Novos atores em cena
Na entrevista a seguir, Maria Virginia de Freitas, coordenadora da área de juventude da Ação Educativa, e Anna Luiza Salles Souto, coordenadora da área de juventude do Instituto Pólis, discutem as relações entre juventude e política e analisam os resultados da pesquisa Agenda Juventude BrasilSilvio Caccia Bava
Estamos percebendo, desde as manifestações mais recentes, que uma série de iniciativas de juventude está ganhando visibilidade, fato que não ocorria antes. O que é esse rompimento da invisibilidade? Quem está rompendo essa invisibilidade?
Quem está rompendo são coletivos e movimentos juvenis cujas agendas até então estavam pouco visíveis. Quando, em junho de 2013, o MPL começou com a questão da tarifa, ninguém apostava que aquilo pudesse tomar a dimensão que tomou, mesmo o próprio MPL. A reivindicação contra o aumento, pela tarifa zero, não era algo muito conhecido, mas também não era novo. A questão do transporte, da tarifa, não se manifesta só em São Paulo. É uma questão que está pululando há tempos e gerando organização e lutas em diversas cidades brasileiras. Não era a primeira vez que o MPL se manifestava, mas ele ficou mais visível quando a mobilização cresceu, incorporando outras agendas: o direito à liberdade de expressão e manifestação, o repúdio à violência policial, a desmilitarização da polícia, o questionamento das prioridades de investimento do Estado, o direito à educação, à saúde, o combate à corrupção… A conjunção de agendas resultou em manifestações maciças, que passaram a chamar atenção, mas grande parte das agendas compõe lutas que já vêm sendo travadas por diferentes coletivos e de diferentes formas. A violência policial que se abateu sobre o movimento se manifesta cotidianamente nas regiões periféricas dos centros urbanos, vitimizando especialmente os jovens negros e pobres, e tem sido pauta de diversos coletivos juvenis.
Que coletivos são esses?
São de diversos tipos, e muitas vezes com conexões entre si. Há coletivos que se estruturam a partir de manifestações artístico-culturais, outros em torno da identidade etnorracial ou de uma identidade territorial… Alguns reúnem tudo isso. Muitos mantêm ou estabelecem relações com movimentos e organizações não juvenis, como o movimento negro, os movimentos de moradia, as articulações de defesa de direitos humanos.
Essas movimentações já estavam acontecendo nos bairros e com conexões entre si, mas pouco visíveis no centro. E em junho de 2013 elas também vieram para o centro.
Essa questão de os jovens se articularem na defesa dos direitos humanos ficou mais explícita no Rio de Janeiro, quando os jovens das favelas, dos morros, desceram e perguntaram: “Cadê o Amarildo?”. É o enfrentamento com as UPPs, com o tráfico, com as milícias. Porque é simbólico. São muitos Amarildos. Então é aquela coisa que toca mais porque é um “mano” que está sumido, é o meu amigo, é o companheiro de geração. Isso por conta da violência institucionalizada, do racismo, da discriminação. Essa pauta ficou mais nítida no Rio de Janeiro.
Quando se fala de jovens, as pessoas muitas vezes pensam em estudantes; quando se fala em movimento juvenil, olham o movimento estudantil. Não é mais assim, hoje em dia é um mosaico, não tem como você dizer “esse movimento é representante da juventude”.
Vocês colocam os rolezinhos nesse mesmo cenário?
Eles não vêm com palavras de ordem, com uma agenda programática, mas reivindicam o direito de estar ali, querem ser reconhecidos. A demanda é por reconhecimento, por visibilidade, por romper com as barreiras do território, ter acesso a shoppings, a lazer.
Alguns grupos de negros têm ido juntos a vernissages, porque, se você chegar sozinho e não tiver o estilo preestabelecido de quem é consumidor de arte, você é discriminado. Então tem uma coisa de chegar coletivamente, estar em grupo e desfrutar o que está colocado ali. Trata-se do exercício do direito de circular, de estar em locais de acesso público.
Esses são movimentos negros, não são movimentos de juventude?
A discussão é exatamente desses cruzamentos, de ser jovem, de ser pobre, de ser negro, de ser da periferia. Mas nem todos os jovens que estão na periferia se reconhecem necessariamente nessa identidade. Esses coletivos da periferia estão muito fortemente vinculados a um opositor muito poderoso que é a polícia, que aparece como um grande adversário. E para a polícia o suspeito é aquele pobre, preto. O tipo físico, que eles chamam de tipo suspeito e tal. Os jovens negros e pobres são as maiores vítimas da violência no Brasil, as maiores vítimas de homicídios. E isso tem fomentado a organização dos jovens desse segmento.
Tanto é assim que a juventude negra conseguiu, em certa medida, colocar sua pauta no centro da agenda da juventude. No governo federal, uma das prioridades da política de juventude é o Juventude Viva, uma prioridade dos coletivos negros que conseguiram colocar a sua questão como a principal questão da juventude.
