O assassinato como política pública
Ao reforçar capacidade letal de suas polícias, lideranças políticas apostam que seu eleitorado aceita ser protegido através do extermínio.
Em agosto de 1970 a revista Veja estampou em sua matéria de capa uma inédita investigação acerca dos grupos conhecidos como “Esquadrões da Morte”. Os anos duros da ditadura militar brasileira carregavam consigo um experimento já consagrado em outras experiências autoritárias: a formação de grupos armados para a execução sumária de pessoas tidas como indesejadas. À época, tais pessoas compunham dois grupos principais: a dissidência política de esquerda e os chamados “bandidos”, categoria em expansão no noticiário popular e que viria a representar as camadas pobres dos mercados ilegais.
A matéria do semanário trazia como destaque as investigações jornalísticas que demonstravam tanto a ligação orgânica entre os Esquadrões e as corporações policiais do Rio de Janeiro e São Paulo quanto a omissão (e no limite, anuência) dos comandos políticos frente a existência destes grupos de extermínios. O texto da matéria colocava em evidência dois argumentos possíveis para o surgimento destes grupos armados, autônomos e vindos de corporações estatais: eles seriam frutos da corrupção policial ou uma extensão consentida dos poderes de polícia para além do arbítrio da lei? Além da reportagem investigativa, a revista também produziu um encarte com uma pesquisa de opinião realizada pela empresa Marplan. A pesquisa foi conduzida nas capitais carioca e paulista, com um universo de 420 pessoas e tinha como objetivo aferir os índices de aprovação da existência dos EM e de suas atividades.
Os resultados, apesar de parciais já que não traça uma linha do tempo e conta com um grupo relativamente pequeno de entrevistados, pintava um retrato preocupante e conhecido. Os resultados paulistanos foram os seguintes: 60% dos entrevistados afirmavam ser a favor da existência dos Esquadrões da Morte. Entre os argumentos que justificavam tal afirmação, três se sobressaem: Os elementos eliminados seriam irrecuperáveis (49%); os meios da justiça não bastam para impedir o crime (38%); e os meios do Esquadrão são eficientes no combate ao crime (13%). Já os resultados das entrevistas no Rio de Janeiro eram distintos: 67% se diziam contra a existência dos Esquadrões e 40% destes afirmavam que o governo deveria agir ativamente contra sua existência.
A matéria aqui resumida antevê um duplo processo que parece voltar nos tempos atuais: o primeiro diz respeito engenharias institucionais que produzem grupos de extermínio e o segundo diz respeito a aceitação popular para este tipo de ação. A pergunta de fundo é, basicamente, esta: você aceita uma segurança produzida por um assassino? Evidentemente, à época dos Esquadrões tanto a pergunta quanto o índice da resposta carregavam status de especulação, uma vez que os números eram baseados em entrevistas e impressões tópicas e a produção sistemática de dados acerca do trabalho policial era sufocada pela censura. Cinquenta anos depois e num ambiente formalmente democrático, o experimento de matar para proteger parece ter ganho fôlego renovado.
O findar do primeiro mês deste ano trouxe, finalmente, os dados mais estabilizados sobre letalidade policial em 2019, junto com os números de homicídios gerais do mesmo ano. Tanto Rio quanto São Paulo apresentam tendências parecidas: aumento exponencial das mortes produzidas por suas polícias e relativa queda nos números de homicídios gerais, perpetrados por populações civis. Para além da sempre saudável suspeita acerca da validade destes números, com possibilidade de fraude, é notável como estes estão sendo exibidos em veículos de imprensa e canais oficiais de informação.
Longe de serem frutos de investigações aprofundadas, a relação entre aumento da capacidade letal das polícias em São Paulo e Rio e a divulgação da queda dos homicídios totais vêm sendo representadas como relações causais, de modo que não é raro encontrar o argumento de que os números de segurança melhoraram não apesar do extermínio policial e sim por sua causa. Esta popularidade do assassinato como política pública parece ganhar cara renovada uma vez que, diferente do contexto que abre este texto, não se trata de grupos secretos ou mesmo de governos inaugurados por golpe de Estado.
