. O lado positivo é que pequenezas são somente pequenezas quando a sociedade civil está consciente das “condições de operação das políticas”.
Pedro Aluízio Resende Leão é mestrando em Ciência Política na Universidade de São Paulo.