O 7 de setembro e as tensões políticas e eleitorais de Bolsonaro e da extrema direita
Bolsonaro ainda é a principal liderança da direita, mas é verdade que cresce uma extrema direita para além de dele. As eleições municipais deste ano serão determinantes para essa disputa interna, com importantes implicações nas eleições de 2026
As manifestações na paulista no último sábado evidenciam as tensões internas e a dinâmica eleitoral da extrema direita, em especial na eleição municipal de São Paulo. Também representam a manutenção da estratégia bolsonarista de mobilização de sua base social, agitada pelo pedido de impeachment do Ministro do STF Alexandre de Moraes, e pela defesa da liberdade de expressão – que envolveria o retorno do X de Musk, sem que este cumprisse as determinações do judiciário. Além disso, a manifestação pautou também a anistia dos envolvidos na tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023.
Durante todo o seu governo, Bolsonaro utilizou o 7 de setembro como a principal data de mobilização de sua base social. O caráter já militarizado dos desfiles e a defesa do patriotismo construíram sempre um clima ufanista e autoproclamatório, que se alinha com uma versão da história que retira o protagonismo das lutas sociais e esquece dos povos excluídos da independência.
A mobilização é uma chave decisiva para Bolsonaro, que o permitiu radicalizar sua base social nos momentos mais adversos, construir um sentimento de pertencimento, fortalecer suas narrativas delirantes e, sobretudo, dar demonstrações de forças importantes em momentos de relativa fragilidade.
Após o fim de seu governo, essa estratégia não se encerrou, pelo contrário, desde a derrota eleitoral manteve, mesmo que nas sombras, o chamado à mobilização e a manutenção da sua base social mais orgânica. Inclusive, é deste processo que resulta os acampamentos em frente aos quartéis, os bloqueios de caminhões, as tentativas de atentados a bomba em Brasília e o fatídico 8 de janeiro de 2023.
A sua última mobilização, ocorrida em fevereiro deste ano, no contexto da possibilidade de prisão de Bolsonaro, chegou a ser a maior ocorrida na Av. Paulista durante todo período (teve um caráter nacional, contando com caravanas do interior e de outros Estados). O tema do suposto autoritarismo do Min. do STF, Alexandre de Moraes tem sido a principal tônica das manifestações deste ano. A pauta da anistia para os presos do 8 de janeiro e a liberdade da atividade da extrema direita são o combustível principal da massificação das manifestações.
Desta vez, tivemos o protagonismo de Silas Malafaia também na convocação, assegurando o peso da adesão evangélica nas mobilizações. As tentativas de disputa da base evangélica pelo governo Lula segue ainda sem grandes resultados. A pauta neoconservadora produzida pela extrema direita tem aderência com as defesas da família patriarcal e da sexualidade sem diversidade que os fundamentalismos religiosos tem apregoado (a dificuldade da disputa é, portanto, de identidade política).
O desfile oficial militar, por sua vez, fica restrito ao âmbito do executivo pela própria natureza da comemoração. Razão pela qual Lula buscou diversificar seu 7 de setembro com outros atores, mas também utilizá-lo como síntese de seu processo de “paz armada” com as forças armadas, liderada pelo Ministro Múcio. Esse fato torna evidente o quanto o componente da militarização ganha dimensão diferente quando a extrema diretora é governo, pois a relação com as Forças Armadas e a forma como estas intervém na política ganha uma dimensão de centralidade única.
Ressalta-se que até o presente momento apenas as manifestações com a presença de Bolsonaro têm conseguido se massificar. Embora inelegível e com alguma perda de parcela da sua base social pela opção de não radicalização feita em alguns momentos, o ex-presidente ainda se constitui na principal liderança da extrema direita e, sobretudo, mantém na dependência de sua figura a capacidade de mobilização. Essa mobilização permanente, aliás, é o que tem conseguido segurar a correlação de forças e uma relativa imunidade para a família Bolsonaro.
Desde fevereiro até o final de março deste ano, se agitou que ele poderia ser preso e indiciado pelo envolvimento no 8 de janeiro. E, embora tenha sido dado prosseguimento a vários inquéritos relacionados diretamente a Bolsonaro, ele ainda não está sendo processado pelo 8 de janeiro e sua prisão parece mais distante. A sua grande manifestação de fevereiro teve a vitória de, ao menos, ganhar tempo em relação a essa possibilidade de prisão. Para ele, é fundamental manter essa dinâmica de forças, para utilizar essa moeda de troca pela sua liberdade.
