O Brasil como campo de provas da selvageria
Não é apenas o livre trânsito do vírus Sars-Cov-2 que este governo vê com complacência e até bons olhos, preferindo apostar na mão invisível da “imunidade de rebanho” a salvar centenas de milhares de vidas. Também na dimensão econômica há uma estratégia genocida, talvez menos perceptível
Já temos um ano de pandemia, mais de dois de Bolsonaro e mais de cinco de austeridade fiscal. As mortes por Covid-19 mataram mais de 300 mil brasileiros, as indústrias fecham as portas, a economia se esfarela a olhos vistos, a taxa de desemprego se aproxima dos 15%, enquanto a população subutilizada já representa quase uma em cada três pessoas da força de trabalho do Brasil. Estamos enredados na pior crise de nossa história e, por mais estranho que possa parecer, Bolsonaro segue fazendo sua arruaça cotidiana nos gradis do Palácio do Planalto. Como pode?
O governo Bolsonaro é, antes de mais nada, um arranjo político incidental que arrendou o poder alcançado por vias tortas aos interesses dos garbosos do mercado financeiro, mais recentemente bem batizados de “farialimers”. Noves fora, é esse fio de ouro que alinhava os farrapos do governo do capitão. É verdade que milicos, milícias e congêneres lhe servem de escora aqui ou acolá, mas não deveria ser segredo para ninguém que quem conta mesmo é o bloco rentista, a banca financeira que tem em Paulo Guedes seu bate-pau mor.
E são impressionantes os feitos de Guedes nesses dois anos e pouco de gestão. Imbuído da insólita bandeira do “desinvestimento” – sim, ele criou a “Secretaria Especial de Desestatização e Desinvestimento” –, o ministro conseguiu derrubar a taxa de formação bruta de capital fixo (a taxa de investimento, a mais importante variável da saúde econômica de um país) ao seu pior patamar dos últimos cinquenta anos (15,4% em 2019 e 16,4% em 2020). No ano passado, a taxa só não foi mais baixa porque a queda do PIB (–4,1%) foi ainda mais bruta do que a dos investimentos (–0,8%).
Na fronte da desestatização, claro, o ministro já tem uma extensa capivara para apresentar e uma frase de efeito na ponta da língua para lacrar em suas lives: “Estatal boa é a estatal que foi privatizada”. Até o início de 2021, já eram mais de trinta as empresas do governo federal privatizadas, a grande maioria altamente rentável, desmembradas do complexo Petrobras por meio de um olé na Constituição Federal, em operação que contou com a solene complacência do STF. Como se não bastasse, o ministro se vangloria de utilizar os recursos abiscoitados com a xepa das estatais para reduzir a dívida pública do governo central, uma operação que não tem nenhuma razoabilidade econômica, a não ser que se trate de atender aos interesses do seleto clube dos que ganham dinheiro especulando com títulos públicos.
Por essas e muitas mais, o ministro Paulo Guedes tem se revelado a cada dia mais inepto para comandar a economia do país, mas cada vez mais útil para reduzir a pó o que diversas gerações de brasileiros com espírito público levaram décadas para construir.
Não custa recordar que até o fim da década de 1970 o Brasil foi, a duríssimas penas, o caso de sucesso a ser copiado quando o assunto era “industrialização tardia”. Fomos capazes de estruturar em quarenta anos um sistema industrial amplo, complexo e moderno que tinha como espinha dorsal um conjunto de conglomerados estatais cuja função era, a um só tempo, fornecer insumos e matérias-primas a preços competitivos e realizar investimentos e pesquisas em projetos de longa maturação que criavam demanda e serviam de norte aos investimentos privados. Como uma frota de parrudos navios quebra-gelo, os conglomerados estatais brasileiros inventavam mercados neste rincão inóspito da periferia mundial, tomando para si os riscos privados e abrindo espaço para a emergência de capitalistas nativos.
