O capitalismo autoritário de Jair Bolsonaro
O bolsonarismo se constitui como uma nova forma de fazer política, que se sobrepôs ao modo como o sistema político brasileiro funcionou ao longo de trinta anos (entre 1988 e 2018). Tornou-se impossível pensar e fazer política no país sem levar em consideração o novo paradigma bolsonarista, cujos traços como modelo político cabe esmiuçar
Não se sabe ao certo o que Jair Bolsonaro fará a partir do dia 1º de janeiro. Essa incerteza decorre da falta de apresentação de propostas concretas durante a corrida eleitoral. Para ele, tão estratégico quanto aquilo que de fato foi dito, é tudo o que não foi dito. Um populismo místico define a sua personalidade pública, que soube explorar a insatisfação com o sistema político a partir de uma lógica que se resume na frase “precisa mudar isso daí” – e que não carece de um conteúdo concreto para funcionar.
Se diz muito pouco sobre o que será feito. Quando algo é dito, o que se esboça são traços de uma forma de governo que floresce ao redor do mundo: o capitalismo autoritário. Este texto analisa a imagem que se projeta de um Brasil sob o comando de Bolsonaro. Para tanto, acredito ser necessário levar em conta tanto falas expressas e propostas concretas (que são muito poucas), como os silêncios e curtos-circuitos nas informações entre presidente eleito e sua equipe. Onde muitos especialistas vêm trapalhadas e despreparo, acredito que podemos vislumbrar uma estratégia complexa.
O que é capitalismo autoritário?
Capitalismo autoritário é o nome dado para se referir às formas de governo que combinam Estado autoritário com economia de livre mercado. O modelo pouco provável, embora muito influente, de capitalismo autoritário nasce na pequena cidade-Estado de Singapura, na Ásia. O filósofo esloveno Slavoj Zizek, em artigo escrito para o Financial Times, questiona: “Para quem serão construídos monumentos, daqui a um século?”. “Entre eles”, responde, “talvez esteja Lee Kuan Yew. Ele será lembrado não apenas como o primeiro primeiro-ministro de Singapura, mas também como o criador do capitalismo autoritário, uma ideologia estabelecida para moldar o próximo século tanto quanto a democracia moldou o século anterior”.
Lee Kuan Yew, primeiro mandatário do país após a separação da vizinha Malásia, soube conduzir a pequena ilha em meio a conflitos étnicos e pobreza extrema. Para tanto, ele promoveu a atração de investimentos estrangeiros, ao realizar grandes economias nos gastos do governo e criar um ambiente favorável para a inversão em infraestruturas. Se hoje Singapura possui o nono maior PIB per capita do mundo, na frente de países como Estados Unidos e Holanda, o ambiente de estabilidade política que permitiu tal crescimento é decorrente de repressão política atroz: a oposição tornou-se inexistente, assim como greves, o que permitiu a manutenção de salários baixos, aumentando o interesse estrangeiro. A falta de liberdade política é tanta que se tornou impossível distinguir o partido de Lee, o Partido da Ação Popular, do próprio Estado.
Ondas de movimentos pela democratização varreram regimes autoritários no mundo entre 1970 e 1990. Na contracorrente, Singapura manteve seu regime antidemocrático intacto, enquanto assistia o que o mundo imaginava ser um caminho sem retorno para a democracia. Na China o experimento de Lee desdobrou-se para uma escala infinitamente maior. Deng Xiaoping decide, em 1978, após viagem a Singapura, efetivar mudanças no comunismo herdado de Mao Tse-Tung, com a criação de uma economia de mercado alinhada à política autoritária. Hoje, tal modelo é visto por estudiosos como uma ameaça à democracia liberal, e vem ganhando adeptos mundo afora com líderes populistas de direita e de esquerda.
Uma forma capitalista mais adequada para lidar com o crescimento econômico e com as crises globais, já que governos autoritários podem tomar decisões drásticas sem oposição de outros partidos políticos, nem de movimentos da sociedade civil. Mantendo junto de si uma parte da elite e setores da classe média que muito se beneficiam desse modelo.
