O Brasil e a pior política de drogas do mundo
A política de drogas brasileira é a pior do mundo porque, mesmo quando inovamos minimamente em termos legislativos, nós temos as piores práticas da justiça criminal quando o assunto é a lei de drogas
Na última semana o Global Policy Index 2021, um ranking inédito que estabelece uma análise global sobre política de drogas, comparou 30 nações e chegou a conclusão que o Brasil possui a pior politica de drogas do mundo: ficamos na última posição, atrás de Uganda (29°), Indonésia (28°) e Quênia (27°). As primeiras posições são ocupadas, pela ordem, por Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Austrália e Canadá. Sobram repressão e desproporcionalidade no sistema de justiça criminal brasileiro. Falta política de saúde. E falta muita redução de danos. Apesar de muito interessante (e verdadeiro) o ranking faltou explicitar uma informação fundamental: a política de drogas brasileira é a pior política de drogas do mundo porque mesmo quando inovamos minimamente algo em termos legislativos (e aprovamos leis que ampliam pequenas garantias e direitos fundamentais dos acusados) nós temos as piores práticas da justiça criminal do mundo quando o assunto é a lei de drogas. Logo, o líder (de trás pra frente) da pior política de drogas não conquistou hoje essa posição. Muito pelo contrário, pois, data dos anos 2000: a aprovação da lei 11.343 em 2006 – a chamada Lei de Drogas – é o principal fator impactante no cenário de encarceramento massivo e do punitivismo terra brasilis que prende 30% da população prisional por drogas – 60% entre as mulheres e a esmagadora maioria jovens, pretos e periféricos, superlotando “as prisões da miséria”.[1]
Com a nova lei – dividida em duas metades –, definitivamente se assume e explicita a desigualdade da população brasileira para dentro de um novo dispositivo legal: a nova lei de drogas terá uma metade médica-preventiva para poucos uns e outra metade jurídico-repressiva para muitos outros; uma metade vazia de prevenção e uma metade cheia de prisão; uma redução da pena para o uso de drogas (das classes médias) e o aumento da pena para o tráfico de drogas nas classes populares. Esses mecanismos e dispositivos não se tornaram aceitáveis por um direito originário, mas tiveram condições específicas de aceitabilidade e enunciação – “uma média de conhecimento”, como foi dito na época no Congresso Nacional. Ora uma “nova” maneira de administração estatal da droga no Brasil e que desenvolveu velhas práticas no interior do sistema de justiça criminal: “Parabéns ao Brasil, que terá uma lei que vai tratar diferentemente pessoas que são diferentes”, cravou nos debates parlamentares o então deputado federal Cabo Júlio (PSC/MG), logo após a aprovação da emenda do artigo 28 que retirou a pena de prisão (e a multa) para os usuários de drogas, rechaçando qualquer possibilidade de direitos iguais numa perspectiva de cidadania efetiva.
Logo, de imediato a principal implicação da nova política pública foi à explosão por encarceramento por drogas. Na época, em nossas visitas da Pastoral Carcerária nas unidades prisionais paulistas, logo observávamos a mudança no perfil dos presos por drogas: moradores de ruas, usuários e pequenos comerciantes de drogas passaram a povoar os centros de detenção provisória. O aumento verificado de perto refletia, a partir de 2006, a intensificação do número absoluto e percentual dos presos e presas drogas. Por meio da análise dos dados nacionais sobre a população carcerária houve o crescimento absoluto e percentual da população carcerária brasileira, já que, em termos percentuais, o comércio de drogas é responsável hoje por 30% de toda população carcerária – 207.794 mil presos por drogas de um total de 811.00 mil presos. Em 2005, antes da lei entrar em vigor, este percentual era de 13% – 32.880 mil presos por drogas (Depen, 2021). Entre as mulheres presas, 56% possuem um perfil: jovem, de baixa renda, em geral mãe, presa provisória suspeita de crime relacionado ao tráfico de drogas[2].