Leia edição de fevereiro de 2020 sobre violência de Estado.
Matar como propaganda eleitoral
Esta prática representa um certo tipo de disposição política acerca dos limites possíveis para a produção de uma sensação de segurança. Se pelo lado das lideranças políticas, o incentivo a estatização do extermínio demonstra uma nova volta no parafuso da relativização do direito à vida, pelo lado da sua ressonância popular o quadro é ainda mais preocupante. Os índices de aprovação deste tipo de processo pode ser interpretado como uma diferenciação evidente entre quem deve viver e o que deve ser feito para que os vivos tenham uma vida boa. Estes índices podem ser aferidos de maneira indireta através dos movimentos dentro dos processos eleitorais no passado e no futuro recente. Se as eleições de 2018 elegeram majoritariamente políticos que prometiam a expansão da violência de Estado, o cumprimento desta promessa na forma do aumento das mortes produzidas pela polícia e sua subsequente justificação pública por lideranças políticas parece apontar que tal propaganda do extermínio não é visto apenas como forma ascensão ao poder, mas também como ferramenta de sua manutenção.
Pode se antever que esta expansão da capacidade letal do estado em nome da segurança pode ser encarada como uma aposta por parte de lideranças políticas de que, afinal, se não são todos os brasileiros que se preparam todos os dias com a disposição para matar aqueles que consideram ameaçadores, há uma parcela suficiente destes legitimamente dispostos que outros o façam sem grandes ressentimentos. Ao ser alçado como solução ideal para o problema da criminalidade urbana, esta propaganda do poder letal da polícia parece inclusive capaz de sufocar o debate e fazer com que quaisquer críticas ou alternativas sejam encaradas como condescendência em relação aos bandidos ou inocência frente ao que se deve fazer para combater os supostos criminosos. Isto parece afetar especialmente políticos de esquerda que agora parecem dispostos a mimetizar as práticas violentas da extrema direita, como pode se observar nas gestões de segurança pública dos estados do nordeste e declarações de mandatários acerca da semelhança entre policiais homicidas e atacantes de frente ao gol.
Por fim, que as técnicas da produção desta segurança carregue consigo a perpetração e posterior exploração política da morte prematura de grupos sociais inteiros já avançado estágio de desumanização; que o aumento da autonomização policial possa produzir um descontrole que levaria a milicianização ou que o processo de autonomização de grupos armados seja relativamente fácil de começar e quase impossível de interromper, não parece ser exatamente um problema para seus incentivadores. Nestes casos, é bom atentar para as capacidades de proteção frente aos resultados desta necropolítica. Se este incentivo ao extermínio estatal der em resultados inesperados, é de se apostar que não será pelo caminho da escola dos filhos das elites políticas que a bala perdida do soldado viajará. Contudo, mesmo que a popularidade destes assassinatos se mantenham, é sempre bom lembrar a tese de Walter Benjamin ao analisar o papel de suposta solução quando do aparecimento da violência extrema no processo histórico: “O Messias não vem ao solo apenas como redentor mas também como vencedor do anticristo”. Para além da coincidência nominal e de uma certa predileção de correntes de direita em equiparar o crime ao demônio, parece que estamos mais uma vez diante de um ciclo infernal de produção de violências totais e publicamente apoiadas.
Não será surpresa se, daqui vinte anos, nos depararmos com os números totais desta tragédia para então termos que nos perguntar, mais uma vez, como foi possível que uma matança desta escala ocorresse com o apoio popular. Em uma época em que a palavra genocídio voltou a voga como conceito, não seria de se espantar que ele também funcionasse para aferir a escala das mortes após anos de assassinato como política pública de sucesso.
Evandro Cruz Silva é educador popular, sociólogo e doutorando em Ciências Sociais pela Unicamp.
Notas
BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. Tese VI.
VEJA, Revista. Julho de 1970. “O fim da justiça: a polêmica do esquadrão da morte”.