Algumas análises apontaram os impactos da expansão pandêmica do Covid-19 como demonstrativos dos limites do atual modelo capitalista neoliberal. A insuficiência de políticas públicas para sistemas de saúde e seguridade social nos países desmantelados pelos mandatos de austeridade indicariam a urgência de revisar a profunda dessolidarização, jurídica e ética, que aplaca Estados e sujeitos. No entanto, a despeito das múltiplas articulações solidárias, o que se tem visto é o aprofundamento da individualização e dos problemas que já assolavam a humanidade antes da chegada do coronavírus. E, em uma sociedade que discrimina as mulheres, o gênero acaba sendo um fator de radicalização das formas de violência e de desigualdades que recaem sobre as mulheres e os corpos feminizados em epidemias.
Assim, não surpreende que as mulheres estejam sendo as mais afetadas pelos cenários vários que se instituem em tempos pandêmicos de Covid-19. O vírus é um ácido que corrói o que pode haver de brilhante e sedutor no discurso de empreendedorismo de si. E esse ácido desnuda a dimensão mais brutal da competição exacerbada e das microempresas que cada sujeito constitui, impondo que dêem conta individualmente de todo risco e de qualquer prejuízo. Não se tratam de problemas ditados pelo vírus; algo imposto por sua natureza, mas sim do escancaramento e do aprofundamento das desigualdades sociais já existentes, colocando com escárnio à nossa frente o modo de vida que temos escolhido e assentido naquilo que consagramos como normalidade. Assim, se faz necessário reposicionar os problemas postos pelo Covid-19 a partir de uma leitura feminista do presente.
As históricas e discriminatórias distinções entre funções públicas e privadas a partir do gênero implicam nos tipos de profissões desempenhadas por homens e mulheres, fazendo com que elas ocupem majoritariamente funções responsáveis pelo cuidado de pessoas, tanto profissional quanto informalmente. A revista Azmina, juntamente com Gênero e Número, revelou que as mulheres são a linha de frente no Brasil: nas funções de enfermagem, auxiliares e técnicas de enfermagem, a média é de 6 mulheres para cada homem.

Divórcios e mais violência doméstica
Na China, país de origem do vírus e primeiro epicentro da pandemia, foi registrado um número recorde de pedidos de divórcio, o que indica que a situação de enclausuramento domiciliar gera um aumento dos conflitos conjugais. A estratégia de confinamento orientada pelas autoridades sanitárias vem criando condições de aumento exponencial da violência doméstica, conforme já constatado por registros na China e no estado do Rio de Janeiro. As ligações para o Disque 180 aumentaram em 9% e, na Baixada Santista (SP), a procura ao abrigo para mulheres em situação de violência triplicou.
E, diante de fechamento de escolas e creches, sendo as mulheres as mais responsabilizadas pelos serviços domésticos e por cuidados de crianças e idosos, como conciliar o home office estabelecido por muitas empresas? Como as trabalhadoras informais sustentarão a si e a suas famílias com as necessárias medidas de restrição? A nova territorialidade do espaço laboral que, para muitos setores, se radica agora no âmbito doméstico impõe novas questões, tais como um aumento de assédio moral e de demissão de mulheres exatamente pelo seu ônus com os trabalhos reprodutivos (domésticos e de cuidados). Se em condições “ordinárias” de relações de trabalho as mulheres mães sofrem sobremaneira com o assédio moral dentro de seus empregos, sendo não raro constrangidas em razão de cuidados com crianças e demandas doméstico-familiares, o que virá agora, quando o espectro domiciliar se apresenta indissociavelmente mesclado ao laboral?
Trabalho reprodutivo
Como será gerida a crise financeira quando casa e trabalho recaem sobre o mesmo espaço físico e às costas das mulheres é que se joga socialmente o oneroso trabalho reprodutivo? A dimensão do endividamento também aterrissa drasticamente sobre os corpos feminizados: são as mulheres que primeiro sentem na própria pele os impactos da ausência de recursos e as consequências do endividamento, deixando de se alimentar para dar de comer às suas crias (Uma leitura feminista da dívida, Luci Cavallero e Verónica Gago). A urgência dos dilemas postos entre inanição ou exposição ao vírus, demissão ou gestão familiar, são acentuados pela responsabilização das mulheres pelo exercício do trabalho emocional ligados ao cuidado e à administração do lar. Isso sem sequer adentrar na questão de que para um grande contingente populacional a quarentena é um privilégio, em face da situação de rua que atinge cerca de 7 mil pessoas apenas na cidade de São Paulo.
Os movimentos de mulheres vêm alertando sobre a necessidade de se manter ativa a rede de enfrentamento de violência doméstica, com atendimento de Centros de Referência, casas de abrigamento e Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres diante desse contexto de drástico aumento de exposição de mulheres a situações de violência: as mulheres estarão confinadas com seus agressores e precisarão, mais do que nunca, da rede de atendimento. Em Porto Alegre, a Casa de Mulheres Mirabal, estabelecida após ocupações e reintegrações de posse de espaços pelo Movimento de Mulheres Olga Benário, continua sendo uma referência imprescindível para manter mulheres livres de violência e vem fazendo campanha de apoio a diaristas para que, através de um Fundo Solidário, montem e distribuam cestas básicas a trabalhadoras domésticas atualmente sem qualquer renda.
A ONU Mulheres também alerta que em situações de epidemia as mulheres costumam ter limitados ou negados seus direitos sexuais e reprodutivos, pois os recursos destinados a essa área costumam ser redirecionados às demandas da epidemia, aumentando número de abortos clandestinos e inseguros, acarretando, portanto, a morte evitável de muitas mulheres, em sua maioria pobres e negras. No Brasil, já pudemos sentir esses efeitos: o maior serviço de atendimento a mulheres vítimas de violência sexual do país, do Hospital Pérola Byington (SP), foi fechado. A interrupção do serviço conhecido por realizar a maior quantidade de abortamento legal, principalmente em caso de gravidez por decorrência de estupro, representa grave ataque aos direitos das mulheres, principalmente em razão do potencial aumento de violência sexual a que as mulheres estarão assujeitadas nesse momento de reclusão. Por pressão popular, o serviço voltou a funcionar no dia 30/03/2020.
Cabe, portanto, às nossas escolhas a função de tecer qual será o mundo durante, mas sobretudo após a pandemia: não é o vírus que impõe o esgarçamento radical dos laços, a ponto de esfacelá-los completamente, tampouco é ele que decide quais serviços se manterão abertos ou serão fechados. Alocar recursos suficientes para saúde, assistência e seguridade social, conceder renda básica de auxílio emergencial digna às populações, garantir dimensões de gênero, raça e classe nas respostas sociais de gestão à crise, são exemplos de medidas mínimas que dizem respeito a como sujeitos e Estados podem se ressolidarizar e, assim, tecer novos mundos possíveis. A pandemia dirá muito sobre nosso futuro próximo e sobre nossas condições de humanidade diante da precariedade de vida, a nossa própria e, principalmente, em uma radical relação ética de alteridade, sobre a precariedade de vida das outras pessoas, essa mesma que mais do que nunca nos interpela a tecer novos mundos possíveis.
Domenique Goulart é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGCRIM/PUCRS).