Brasil na vanguarda do ultra-conservadorismo
Diante da campanha vitoriosa do ex-capitão do Exército e seus correligionários a cargos centrais no Executivo e Legislativo brasileiros, o meu argumento é de que o bolsonarismo se constitui como uma nova forma de fazer política, que se sobrepôs ao modo como o sistema político brasileiro funcionou ao longo de trinta anos (entre 1988 e 2018). Tornou-se impossível pensar e fazer política no país sem levar em consideração o novo paradigma bolsonarista, cujos traços como modelo político cabe esmiuçar.
Uma das formas pelas quais o bolsonarismo se articula é o curto circuito nas informações dadas pelos diferentes agentes políticos que compõem o grupo. A tática não é nova. Consiste em criar uma confusão na opinião pública a respeito das medidas que serão de fato tomadas. Perde-se o referente do assunto debatido. Assessores do líder dizem uma coisa, seus ministros dizem outra, os jornais apontam para as contradições entre versões e então Bolsonaro indica com poucas palavras o caminho do que será feito, embora sem especificar muito, pois não convém sair das abstrações. Essa foi a estratégia vitoriosa na campanha eleitoral e nada indica que ela será abandonada em seu governo.
Às mídias tradicionais, às quais caberia fazer o trabalho de jornalismo crítico, sobra pouco ou nenhum campo de atuação. Como todo governo autoritário, o bolsonarismo já criou uma forma de comunicação direta com grande parte da população, escolhendo os meios privilegiados para que ela aconteça, via mídias sociais, em especial pelo WhatsApp. Trata-se de uma inovação estética, se pensarmos que os autoritarismos do século passado dependiam de formas arquitetônicas grandiosas onde a massa se entendia como parte de um movimento político que compunha a figura do líder. Com a fragmentação das formas de comunicação em grupos semi-autônomos a Bolsonaro, o bolsonarismo já é também bem sucedido nesse aspecto comunicacional: torna as mídias tradicionais inócuas. Pode até ser que exista perseguição direta à imprensa (não podemos nos dar ao luxo de duvidar de nada), mas de certa forma, o mecanismo do bolsonarismo torna a grande mídia desnecessária. Associa a grande imprensa ao sistema político falido, escolhe os seus próprios canais de comunicação descentralizados, e possui uma aliada oficial na grande imprensa: a Rede Record.
É nessa oposição ao sistema político e mídias tradicionais que Bolsonaro constrói sua imagem de outsider, manobra cara aos diversos tipos de populismo. O militar soube captar a insatisfação com um sistema político ineficiente, custoso e no qual a corrupção tem papel estruturante como mediador das negociações e relações entre políticos. Nesse sentido, sua insignificância nas décadas em que esteve na Câmara dos Deputados como parte do baixo clero pesa a seu favor.
Duas propostas concretas, repetidas ao longo da campanha, sem pormenores, são os alicerces do bolsonarismo. De um lado, a retomada de uma economia forte a partir de cartilhas neoliberais ortodoxas elaboradas pelo guru de Bolsonaro, o economista Paulo Guedes. Do outro, uma agenda de combate à criminalidade pelas forças policiais e militares do Estado (vale lembrar que Paulo Guedes trabalhou como professor no Chile de Pinochet, um outro exemplo de capitalismo autoritário). A ausência de detalhes sobre as propostas é conveniente, e em ambos os casos, pode servir de impulso para fortalecer a proposta de uma reforma política ultraconservadora pelo bolsonarismo.
Me explico. O Brasil bateu, em 2017, recorde de assassinatos, com cerca de 60 mil mortos. A violência é um problema concreto, com o qual a população tem de se haver cotidianamente, e que assola todas as regiões do país. Uma guerra ao tráfico, ou uma guerra aos delinquentes é sempre uma forma de punição da pobreza. Independente do tamanho e poderio militar, morrerão civis, policiais e criminosos. Diante de um acirramento da crise da segurança pública, não me surpreenderia que o bolsonarismo se valesse desse fato para dar força à sua proposta de reforma política e de cerceamento de liberdades. Selando a aproximação de seu governo com o modelo do capitalismo autoritário.