Mas Guedes, sabemos, dá de ombros para isso tudo. Depois de breve estágio no laboratório de neoliberalismo de Augusto Pinochet, nosso ministro saltou dos manuais de microeconomia para a ciranda financeira da década de 1980, uma verdadeira esbórnia alimentada pela estratégia adotada pelo governo militar para pagamento dos serviços da dívida externa. Naquele ambiente viciado, viu dinheiro produzir dinheiro, sem graxa, sem parafuso, sem pedreiro, caibro ou cimento. Como muitos economistas de sua geração que atuaram naquele ambiente exótico, logo fez fortuna e dela tirou a crença da superioridade do liberalismo econômico ultrarradical que lhe inundou os sentidos e hoje parece obscurecer sua vista.
Incapaz de enxergar as múltiplas dimensões da vida e da economia nacional, esse mesmo sujeito tem feito pior. Semanas atrás conseguiu aprovar no Congresso Federal a PEC n. 186, cujo estandarte era a retomada do auxílio emergencial – agora em valores reduzidos (média de R$ 250 por mês), por um período mais curto (até quatro meses) e para apenas um quarto dos beneficiários que receberam o anterior. A mutreta, entretanto, deu-se na antessala da elaboração da PEC. Para liberar até R$ 44 bilhões do orçamento de 2021 às famílias que passam fome, Guedes exigiu como contrapartida a criação de gatilhos que bloqueiam as despesas públicas do governo federal sempre que elas alcançarem o nível prudencial de 95% da receita. Como as receitas andam anêmicas, na prática Guedes dispõe agora de uma máquina de produzir austeridade que será capaz de esfacelar o que resta de serviços públicos no país. Como fez em diversas oportunidades, o ministro usou de absoluta má-fé para fazer passar seu estratagema. O auxílio emergencial poderia ser aprovado independentemente da PEC, por meio de crédito extraordinário, como ocorreu em 2020, e, portanto, sua vinculação aos gatilhos nada mais foi do que uma forma ardilosa encontrada pelo ministro para chantagear o distinto público e dissimular suas reais intenções – aliás, esse parece um traço de personalidade profundamente lamentável e recorrente do ministro: como que motivado por algum impulso perverso, sempre que se vê obrigado pelas circunstâncias a ceder em benefício da sociedade ou do país, ele arma uma arapuca para retirar com mão de gato mais do que teve de entregar a contragosto.
O duro, o difícil e o ainda mais preocupante é que Guedes se dedica não apenas a uma política econômica equivocada, ineficaz e com graves e imediatas consequências sociais, mas principalmente a castrar as possibilidades de ação de futuros governos. O exemplo mais evidente – mas não o único! – dessa estratégia foi a recente aprovação da autonomia legal do Banco Central. Com o Congresso no bolso, domado com inédita liberação de recursos federais para emendas parlamentares, Guedes retirou da órbita direta de ação de futuro presidente da República dois dos principais instrumentos de governança de uma nação: a definição da política monetária (taxas de juros) e a condução da política cambial (que quando deixada às vontades do mercado faz a alegria de especuladores nativos e gringos enquanto afunda e limita os planos de investimento produtivo no país). De quebra, já na primeira reunião da diretoria do BC após a aprovação da autonomia legal, deu-se o início de um novo ciclo de aumento da taxa Selic, elevando a taxa anual de 2% para 2,75% – que representa uma ampliação de despesas financeiras (estrategicamente apartadas do “teto de gastos” na estranha contabilidade pública que vigora no Brasil) de aproximadamente R$ 25 bilhões por ano, isto é, mais da metade do que foi disponibilizado para o auxílio emergencial.
Assim, não é apenas o livre trânsito do vírus Sars-Cov-2 que este governo vê com complacência e até bons olhos, preferindo apostar na mão invisível da “imunidade de rebanho” a salvar centenas de milhares de vidas. Também na dimensão econômica há uma estratégia genocida, talvez menos perceptível. Paulo Guedes não perde uma oportunidade para extirpar do tabuleiro da nação todo e qualquer aparato econômico, político ou legal que sirva de anteparo à animosidade do capital financeiro. De forma acelerada, revela-se empenhado em oferecer o Brasil como laboratório ou campo de provas que permita ao capital levar ao limite suas estratégias de acumulação de curtíssimo prazo, independentemente da destruição que provoque no tecido econômico e social e da quantidade de vidas que vão sendo descartadas pelo caminho.
*Marcelo Manzano é economista e pós-doutorando do Instituto de Economia da Unicamp.