O tom na Paulista no último sábado (7), foi muito menos mediado do que o da manifestação de fevereiro. O ataque direto a Alexandre de Moraes, a acusação de Lula ladrão, o tema do autoritarismo judicial e do impeachment foi um mote claro nos discursos. Em fevereiro, sob o receio de sair preso da manifestação, nenhum discurso buscou atacar diretamente o judiciário, dentro de um certo escopo de risco. A fala mais radicalizada, na época, foi a de Silas Malafaia.
Além do peso e do caráter, nos interessa observar o quanto essa manifestação representa também a dinâmica da extrema direita após a derrota eleitoral de Bolsonaro. Desde o início de seu governo, vão se desenhando fissuras dentro da extrema direita. O exemplo mais significativo foi a saída e disputa com o ex-juiz Sérgio Moro, que chegou a ser Ministro da Justiça e Segurança Pública do ex-presidente. Foi um caso icônico porque ele fez um pronunciamento público contra Bolsonaro, em meio à pandemia, apontando que este estava tentando interferir em investigações pela PF relacionadas aos seus filhos.
Após a eleição de 2022, a disputa interna se intensificou diante do vazio de seu silêncio público, da demora para uma defesa intransigente do 8 de janeiro e da militância envolvida (lembremos que Bolsonaro chegou a desautorizar o ato como vandalismo), somado ao conjunto de denúncias de corrupção contra seu governo com a participação de parcela do seu núcleo militar (que inclusive não atuou para garantir o golpe), os recuos feitos em razão da necessidade de se defender da possibilidade de prisão e, por fim, a perda de poder político decorrente da decretação de sua inelegibilidade. Neste cenário, o sucessor de Bolsonaro para concorrer às eleições de 2026 fica em aberto,e a adesão a sua imagem e apoio ganharam também outros riscos.
Muito se falou numa extrema direita sem Bolsonaro. Acredito que essa hipótese não se vislumbra no curto prazo. Bolsonaro ainda é a principal liderança da direita, em especial por ser o único com força real de mobilização social. No entanto, é verdade que cresce cada vez mais uma extrema direita para além de Bolsonaro, mesmo que não possa ainda construir antagonismo total com este. Há um tipo de afetação social que, em razão também das derrotas de Bolsonaro, tem sido capitalizada por aqueles que se mantêm mais filiados à lógica radicalizada da extrema direita. Assim como se construíram lógicas autônomas e centros de poder político fora do controle de Bolsonaro, em especial no congresso nacional, como é o caso de Arthur Lira.
As eleições municipais deste ano serão determinantes para essa disputa interna dentro da extrema direita, com importantes implicações nas eleições de 2026. O peso do apoio de Bolsonaro na eleição é um fator a se considerar para medir o que muda com a reversão de votos dele sem a máquina governamental presidencial. Não há (ainda) dúvidas de que ele é a principal liderança popular com capacidade de mobilização social da extrema direita. Mas o tamanho do seu impacto eleitoral pode ser reduzido, mantido ou ampliado de acordo com essas eleições. Nem sempre a mobilização popular e a densidade eleitoral correspondem completamente. Esse será um termômetro fundamental para os desdobramentos dessas disputas internas da extrema direita para o próximo período.
Nesse sentido, o principal pólo de disputa interna da extrema direita é a eleição de São Paulo. O Monitor do Debate Político da USP apontou, entre os presentes na manifestação de 7 de setembro, que o apoio de Pablo Marçal para a disputa à prefeitura é de cerca de 75%, enquanto o de Ricardo Nunes de apenas 8%. O candidato oficial do PL e de Bolsonaro é Nunes, mas quem tem atraído o bolsonarismo mais radicalizado e orgânico é Marçal.
Durante a manifestação de sábado, Nunes esteve ao lado de Bolsonaro e Tarcísio no carro de som. Marçal, por sua vez, não subiu. Embora estivesse confirmado anteriormente (segundo ele à convite de Bolsonaro) no carro, alegou que o impediram de subir e optou pela agitação na base da manifestação, tendo demonstração significativa de apoio. A organização do ato aponta que Marçal não subiu porque chegou após o horário dos discursos. Interessa pouco a averiguação deste detalhe, mas a disputa de narrativa tem sido significativa entre a extrema direita que apoia Nunes e a que apoia Marçal.