O mesmo mecanismo poderá ser utilizado diante de dificuldades para aprovar medidas políticas e econômicas pelo novo governo. Como todo governo autoritário, a culpa dos malogros é sempre do outro. O “Mito” é infalível. Durante sua campanha, e mesmo antes dela, a narrativa para culpabilizar seus opositores já foi criada. Caso não consiga implementar o que deseja, caberá livrar o Estado que foi aparelhado pela esquerda. Tudo isso também deverá fortalecer o ambiente para uma reforma política ultraconservadora. A própria fusão de ministérios, subjugação da Procuradoria Geral da República a Sérgio Moro, um ministro da Justiça que em diversas ocasiões demonstrou o peso político de suas decisões, já começa por minar os frágeis mecanismos de freios e contrapesos da democracia brasileira.
Uma das inflexões que o bolsonarismo traz para a política brasileira diz respeito à lógica da responsabilidade que tem um governante entre o que diz e o que ocorre no país. O bolsonarismo se vale de um ceticismo farsante ao negar que exista qualquer relação entre as falas de ódio de Bolsonaro contra minorias e as violências perpetradas contra a comunidade LGBTQI, negros e indígenas. Um certo padrão de normalidade é elegido como regulador de como a política deve ser. E é provável que esse campo de pautas morais seja utilizado de maneira estridente, tanto para dar uma resposta a anseios da população incitados ao longo da campanha, como em uma lógica de mostrar serviço. Não por acaso já começaram campanhas de deputados bolsonaristas para alunos delatarem professores que trazem conteúdo crítico para a sala de aula. Em um regime autoritário, diferente da democracia, a crítica perde espaço, e aqueles que a realizam passam a ser perseguidos.
Por fim, a admiração por Carlos Brilhante Ustra, o elogio da tortura e a negação de que tenha havido uma ditadura militar no país (Bolsonaro fala em um governo de militares) dão o tom do que se pode esperar. Existe uma crença na violência e no controle de corpos como forma de manter um governo forte e com pujança econômica. “Quem não fizer nada errado não tem o que temer”, dizem alguns bolsonaristas em conversas e discussões em mídias sociais. O problema é que o poder de decidir quem está fazendo algo certo ou errado está na mão de pessoas com ideias muito definidas daquilo que consideram certo ou errado, mesclando convicções pessoais a padrões de normalidade e aprovação de discursos que promovem a violência.
Capitalismo sem liberdade
Talvez eu me coloque no grupo dos pessimistas. Se o bolsonarismo der certo, acredito que o modelo mais aproximado do que será seu governo é a China: corte de direitos, perseguição de minorias e opositores, crescimento econômico acelerado, sem preocupações ambientais e com um setor da elite se beneficiando diretamente dessa política. Caso o bolsonarismo dê errado, meu receio é que a realidade brasileira se aproxima daquela de El Salvador nos anos 1980, menos pela oposição armada de grupos revolucionários de esquerda e mais pela disseminação de grupos de extermínio com relativa autonomia do governo direitista, e cujo governo afirma não ter nenhuma relação, embora os incite.
De todos os modos, vivemos uma transformação histórica sem precedentes. O discurso acerca da relação entre capitalismo e democracia sempre veio acompanhado de uma contradição: a promoção da liberdade no capitalismo se concretiza apenas para poucos, acompanhada da violência contra muitos. Diversos movimentos sociais e políticos objetivaram justamente radicalizar essa experiência democrática, ampliando-a.
No capitalismo autoritário, por sua vez, o discurso de liberdade é excluído da política. Singapura, China, Hungria, Israel, Rússia: cada um ao seu modo são países que em comum unem perseguição a minorias e/ou oposição com um forte projeto de crescimento econômico e criação à força de um ambiente favorável a negócios e investimentos. O Brasil passa a integrar esse grupo com especificidades marcantes, principalmente no tocante a pautas morais ultraconservadoras e um discurso que promove abertamente a violência estatal como forma de lidar com a criminalidade.
Alguns ousam dizer que o Brasil tornou-se a democracia mais autoritária do mundo. Não podemos esperar senão tempos sombrios pela frente.
*Fábio Zuker é antropólogo e jornalista.