O carnaval de Trump e Kim Jong-un
Durante o período em que dura a ordem da simbólica carnavalesca coroa-se um rei temporário, e na própria cerimônia que dá início a esse reinado efêmero já está também compreendida sua destituição
Quando Donald Trump e Kim Jong-un resolveram, finalmente, apertar as mãos na cúpula realizada em Cingapura, além de terem posto fim a um arrastado capítulo de diplomacia atrapalhada e de perigosas bravatas nucleares, parecem, por ora, ter garantido à consciência humana no planeta terra um recurso que parecia ameaçado… o tempo. Embora não o saibam, o tempo, que é de longe o problema mais pedregoso à atividade filosófica, é um inimigo feroz do tipo autocrático de poder que representam.
Mas e a literatura, pode ela nos oferecer algum tipo de explicação para essa questão?
É, já há algumas décadas, bastante consagrada nos estudos literários a tese de Mikhail Bakhtin segundo a qual alguns dos gêneros literários e dos temas dominantes na literatura ocidental desde, grosso modo, a Idade Média desenvolveram-se como consequência de um processo que o autor denominou carnavalização da literatura. Quer dizer, uma transposição da cosmovisão carnavalesca que orientou parte importante da cultura ocidental e que resultou na produção de uma linguagem artística que exprime alguns de seus motivos mais evidentes. Para Bakhtin, esse processo será o gerador do tipo de indivíduo (e do personagem que o representa) que não possui mais os altos valores da épica e da tragédia. E a cultura carnavalesca teria sido a grande transformadora dessa distância entre o indivíduo e o mundo, entre o indivíduo e os valores de seus contemporâneos, entre as ideias elevadas e a baixeza humana, entre o sagrado e o profano, uma vez que durante o carnaval estão temporariamente abolidas todas a hierarquias e as regras subjacentes ao contato familiar entre tudo o que é socialmente desigual.
Essa questão da carnavalização já foi e continua sendo amplamente desenvolvida nos meios acadêmicos, por isso nos interessa aqui destacar desse conjunto abrangente apenas alguns aspectos gerais, especificamente aqueles que demonstram a relação que se estabelece entre o poder e o tempo.
Ora, como bem sabemos, uma das ações nucleares do espetáculo carnavalesco é a coroação bufa – e seu posterior destronamento. Durante o período em que dura a ordem da simbólica carnavalesca, esta que embaralha os papéis sociais, coroa-se um rei temporário, e na própria cerimônia que dá início a esse reinado efêmero já está também compreendida sua destituição. Esse ritual simboliza abertamente o tipo de concepção temporal que o carnaval encena, isto é, a ideia da inevitabilidade das mudanças, e da morte como duplo necessário do nascimento. Como afirma Bakhtin, “O carnaval é a festa do tempo que tudo destrói e renova”.
E é precisamente através do riso que tal cosmovisão se realiza. Um tipo, aliás, particular de riso, o riso destronante. Aquele que demonstra a alegria da relatividade. Um riso que necessariamente força, obriga à mudança. O riso é, nesta perspectiva, uma provocação ritual de mudança da ordem, e está relacionada a formas antiquíssimas de comportamento diante do sagrado. Assim, do mesmo modo que toda a ritualística carnavalesca, o riso destronante é também de caráter ambivalente, pois está relacionado tanto ao nascimento como à morte. É, portanto, uma manifestação profunda de invocação do tempo e de seu potencial transformador.
Não à toa aqueles que detém o poder sempre se relacionaram mal com o riso.
Donald Trump e Kim Jong-un encarnam de maneira exemplar essa relação conflituosa entre o poder e o riso. São – e cada vez que esperneiam contra tornam-se ainda mais – esses declarados inimigos do tempo. São efetivamente encarnações daqueles reis bufos que o espetáculo carnavalesco emula.
No país asiático, comandado desde o período da Guerra Fria pela família de Kim Jong-un, fica completamente expressa a negação dessa alegre relatividade das mudanças no fato de que, anualmente, durante o dia 8 de julho, o riso é proibido por lei. Isto porque esse é o dia da morte do fundador do país, o avô de Kim Jong-un, Kim Il-sung. Acrescente-se a isso que, em 2014, após o lançamento da comédia americana The Interview (A entrevista, em tradução literal), que retratava comicamente uma tentativa de assassinato do líder Kim Jong-un por uma equipe de entrevistadores norte-americanos, o regime norte-coreano classificou o filme como “ato terrorista” e celebrou publicamente o ciberataque contra o estúdio que produziu o filme.
Donald Trump, por sua vez, já usou sua conta no twitter inúmeras vezes para atacar comediantes que o criticam ou que o imitam, como o ator Alec Baldwin, que o representa em uma esquete fixa no programa Saturday Night Live. Essa indisposição contra o personagem baseado nele, obviamente, garantiu o sucesso e a manutenção do quadro na grade do programa. Trump, por seu narcisismo incontrolável e por seu completo descolamento em relação aos valores mais primitivamente humanistas, é hoje de uma ubiquidade incômoda, tanto nos noticiários políticos quanto em qualquer modalidade humorística. Em mais de uma vez, Donald Trump fez questão de destacar que é um homem dos anos ‘50 (“a fifty’s man”). Na gramática política dos EUA, tal afirmativa significa a evocação de um passado ideal, de pretensa grandeza estável, onde as coisas estavam “em seus devidos lugares”, e todos aparentemente representavam de forma serena seus papéis. Quer dizer, quando a divisão racial na sociedade norte-americana ainda imperava legalmente, quando o exército americano ainda era a instituição que representava o ideal da honra e a vitória certa, quando às mulheres e às minorias identitárias o repressivo papel secundário ainda servia. Quando, enfim, o poder, indivisível, pertencia ao homem-branco.
Assim, na medida em que são incapazes de admitir serem vistos por outra forma que não aquelas que seu próprio narcisismo oficial autoriza, se convertem em figuras inevitavelmente cômicas. Não convém, de fato, a nenhum desses dois governantes serem medidos pelo reflexo implacável do tempo. É fácil compreender o temor que sentem ao riso, pois não há maneira mais incômoda de ser posto a descoberto. E de modo ainda mais radical: não há nada na realidade que não possa ser desnudado pela ficção. Afinal, os mesmos poderosos de sempre – que imprimem seus mesmos rostos graves nas moedas de ontem e exibem as mesmas medalhas confeccionadas nas lojas geriátricas de quinquilharias para generais – temem com a mesma intensidade a morte eterna. Pois o poder que tem pretensões à imutabilidade sente terror diante do inevitável movimento regenerador do tempo. De modo que essa configuração psicológica avessa ao riso esconde mais do que o simples dado de uma fraqueza mental. Demonstra um comportamento de uma radical recusa às transformações do tempo.
Logo, a natureza do poder tanto de Donald Trump quanto de Kim Jong-un são cintilações de um passado prestes a desaparecer. Sem saber, ambos figuram na história contemporânea como incorporações do poder antigo, renitente, ao qual já sobrevivemos muitas vezes. É, por isso, repetindo o receituário da herança simbólica do carnaval, que devemos, sem medo, rir e apontar com os dedos em riste para a imagem desses dois espantalhos da velha ordem que ameaçam a continuidade do tempo.
*Gilberto Clementino Neto, formado em Relações Internacionais, é mestre e doutorando em Teoria da Literatura, pela UFPE.