Para o MPL, a agenda é outra, e eles têm muito diálogo com grupos da periferia também, fazem formação na periferia. A luta pela mobilidade tem a ver com o direito de se deslocar pela cidade, está vinculada ao modelo de organização do espaço urbano, de sua exploração comercial, inclusive pelas empresas responsáveis pelas linhas de ônibus. Como tudo isso afeta a vida de jovens e da população mais pobre e periférica, estabelecem-se conexões. Então a questão da visibilidade se põe em várias instâncias.
Que agenda é essa que está surgindo da periferia?
Existe a agenda da denúncia e combate ao racismo; contra a violência; pela desmilitarização da polícia; a agenda do acesso a espaços e recursos para produzir cultura; a da mobilidade; as agendas de gênero, de autonomia em relação ao corpo e à sexualidade, como a Marcha das Vadias, de orientação sexual, que trazem isso também para a agenda pública. Enfim, são muitas agendas presentes ao mesmo tempo.
Cadê educação, saúde, trabalho?
A questão do acesso ao ensino superior mobiliza e há um monte de grupos, aí pelas periferias, fazendo cursinhos populares. É uma forma de tensionar os limites do acesso e também fazer educação popular. Mas construir uma pauta para a educação, com relação à qualidade, não é algo simples. Esse é o espaço do movimento estudantil, que para muitos é pouco atrativo, muito tradicional e ocupado por institucionalidades.
Educação e trabalho são agendas muito significativas para os jovens, mas muitas vezes não há uma mobilização mais coletiva, eles lidam de forma muito individual, essa coisa de “eu tenho de fazer por mim, pelo meu esforço”. Esse discurso social está muito presente.
A gente poderia fazer outra leitura: o ProUni esvaziou essa bandeira, assim como a condição de estarmos em pleno emprego também não traz a questão do trabalho como central.
Para além do ProUni e do pleno emprego, é grande a força do discurso da meritocracia sobre tais questões, o que joga as responsabilidades seja pelo sucesso, seja pelo fracasso nas costas de cada indivíduo. No campo do trabalho, há uma fragilidade das categorias em organizar-se e reconhecer a juventude como um recorte importante. Os sindicatos poderiam ajudar a trazer visibilidade para as questões da juventude, para questões específicas que são suas: os jovens enfrentam maior precariedade, maior rotatividade, uma série de questões. Mas muitas vezes o sindicato enxerga isso como um rompimento de unidade das questões do trabalhador. Com tudo isso, especialmente no campo do trabalho tem sido difícil construir uma agenda de juventude.
O Pronatec é uma resposta…
Para a qualificação, mas há outras questões. Como os jovens podem conciliar na sua vida o tempo do trabalho, com o tempo do estudo e com o tempo da sua vida familiar e do lazer? Isso tem outro significado do que para o adulto. É preciso mexer nas cargas horárias, reconhecendo que o jovem vivencia tudo isso ao mesmo tempo.
Está em construção o Plano Nacional do Trabalho Decente para a Juventude, mas há poucos coletivos juvenis com propostas formuladas, porque é difícil.
Você tem de acreditar que é possível interferir para se organizar. Algumas agendas são mais duras, exigem tempo de maturação dos movimentos para elaborar propostas.
A noção do trabalho como direito não está colocada, porque você tem a controvérsia: o jovem tem de ir para o mercado de trabalho ou tem de ficar estudando? A sociedade reconhece o direito à educação, mas não reconhece que o trabalho é um direito: é o “vai lá e disputa o seu”.
Já vimos que há uma série de coletivos e de grupos que estão ganhando maior visibilidade, que vão para a rua, para o shopping, para as galerias. Mas como eles se relacionam com as institucionalidades? Eles são indivíduos que se juntam pela internet, pelas redes sociais, ou têm algum tipo de diálogo com as instituições?
A internet é um instrumento de convocação. Ocupar isoladamente o espaço público não resulta em muita coisa. É obvio que existe alguém organizado que faz a convocatória, que tem uma bandeira e vai para o espaço público disputá-la.
Há poucos coletivos que não dialogam com a institucionalidade. Alguns se relacionam com o movimento estudantil, no âmbito da disputa com as organizações de representação estudantil, e muitas vezes com os diferentes partidos que disputam esse espaço. Muitos desses coletivos estão presentes nos espaços de participação institucional, nas conferências. Alguns coletivos juvenis vão se dedicar mais à conferência de cultura do que à conferência de juventude. Muitos disputam espaços desde o conselho municipal até o conselho nacional de juventude. Então, de forma geral, não podemos dizer que estão de costas para a institucionalidade. Existe diálogo porque são muitas institucionalidades diferentes, mas há uma crítica permanente a elas, em parte porque, embora elas venham como respostas a demandas da juventude, muitas vezes funcionam de forma diferente e há dificuldade para que as políticas públicas respondam num tempo mais curto, que é o da juventude.
