Novo massacre indígena no Maranhão
O deputado federal Aluísio Mendes (PTN/Podemos) participa de ato que incitou a população de Viana (MA) a atacar indígenas que, horas antes, haviam ocupado sítio na região. O saldo é de 22 gamela feridos, dos quais cinco a bala e dois com a mão amputada. “Depois que viam que não se mexia mais, partiam para cima de outro”, relata indígena
Os buracos de bala são as testemunhas na silenciosa e bucólica paisagem de um sítio na Baixada do Maranhão. Estão em troncos de árvores, nas paredes externas da casa. Traçam o caminho realizado por cerca de trinta indígenas do povo gamela, que haviam ocupado o local horas antes, recuando diante do avanço de 250 indivíduos, muitos deles armados. Chegam até uma cerca de arame farpado, enroscado em urucum, entre o quintal arborizado e o pasto. Dali por diante, os tracejados das balas se perdem entre o capim e um horizonte de homens, mulheres e crianças correndo em desespero – os buracos de bala iriam testemunhar depois já na carne dos índios. Houve os que não conseguiram correr. Levados ao chão, caíram no lugar onde uma pequena criação de gado costuma engordar; logo foram engolidos pelas lâminas de facões da turba: dois tiveram as mãos amputadas, depois de baleados e espancados. No total, dos trinta gamela atacados, 22 ficaram feridos, cinco a bala. Os indígenas acabaram expulsos com uma violência que ganhou repercussão internacional.
Há alguns anos uma reação bárbara vinha sendo cultivada entre uma população tão pobre e vulnerável quanto os gamela. Estes não foram atacados por pistoleiros ou capangas, mas por quem não acordou pela manhã achando que fosse terminar o dia envolvido num ato bárbaro. Na região não há quem afirme ter participado da brutalidade, mas também não há quem não a justifique. Toda Viana, Matinha e Penalva, municípios em que se encontram porções de território tradicional gamela, foi convocada e sabia que no domingo, dia 30 de abril de 2017, a partir das 14 horas, a “Manifestação pela Paz” seria o evento para a “gente ordeira […] e que nunca tinha visto um índio ali”, conforme discurso do deputado federal maranhense Aluísio Mendes (PTN, atual Podemos). O parlamentar ressaltou, diante da entrada da aldeia Centro do Antero, um movimentado entroncamento com comércio e escola chamado Santero, no Povoado Baías, em Viana, que “ninguém tem sangue de barata, ninguém vai aceitar mais essa provocação”.
Raimundo da Conceição Gamela presenciou a “Manifestação pela Paz”. “Fazendeiros e pequenos proprietários estavam na reunião aberta, na beira da estrada (MA-014). Ex-vereadores, o deputado, um advogado e representantes, né?, lideranças do movimento.” Uma dessas lideranças é conhecida na região como Juca, pastor e morador de uma pequena comunidade chamada São Miguel. Ele aparece no vídeo que circula na internet ao lado do deputado, durante o evento. “Era mais um comício, um carro com palanque. Chamaram os gamela de malfeitores e ladrões. Não era para apaziguar a situação, respeitar o movimento indígena. Muitos são até vizinhos, sabem que os gamela não são bandidos.” Durante o “comício”, chegou a notícia da retomada gamela do sítio, a 5 quilômetros de distância do Santero, encravado numa comunidade chamada Povoado do Acampamento. O ódio correu feito descarga elétrica.
“As pessoas que estavam no palco começaram a dizer para o povo ir ao encontro dos indígenas. Disseram que ali não tinha covarde. O advogado presente disse que a Constituição assegurava que eles tinham o direito de revidar. Todo mundo começou a gritar: ‘Vamos lá! Vamos lá!’.” Raimundo Gamela conta que tentou conversar com Juca, o articulador do movimento. “Eu disse que ia acontecer uma tragédia e ele me respondeu: ‘Não tô nem aí’.” O gamela afirma que pessoas o identificaram como indígena. Ele passou então a ser agredido e apanhou com golpes de faca embainhada. “Outros viram que eu ia ser linchado e não deixaram; me tiraram do lugar numa moto.” A reunião não levou muito mais do que meia hora. A horda enfurecida, cerca de 250 pessoas conforme o major Nilson Silva Fonseca, da Polícia Militar, partiu para massacrar os indígenas.
O major afirma que nada pôde ser feito porque todo o efetivo policial – uma viatura – acompanhava evento que estava sendo realizado na cidade: justamente a “Manifestação pela Paz”. De todo modo, a viatura se dirigiu ao sítio retomado pelos gamela. “A polícia foi lá sim, uns quatro policiais. Mas não para falar com nós. Entraram, foram falar com o caseiro, cochicharam”, diz Maria das Dores Gabão Gamela. Os indígenas contam que logo após a saída da polícia, que ficou na porta do sítio, os agressores se aglomeraram. “Ao chegarem, começaram a nos esculhambar. E aí foi chegando aquele bolo de gente. Os primeiros eram mais jovens. Esses não disseram nada. Quando começaram a chegar os homens que estavam armados, começou a agressão.”