Marçal direcionou a artilharia das suas redes sociais após manifestação exatamente em descredibilizar o apoio popular da figura de Nunes, comparando a adesão a sua candidatura que goza de maior apelo dos manifestantes (o que é verdadeiro, conforme pesquisa do Monitor já mencionada). Mas sobretudo, joga com a ideia de ser antissistema dentro do próprio bloco antissistêmico (é assim que a extrema direita se reivindica)1 – o que fortalece a narrativa de compor a base mais radical e “genuína” desta extrema direita, tendo esse “personagem” um apelo imenso para essa base social.
Não à toa a sua ascensão é meteórica na disputa às eleições de São Paulo. Sem direito a aparição no programa de TV, sua estratégia se baseou no engajamento através das redes sociais e da truculência dos debates e entrevistas de televisão. A eleição vem mudando de rumo após a sua apresentação, pois é impossível ignorá-lo e, ao mesmo tempo, essa impossibilidade transforma a eleição numa pancadaria televisionada, tendo pouco espaço para propostas e debates sérios sobre a cidade de São Paulo. Nesse sentido, a guerra cultural, ou seja, a batalha das ideias e dos valores ganha ainda mais força.
Por tudo isso, São Paulo se encontra numa encruzilhada. As eleições contam com duas candidaturas da extrema direita com perfis distintos e apenas uma candidatura do campo progressista com chances eleitorais, a de Guilherme Boulos (PSOL). Isso significa que há risco de haver um segundo turno entre dois candidatos da extrema direita – embora seja pouco provável que Boulos não vá para o segundo turno, inclusive pela divisão da própria cidade, que deu maioria (apertada) a Lula no segundo turno das eleições de 2022.
Nunes tem contra ele a sua péssima administração da cidade. Cara, hiper congestionada, violenta e barulhenta é a apresentação da São Paulo de Nunes, características que sempre compuseram esse cenário, mas ganhou outra dimensão pós pandemia e sua gestão. Também é um candidato insosso, que adere à extrema direita também por oportunismo (embora sua gestão seja absolutamente alinhada aos interesses e pautas dessa política). O apoio de Bolsonaro e Tarcísio podem não ser suficientes, ainda mais considerando que, nas entrelinhas, Bolsonaro esteja liberando o voto no Marçal.
Num primeiro momento, a candidatura de Marçal se expressou como antagonista de Bolsonaro, com rivalização direta com Carlos Bolsonaro e desautorização de Jair Bolsonaro. No entanto, conforme a força de Marçal e seu protagonismo em defender o jogo sujo de fake news e política performática da extrema direita foi se consolidando, a estratégia mudou pelos dois lados.
Marçal mesmo quando atacou Carlos, tentava uma aproximação com Jair. Sabia que podia correr por fora, mas não totalmente contra Bolsonaro. Por isso, se apresentou como quem seria o principal representante da forma de fazer política que Bolsonaro inaugurou. Já Bolsonaro, não manteve a disposição de permitir o crescimento de uma candidatura de seu campo, completamente avessa a sua influência – o que poderia levar a questionar o quão determinante é seu apoio para a vitória eleitoral.
Nas eleições de 2022 ficou evidente a importância de seu apoio. No entanto, desde 2023, conforme já exposto, há uma maior diversificação das lideranças de extrema direita, em especial desde quando se abriu a disputa para a candidatura presidencial de 2024. Por isso, São Paulo é tão importante. E por essa razão, Bolsonaro não deixará de promover algum apoio a Marçal, enquanto este manter sua viabilidade eleitoral e, sobretudo, obtiver a adesão de sua base mais orgânica (que vai para rua no 7 de setembro através do seu chamado mas demonstra maior adesão à candidatura não oficial).
Julia Almeida V. da Silva é autora de A militarização da Política no Brasil Contemporâneo (Alameda, 2023), doutoranda em Direito pela USP, professora e pesquisadora do DHCTEM/USP e CAAF/Unifesp.
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[1] Embora saibamos que ela está introjetada nos setores políticos tradicionais da política brasileira. No entanto, em relação a institucionalidade posta, a sua batalha em relação ao judiciário e a lógica legalista, esses buscam saídas mais violentas com o aparato vigente. longe de serem uma alternativa anticapitalista, mas a rigor costumam ser ultra capitalistas, propõe uma visão de ruptura com a lógica do estado liberal clássica).