No tempo das ilusões perdidas: Saúde e guerra
É preocupante que a Assembleia Mundial da Saúde deixará de lado a formulação de novas resposta a futuras pandemias.
De 22 a 28 de maio acontece, em Genebra, a 75ª sessão da Assembleia Mundial da Saúde. A agenda a ser cumprida cobre dezenas de temas pertinentes para a saúde global, neste que é o espaço por excelência da diplomacia da saúde global, por reunir anualmente os ministros de saúde de todos os países do mundo, observadores de todas as demais agências das Nações Unidas e a sociedade civil. Entre os assuntos de maior destaque está, claro, a pandemia, com particular foco no relatório do comitê independente sobre o fortalecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) frente a possíveis emergências sanitárias.
Talvez o único consenso que existe sobre a pandemia da Covid-19 é que ninguém estava preparado para o impacto devastador que causou em todas as sociedades. Todos os países falharam. O que a Assembleia Mundial da Saúde quer é adotar um plano para qualquer cenário pandêmico futuro, a partir das lições apreendidas com a Covid-19.
Infelizmente, o relatório do comitê independente limita as propostas ao fortalecimento institucional da Organização: revisão do Regulamento Sanitário Internacional, monitoramento, por parte de órgãos independentes, dos programas nacionais de resposta a emergências sanitárias, formação e capacitação técnica, novas formas de financiamento. Ninguém poderá fazer objeção a essas iniciativas. São necessárias e urgentes, mas não são suficientes.
A pandemia é produzida pelo vírus Sars-Cov 2 e suas circunstâncias, e se enquadra no quadro explicativo da chamada One Health, ou seja, a complexa relação entre a vida humana e a vida animal, que é povoada por todo tipo de microrganismos, inclusive vírus, em dado ecossistema, num âmbito social mais amplo. O quadro se torna mais desafiador com a inclusão do meio ambiente, ameaçado por desmatamento e perda da biodiversidade, num contexto mais amplo de mudanças climáticas e aquecimento global e de sociedades profundamente desiguais.
De fato, é flagrante o impacto de pandemias sobre as populações menos favorecidas. Há estudos suficientes que mostram como a pandemia aproveitou as iniquidades para acelerar a sua propagação e tornar-se ainda mais letal.
Falar em iniquidades talvez soe um pouco abstrato. Para sermos concretos poderíamos dizer que fome e pobreza, desemprego ou subemprego, falta de acesso à saúde e à educação de qualidade, à água potável e ao saneamento, à energia renovável – são signos de iniquidades.
Apesar de críticas ao conceito, tem sido aceito que a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de doença. O que talvez não se perceba claramente é que o completo bem-estar social implica atenção aos chamados determinantes econômicos e sociais da saúde, os mesmos que devem ser considerados para vencer as iniquidades.
Nesse contexto, preocupa que a Assembleia Mundial da deixará de lado a formulação de novas resposta a futuras pandemias. Os delegados examinarão como melhorar o desempenho de uma máquina, ao invés de lançarem um olhar crítico às causas amplas, inclusive às ambientais, e aos determinantes econômicos e sociais. Na relação causa-efeito, a assembleia ignorará a causa e ficará empobrecida com o efeito.
Se tudo sair bem, o que é duvidoso à luz das resistências em atribuir à saúde e ao meio ambiente prioridade máxima nas respectivas agendas políticas nacionais, teremos resposta institucional mais aceitável frente a pandemias. É preciso enfatizar, no entanto, que a eventual resposta mais aceitável será para um número reduzido de pessoas, pois as iniquidades serão as mesmas, se não piores, por conta das mudanças climáticas.

A guerra
As perspectivas, como se pode ver, não são animadoras. Talvez, contudo, não tenhamos que esperar muito para o desfecho trágico. Há um outro grande problema que poderá acelerar os acontecimentos. A guerra na Ucrânia. Esta não é uma guerra como as outras. É uma guerra por procuração da Otan contra a Rússia em território ucraniano, levada a cabo pela vontade de poder. Não se façam ilusões de que se trata de uma guerra entre o Bem e o Mal. A má fé do Ocidente salta aos olhos e se torna patente com a censura descarada de tudo que não seja propaganda chapa branca.
Chama a atenção que não haja nenhum esforço para negociar a paz e que se caia numa espiral de destruição, violência e mortes. É o que sugere o pedido de mais armas e a aprovação de crescentes gastos militares. Preocupa que o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, diga, na coletiva de imprensa, que o objetivo dos EUA é enfraquecer a Rússia. Não ajuda que o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrel, afirme que o tempo da diplomacia acabou e agora o que se quer é ganhar a guerra no campo de batalha.
Onde estavam os defensores dos valores éticos, quando na pandemia se comportaram como Pantagruel em festim obsceno, açambarcando 75% de todas as vacinas produzidas no mundo, enquanto os países do continente africano mal conseguiam imunizar menos de 4% de suas respectivas populações?
Como disse o secretário-geral das Nações Unidas, Antônio Guterres, por ocasião da divulgação do último relatório do IPCC, “os líderes dos países e corporações responsáveis pela maior parte das emissões dizem uma coisa e fazem outra”. Em outras palavras, mentem.
A única verdade é a que está aí: a desavergonhada manifestação da vontade de poder, que não liga para nada que dificulte o seu objetivo. Não se façam ilusões. Os líderes mundiais não estão à altura dos enormes desafios. São medíocres e não dão a mínima.
Santiago Alcázar e Paulo M. Buss são pesquisadores do Centro de Relações Internacionais em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz (CRIS/Fiocruz)