As institucionalidades da juventude nascem profundamente ligadas a esses coletivos. Estou pensando lá nos anos 1990, Diadema e Santo André, quando surgiam as primeiras institucionalidades locais de juventude. A política foi pensada no diálogo com fóruns de juventude, reunindo esses diferentes grupos. Aí se encontravam a juventude estudantil, a juventude partidária, a juventude que vinha da Pastoral da Juventude, a juventude do sindicato, o jovem do hip-hop, o jovem ligado ao movimento negro, o jovem do skate. As institucionalidades da juventude, de 1990 para cá, têm sido constituídas como espaços de encontro e de diálogo; às vezes são fóruns. Antes de existirem os conselhos havia os fóruns, e muitos coletivos sempre dialogaram.
A institucionalidade não foi criada de cima para baixo. É um processo de construção de espaços de representação e participação da juventude para tratar de questões que lhe são específicas. A criação das institucionalidades, sobretudo nos municípios, até em alguns rincões, acabou trazendo para o espaço público uma juventude que era invisibilizada. Uma delas é a juventude do campo. A gente sempre pensa a juventude no recorte urbano, de estudante. E os jovens do campo? Eles estão colocando questões muito sérias: o direito de ficar no campo, de não ser obrigado a mudar para a cidade. Como as políticas garantem o acesso à educação, à cultura, ao trabalho, à terra?
Na pesquisa Agenda Juventude Brasil, o potencial de participação ficou mais explícito. Essa pesquisa foi feita um mês antes das manifestações de junho e captou esse potencial. Ela mostrou um elevado percentual de jovens que gostariam de participar dos movimentos e organizações citados pela pesquisa. Não participavam, mas gostariam. Enfim, evidenciou uma sensibilidade dos jovens às questões tratadas por esses coletivos, ainda que eles não estivessem engajados nesses espaços. E, quando perguntados sobre as formas mais eficazes de promover as mudanças almejadas para o país, a maior parcela dos entrevistados indicou as mobilizações de rua e a ação direta.
É isso que Junho de 2013 mostra?
Junho de 2013 mostrou uma série de coisas. Primeiro, que os espaços de exercício da política não se resumem aos conselhos, que não é indo à prefeitura, com abaixo-assinado, que se alcançarão as mudanças desejadas. Há um sentimento de que os espaços de participação institucionalizados não respondem com efetividade e muitas vezes acabam sendo apenas gerenciadores de conflitos para apaziguá-los. Mostrou que você também defende suas propostas com a força das ruas. Junho de 2013 recolocou a questão, com mais força, das frentes de atuação da democracia participativa. A rua também é democracia participativa.
Então esses jovens acreditam na política? Eles acham que é possível mudar as coisas?
A pesquisa mostra que 54% dos jovens entrevistados acham que a política é muito importante. E o mais interessante é que quando perguntados sobre qual é a capacidade dos jovens de mudarem o mundo você tem, se comparado a 2003, um aumento do percentual de jovens – são cerca de 90% deles – que acham que os jovens podem mudar muito o mundo. Há um empoderamento social da juventude muito grande nos últimos dez anos. Para o jovem, a rua é a mobilização de ação direta e uma das formas mais eficazes de atingir “aquilo que eu quero, o país que eu desejo”. É um equívoco pensar que os jovens estão à parte da política, até porque existe uma coisa mais política do que ocupar as ruas?
Essas manifestações estão dialogando, no fundo, com o sistema capitalista, esse sistema que produz e reproduz a desigualdade, a pobreza, a periferia, o jeito de construir a cidade. Vários grupos da periferia tematizam isso.
Mas a política não está só na ocupação das ruas, está também na busca de formação política. Alguns coletivos juvenis valorizam muito o conhecimento e criam círculos de estudo. Há grupos de jovens que estão insatisfeitos com a escola, mas estão estudando os clássicos – Marx, por exemplo – e autores contemporâneos de sociologia, filosofia, ciências políticas, arte, poesia etc. Alguns desses jovens estão no ensino médio; outros, na universidade. Muitos valorizam o conhecimento, mas vão buscá-lo à sua maneira, com menos mediações. Muitos grupos culturais de periferia estão acessando conteúdos que antes eram restritos às elites. Há uma sofisticação de linguagens e discursos desses grupos, o que inclusive impacta a produção cultural. Isso tem dado força à cultura periférica, muito ligada à juventude. Por isso também há maior exigência de circulação na cidade: eles querem ir aos eventos, ter equipamentos culturais, querem trocar… Lembrando que há uma oferta grande de atividades dos próprios jovens.
Há grupos e coletivos que estão questionando a própria lógica do sistema. Que sistema é esse que produz isso que estamos vivendo? Como mudar isso?
A que essas múltiplas formas de organização e participação podem levar?
Assim como no Conselho Nacional da Juventude, na Conferência e também nas ruas, diferentes agendas se encontram. Os jovens negros estavam ouvindo a demanda do jovem rural, do jovem quilombola. E o que isso produz? O que isso altera nas agendas individuais?
Os caminhos não estão predefinidos, e os desafios são enormes. O Levante e o MPL, por exemplo, perceberam que têm de fazer a disputa de valores e a construção de outro tipo de política lá na base, no território.
Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.