Os gamela tentavam acalmar a multidão que estava do outro lado da porteira do sítio. Comunicaram que tinham decidido sair da retomada, sabiam que a situação passou a envolver uma gente que nada tinha a ver com a área e que estavam ali motivados por discursos de ódio. Em vão. Os indígenas então decidiram recuar na direção da moradia do caseiro e sair da área pelos fundos. A turba destruiu a porteira de madeira e foi como uma horda ao ataque impiedoso. “Eles partiam para cima de um parente, faziam o que queriam. Depois que viam que não se mexia mais, partiam para cima de outro, como fizeram com Inaldo.”
O nome de Inaldo Gamela liderou uma lista lida ao público por um homem chamado de Zeca durante a “Manifestação pela Paz”. Raimundo Gamela diz que ao menos oito nomes foram falados como “os principais bandidos e ladrões de terra”. Não é mera coincidência que, conforme os relatos dos gamela, esses oito foram caçados durante o ataque. Inaldo levou um tiro de raspão na cabeça e pauladas e teve de desviar inúmeras vezes de golpes de facão. A indígena Gabão o socorreu, quando sem força Inaldo desfalecia no chão. “Eu vi a hora que o cara derrubou Inaldo. Ele caiu de bruços e foram para cima. Fui acudir. Era bala, chuva de bala em cima de mim.” Gabão levou uma paulada nas costas enquanto ajudava Inaldo.
Nem as crianças foram poupadas. I. D., de 10 anos, teve uma arma apontada contra a cabeça. “Ficou paralisada de medo. Não se mexia, aí um menino a puxou e a levou arrastando. Jogava ela para a frente e corria para buscar e tornar a jogar.” Gabão se lembra ainda de ver os indígenas que foram levados à capital, São Luís, para atendimento médico caídos no capim do pasto – Aldenir de Jesus Ribeiro teve as duas mãos amputadas a golpes de facão; José Ribamar Mendes, a mão direita; José André Ribeiro, baleado. Diassis Gamela, 24 horas depois do ataque, ainda tinha em seu corpo – face e dedo indicador – projéteis alojados; outro disparo o atingiu no tórax, mas o tiro trespassou a carne.
No início da noite do dia 30, um integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) ligou para o major Fonseca solicitando reforço no policiamento e proteção aos indígenas. O policial afirmou que nada podia fazer porque se tratava de uma revolta da população contra os “supostos” índios. Uma nota do governo do Maranhão, publicada no dia seguinte ao ataque, no feriado do Dia dos Trabalhadores, afirmava que a PM “atuou imediatamente após ter conhecimento do conflito […], evitando assim uma tragédia maior. A PM permanece no local com reforço do efetivo”. Já o governador Flávio Dino escreveu em sua conta pessoal no Twitter: “Até agora, não foi localizada nenhuma pessoa com mãos decepadas. Continuamos procurando”.
Bojaco, caseiro da área retomada pelos gamela, funcionário do proprietário, o empresário Jamilo Aires Pinto, seu primo, não estava mais no local durante o desfecho. A investigação do massacre foi federalizada, ou seja, está agora nas mãos da Polícia Federal. Antes estava com a Polícia Civil de Viana. Não houve perícia no local, tampouco se tem uma linha de investigação, mesmo com todos os relatos – de ambas as partes envolvidas – de que o grupo partiu da “Manifestação pela Paz”. Os gamela que tiveram os nomes gritados pelos oradores da “Manifestação pela Paz” serão encaminhados para o Programa de Defensores de Direitos Humanos do governo federal – no qual já estão 111 indígenas de todo o país.
Maranhão profundo
A história é curta e nada peculiar para os padrões de como a divisão de terras acontece no Brasil. O fazendeiro Evilásio Costa é apontado pelos gamela como um dos líderes da articulação contra a posse dos indígenas pela terra tradicional. Candidatou-se a vereador em Viana pelo PMDB, sem conseguir se eleger. É irmão de Laércio Costa, presidente estadual do PTN (ou Podemos), partido do deputado federal Aluísio Mendes, presente na “Manifestação pela Paz”. Evilásio é proprietário de uma das maiores fazendas que incidem sobre o território reivindicado pelos gamela, uma área com 1,1 mil hectares, alvo, desde 2004, de uma ação de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Em 2006, o Incra estabeleceu o valor de R$ 241 mil para a indenização de Evilásio, que, contrariado com o valor, que considerou baixo, conseguiu uma decisão da Vara Agrária da Justiça Federal definindo o preço em R$ 1,4 milhão. O Incra apelou no Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1), em Brasília, e o processo permanece aberto. “Ele evidentemente se preocupa com isso, porque a área está dentro da terra indígena”, comenta o advogado Rafael Silva, da OAB/MA. “Se a área for demarcada, ele não terá direito à indenização, porque os títulos de propriedade serão considerados nulos.”
