O Brasil está queimando
O modelo de desenvolvimento atual, predatório e voltado para o maior lucro imediato é o responsável por essa situação. Não é por outra razão que grandes fazendas que estão na região do Cerrado aterram milhares de riachos e nascentes de água para ampliar sua área de plantio – água que normalmente alimentaria o Pantanal, a caixa-d’água de muitos rios brasileiros.
Com a conivência do governo federal, o Brasil está queimando. Por meio do desmonte dos órgãos de fiscalização e controle ambientais federais – Ibama e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) –, somado à conivência do Ministério do Meio Ambiente, da Polícia Federal e do Ministério da Justiça, além do controle sobre o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que produz mapas que registram o avanço da devastação ambiental, e a Funai, responsável pela preservação das reservas indígenas, o governo Bolsonaro abriu a porteira para passar a boiada. As leis existem, mas não são respeitadas, e a impunidade estimula o crime ambiental. O Fundo Amazônia, criado em 2008, foi suspenso em abril de 2019 pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Com doações bilionárias da Noruega e da Alemanha, ele servia principalmente para financiar os órgãos públicos de controle e fiscalização ambiental. Deixamos de ter viaturas, helicópteros e aviões fiscalizando o desmatamento.
Os grandes proprietários rurais ligados à produção da carne e da soja literalmente tocaram fogo nas matas para ampliar suas áreas de pastagens e de plantio. Numa ação de grilagem de terras que passa inicialmente pelo corte ilegal de madeiras nobres na floresta, a que se dá o nome de desmatamento, e posteriormente tocando fogo na floresta remanescente, ainda em pé, abre-se o espaço para dar lugar a pastagens. Os mapas do Inpe e da Nasa identificam que mais da metade dos focos do fogo na Amazônia ocorre em matas que ainda estão em pé, e 80% desses incêndios começam nas grandes propriedades rurais. A Amazônia é uma floresta úmida, ela não pega fogo espontaneamente, é a ação dessas empresas e de grandes proprietários rurais que provoca o fogo, a devastação, a destruição das florestas e da vida silvestre.
São milhares de focos de incêndio na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal. É um ataque nunca visto em sua dimensão a um ecossistema que já se encontra extremamente vulnerável pelo aumento da temperatura ambiente e a falta de chuvas, fatores também decorrentes de queimadas e desmatamentos anteriores.

Mas o desastre não para aí. Quando se destrói criminosamente as florestas para dar lugar a pastagens, o equilíbrio ecológico é afetado e impacta todo o Brasil, de norte a sul. São milhões de hectares devastados, mas, mais do que os números, é preciso saber que mais de 17% da Amazônia foi desmatada e de 20% a 30% das florestas do Pantanal também. Se ultrapassarmos 20% de destruição da floresta amazônica o sistema não se sustentará e terá início a savanização da região. O impacto dessa destruição da cobertura vegetal vai afetar o fornecimento de água em todo o país.
É bom que se diga que já tivemos políticas de controle e contenção do desmatamento muito eficazes e que colocaram o Brasil na liderança dos processos mundiais de preservação ambiental. Segundo Mario Astrini (IEA-USP), secretário executivo do Observatório do Clima, de 2004 a 2012 o Brasil reduziu em 80% o desmatamento, passando de 27 mil km 2 em 2004 para 5 mil km 2 em 2012. Isso foi conseguido graças ao esforço conjunto do Ibama, da Polícia Federal e das polícias estaduais. Números nada comparáveis ao desastre ambiental atual, em que apenas em Mato Grosso foram queimados 1,4 milhão de hectares (Ibama/Prevfogo). Nessa região, o Instituto Centro de Vida (ICV) identifica nove focos de incêndio como a principal causa dessa devastação, todos originados em fronteiras de grandes fazendas.
Por que esses incêndios afetam a todos nós? A Amazônia produz o que se denomina de “rios voadores”. De 50% a 70% de suas chuvas provêm das nuvens que vêm do Oceano Atlântico. Essa chuva é reciclada pela floresta, que por sua vez produz nuvens de água limpa que são carregadas pelos ventos e levadas para o Pantanal, para o Centro-Oeste, o Sudeste e o Sul do país. As florestas também estocam carbono, que, se for liberado, tem um impacto muito forte no clima e no aquecimento global.
Com a destruição das florestas e a fumaça das queimadas interagindo com as nuvens, as chuvas que vêm do oceano não ocorrem e todo o ciclo de produção dos “rios voadores” se compromete. Por sua vez, o Pantanal funciona como uma grande caixa-d’água que distribui essa água pelos rios que servem a outras regiões. Se o Pantanal não recebe o volume de chuvas necessário, essa distribuição também fica comprometida. Os ecossistemas são integrados: se uma parte como a Amazônia ou o Pantanal é afetada, todo o sistema sofre. As secas ficam mais longas e o período de chuvas fica menor, mas mais intenso. Não nos esqueçamos da falta de água em São Paulo, em 2014.
O modelo de desenvolvimento atual, predatório e voltado para o maior lucro imediato é o responsável por essa situação. Não é por outra razão que grandes fazendas que estão na região do Cerrado aterram milhares de riachos e nascentes de água para ampliar sua área de plantio – água que normalmente alimentaria o Pantanal, a caixa-d’água de muitos rios brasileiros.
Uma inusitada aliança de governos estrangeiros, fundos de investimento, empresas multinacionais, entidades da sociedade civil nacionais e internacionais faz pressão para que o governo federal contenha o desmatamento e a degradação ambiental. Mas a necropolítica do governo Bolsonaro continua ignorando apelos e pressões. O que vale é atender aos interesses do agronegócio.
Silvio Caccia Bava é editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.