Quando se analisa mais de perto a origem social dos incriminados por drogas (fiz para a cidade de São Paulo em minha pesquisa de doutorado na USP[3]) observamos o que denomino aqui como punitivismo terra brasilis: das 1256 pessoas presas nos bairros de Santa Cecília e Itaquera, entre 2005 e 2009, temos 1,3% com ensino superior completo e 1,4% com ensino superior incompleto. De modo contrário, a maioria dos sujeitos criminalizados concentra-se no ensino fundamental incompleto com percentual correspondente a 22,5% e, sobretudo, no ensino fundamental completo em 50,2%. Somando os dois percentuais (ensino fundamental completo e incompleto) têm-se 72,7% = 914 indivíduos em um universo pesquisado de 1256.

Ora, o ponto é que o espaço social e as diferenças que nele se desenham “espontaneamente”[4] tendem a funcionar simbolicamente como espaços de estilização da vida cotidiana ou com um conjunto de grupos caracterizados por estilos de vida diferentes. Logo, a procura da distinção – que pode marcar-se nas maneiras de falar até a recusa a um casamento desigual – aparecem no Brasil ainda no início da formulação da Lei de Drogas e, posteriormente, na sua implementação na distinção que o sistema de justiça observa apenas nas classes sociais excluídas como alvo de “enquadros” e objetos da intervenção criminal por uso e comércio de drogas. As classes médias e altas consomem e comercializam drogas, como se sabe. No entanto, a produção dessas separações no espaço público brasileiro (como apontam os dados acima) está destinada a serem percebidas, ou melhor, a serem conhecidas e reconhecidas como diferenças legítimas baseadas mostrando como no caso brasileiro a pior política de drogas espelha a cidadania vertical onde uns possuem muito mais direitos do que outros.
Mas nos enganamos se restringirmos somente a justiça criminal a este processo. Tal processo ocorreu já no início da industrialização pela exploração da força de trabalho, como nos ensina Francisco de Oliveira,[5] e pela não transição da escravidão para o trabalho livre para os negros. E esse processo específico de acumulação por estas duas formas centrais acarretou: i) fornecimento de maciços contingentes populacionais que iriam formar os “exércitos de reserva” dos pobres e negros nas cidades, redefinindo as relações capital-trabalho e multiplicando a forma acumulação via industrial; ii) fornecendo os excedentes alimentícios na reprodução da força de trabalho rural, formando uma “economia de subsistência urbana”. É esse duplo registro que articula a superlotação das prisões brasileiras – repleta de desempregados, trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio formal e informal que formam uma verdadeira economia de subsistência das drogas (em minha pesquisa de doutorado encontrei de 1256 pessoas presas. Destas, os desempregados representavam 20,7%, os trabalhadores da produção de bens e serviços industriais, 14,6%; e trabalhadores dos serviços, vendedores do comercio em lojas e mercados, 31,4%.).
É tarefa urgente, portanto, mudar a atual política de drogas. Entender, para além da necessária descriminalização, que não é apenas a politica de drogas que é a pior do mundo. Mas sim a forma como opera a relação de dominação e subordinação no interior das práticas de nossa justiça criminal. O punitivismo terra brasilis rejeita, portanto, qualquer tipo de pequenas inovações. Ou, pior ainda, compreender que a política de drogas e a política criminal brasileira são formuladas e colocadas em prática somente para uns. Mas a maioria, sem nenhum![6]
Marcelo da Silveira Campos é doutor em Sociologia pela USP, professor da UFGD e professor convidado da Faculdade de Medicina da USP. Pesquisador do INCT-InEAC/UFF.
[1] WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
[2] BRAGA, Ana; ANGOTTI, Bruna Dar à luz na sombra. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
[3] CAMPOS, Marcelo. Pela Metade: a lei de drogas do Brasil. 1. ed. São Paulo: Annablume, 2019.
[4] BOURDIEU, Pierre. Espace social et genèse des “classes”. In: Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 52-53, juin 1984. Le travail politique. pp. 3-14.
[5] OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
[6] “A maioria sem nenhum” é um samba de Elton Medeiros e Paulinho da Viola presente no álbum “Samba na Madrugada”, lançado em 1966.