Conforme levantamento da Repórter Brasil, “Aluísio Mendes foi o deputado federal mais votado de Viana. Ex-agente da Polícia Federal, o deputado foi acusado pela PF (que entrou com pedido de prisão contra Mendes, rejeitado pela Justiça) de aproveitar seus contatos na corporação para vazar informações sigilosas à família Sarney, para quem trabalhou por décadas: foi guarda-costas de José Sarney, chefe de gabinete da Presidência do Conselho Nacional de Justiça, subsecretário de Inteligência do Maranhão e secretário de Segurança Pública do estado durante a gestão de Roseane Sarney”.
Os gamela, cerca de 1.500 indígenas segundo a Funai, ocupam 552 hectares de uma parte do território tradicional chamado Taquaritwa. A Funai já realizou a chamada qualificação de demanda, etapa preliminar à criação do grupo de trabalho (GT) para a construção do relatório de identificação e delimitação. Os gamela aguardam há um ano e meio a formação desse GT. Conforme os técnicos do órgão indigenista presentes em uma das retomadas, existem 442 terras na frente dos gamela na fila da Funai. “Mas a vulnerabilidade é um dos critérios estabelecidos pela qualificação de demanda, então esperamos que os gamela possam ser atendidos com brevidade ”, explica o servidor da Funai, Bruno de Lima e Silva.
Entre 30 de novembro e 3 de dezembro de 2015, os gamela realizaram suas primeiras retomadas. No dia 28 de abril, dois dias antes do ataque, ocuparam uma nova porção do território, totalizando oito retomadas. O local do massacre seria a nona. A primeira e a última área ocupada pelos indígenas têm o mesmo proprietário, José Manoel Penha, conhecido como Castelo, que entrou com pedido de reintegração de posse contra os indígenas na Justiça estadual – além dessa, outras três retomadas geraram pedidos de reintegração de posse e outras quatro áreas não retomadas estão com interditos proibitórios contra os gamela temendo ocupações dos indígenas.
“Sofremos investidas em todas as retomadas. Em uma delas, três policiais sem a farda tentaram nos expulsar. Entraram armados, mas conseguimos retirá-los”, explica Inaldo Gamela. Uma das áreas retomadas, esta em agosto de 2016, é explorada por Benito Coelho, ex-prefeito de Viana e arrendatário da Rádio Maracu AM, emissora responsável pela convocação do encontro de onde sairiam os agressores dos gamela, no dia 30. Conforme os gamela, o terreno está registrado no nome do irmão de Coelho, Aristóteles Costa Coelho, que também entrou com pedido de reintegração de posse na Justiça Federal. Os indígenas aparecem na ação como “um grupo de pessoas que se dizem de descendência indígena”.
Em relatório produzido pela Secretaria de Direitos Humanos do Governo do Maranhão em dezembro de 2015, a estada de uma equipe enviada pelo estado chegou a ser perturbada com ameaças por um desses proprietários – no caso, Castelo –, e outro fazendeiro, conhecido como Manoca, chegou a ser gravado anunciando a indígenas que um pistoleiro de Nova Olinda teria recebido R$ 28 mil para matar duas lideranças gamela da aldeia Centro do Antero. “Temos uma farta documentação demonstrando que se trata de uma tragédia anunciada. As denúncias são feitas, os relatórios produzidos, mas nada acontece. Poderíamos ter tido uma chacina de indígenas. Parece que estamos no século XVIII”, diz Rosimeire Diniz, do Cimi Regional Maranhão, que acompanha os gamela desde 2010.
A existência
O menino Francisco Dias Gamela vivia na barra da saia da avó, dona Alexandrina Mônica Dias. Tentava entender aquela língua estranha que a anciã falava consigo mesma ou num esbravejo qualquer. “‘Vó, o que você é?’, eu sempre perguntava para ela. Queria saber se ela era gagá”, diz. A bisavó de Bojinho, como é mais conhecido, também falava essa mesma língua estranha. Dona Tertuliana Dias, mãe de Alexandrina, ensinou o idioma para a filha, que não o transmitiu aos netos: “‘Essa é a nossa língua. Não posso ensinar a ninguém. Corremos o risco de ser atacados’, era o que minha avó dizia”, explica Francisco Gamela, hoje com 60 anos.
A memória de Bojinho demonstra que o recente massacre é apenas mais um em uma longa história açodada na bravura do ato de resistência desses índios. E é o que são, índios gamela – conforme o entendimento jurídico e legislativo moderno, além do antropológico, que é anterior às leis atuais. Quando o povo gamela insurge no cenário regional como povo indígena reivindicando seu direito territorial, passa a ser reproduzido e difundido um discurso anti-indígena aparentemente muito preocupado com a questão das classificações identitárias. Todavia, o contexto de produção desse discurso é essencialmente político, assentado em interesses hegemônicos de proteção dos latifúndios da Baixada Maranhense. O fato é que a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, assegura aos povos indígenas o direito à autodeclaração. “É indígena quem se identifica como tal e é reconhecido pelo povo ao qual diz pertencer”, explica a antropóloga Caroline Leal, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).
*Renato Santana é jornalista.
[Texto publicado na edição 119 do jornal Le Monde Diplomatique Brasil – junho 2017]