O combate ao ativismo humanitário
Desde que os grupos de direitos humanos surgiram nos conflitos internacionais, têm sido alvos de regimes repressivos e de milícias violentas, que com frequência interpretam o fornecimento de socorro médico e assistência a civis como uma intervenção em favor do inimigo. Foi o caso da flotilha pró-Gaza atacada em maioThomas Keenan|Eyal Weizman
Muitos detalhes da ofensiva israelense contra a frota de ajuda humanitária para a Faixa de Gaza em 31 de maio de 2010 ainda precisam ser esclarecidos. Mas, independentemente do que revelar a investigação do incidente, a morte dos nove ativistas é, por si só, um indicativo da recente e dramática mudança de tom no relacionamento de Israel com as organizações não governamentais e de sua postura diante da legislação internacional de direitos humanos.
O mínimo humanitário
Desde que os grupos humanitários e os voluntários de direitos humanos surgiram no campo dos conflitos internacionais, têm sido alvos de regimes repressivos e de milícias violentas, que com frequência interpretam o fornecimento de socorro médico e assistência a civis como uma intervenção em favor do inimigo. Comboios têm sido rotineiramente atacados, seus integrantes sequestrados ou mortos, e hospitais e instalações tomados ou destruídos.
O fato é que quando abrigos, remédios e alimentos são vistos como intervenções, significa que o controle sobre as condições de vida dos civis se transformou numa das armas do conflito.
O humanitarismo está estritamente ancorado aos princípios de neutralidade, imparcialidade e compromisso, sobretudo para com as vítimas civis do conflito. Entretanto, os ativistas dessa causa nem sempre são bem-sucedidos em convencer os combatentes de sua independência, até porque às vezes eles próprios confundem apoio às vítimas com apoio a uma causa política. Ao mesmo tempo, quando faz parte de uma estratégia militar – tal como o estado de sítio – afetar diretamente a qualidade de vida dos civis, o fornecimento de ajuda torna-se um elemento crucial no cálculo político.
A recente discussão sobre a política do humanitarismo dá evidências de que a ajuda possa realmente ser politicamente motivada e manipulada – tanto por seus doadores e receptores como pelos guardiões dos bloqueios1. É neste sentido que o fenômeno aparentemente inverso de tentativas de Estados poderosos de instrumentalizar ou monopolizar a construção de espaços humanitários e a entrega de ajuda pode ser entendido. A experiência do governo israelense de “gerenciar” a situação humanitária na Faixa de Gaza como instrumento de política de Estado pertence a essa história moderna de instrumentalização, cujos precedentes incluem os campos de refugiados além da fronteira do Kossovo durante os ataques aéreos da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em 19992.
A política de fechamento de Gaza foi regulamentada após a decisão da Suprema Corte de Israel em janeiro de 2008, por uma norma onde o Estado assume a responsabilidade de prover a seus habitantes o padrão mínimo humanitário destinado a prevenir a possibilidade de uma crise humanitária se desenvolver3. Quando o bloqueio foi imposto em meados de 2007, um funcionário público israelense descreveu a política como “sem prosperidade, sem desenvolvimento, sem crise humanitária”4. Dov Weisglass, conselheiro do primeiro-ministro anterior, Ehud Olmert, explicou o raciocínio: “A ideia é obrigar os palestinos a fazer dieta, mas não deixá-los morrer de fome”5.
Em junho de 2009, o jornal Ha’aretz publicou um documento israelense denominado “Linhas vermelhas”, que especifica com exatidão o número de calorias que se permite entrar na Faixa de Gaza, devidamente organizado por sexo e idade, num nível pouco superior à definição de fome das Nações Unidas6. O controle desses suprimentos dá a Israel uma alavanca política que, entretanto, só pode ser mantida se as mercadorias entrarem pela fronteira e não por túneis subterrâneos ou pelo mar.
Essa politização do fluxo de ajuda através da fronteira encontrou ecos na retórica cada vez mais partidária de algumas organizações de ajuda, como testemunham declarações dos ativistas da flotilha de Gaza. Segundo eles, sua intenção era “romper o cerco” de Gaza. Assim, a ajuda entregue pela flotilha não incluía comida, mas sim itens úteis para o desenvolvimento da Faixa de Gaza, principalmente materiais de construção bloqueados por Israel.
Como o bloqueio de Israel a Gaza destina-se a afetar a qualidade de vida dos civis como um fator de cálculo político-militar, os militares viram o fornecimento não autorizado de tais materiais como uma intervenção em escala estratégica. Isso pode ajudar a explicar por que os comandos da marinha usaram força letal para “defender a nação” de um comboio de ajuda.
Embora com algumas exceções, até agora, ataques diretos e intencionais a trabalhadores ou defensores dos direitos humanos (mesmo aqueles que ignoraram a característica de estrita neutralidade do humanitarismo) tinham sido, geralmente, obra de milícias indisciplinadas, exércitos arruinados, gangues criminosas ou Estados policiais. Entre eles incluem-se os talibãs, o exército sérvio-bósnio e insurgentes no Iraque. Agora, com o ataque letal ao Mavi Marmara – navio líder da flotilha – irá Israel juntar-se a eles?
O próximo inimigo
Para responder a essa questão, é necessário retroceder no tempo. O ataque no Mediterrâneo – embora seguido, em 5 de junho, de uma intervenção não violenta para frustrar outra tentativa de entrega de suprimentos a Gaza – representa o ápice violento de um processo no qual o governo israelense e vários grupos privados que o representam começaram a ver o humanitarismo como inimigo e ameaça à existência do Estado judeu.
Antes da partida da flotilha liderada pelo Mavi Marmara, o vice-ministro de Relações Exteriores de Israel, Danny Ayalon, declarou que não existia crise humanitária em Gaza e, portanto, a flotilha não era uma missão de ajuda, mas “uma provocação com intenção de deslegitimar Israel”7. Depois do ataque, a descrição da flotilha feita por Ayalon como “uma armada de ódio e violência em apoio à organização terrorista Hamas” foi simplesmente uma ratificação da visão generalizada que o governo israelense tem dos ativistas da sociedade civil8.
A campanha atual começou em 2009, como consequência dos relatórios de organizações de direitos humanos, contestando a conduta dos militares israelenses durante a Operação Cast Lead, o ataque de três semanas a Gaza no período de dezembro de 2008 a janeiro de 20099. O novo governo do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu – que tinha consolidado sua reputação de linha-dura durante um mandato anterior em 1996-99 – reagiu aos relatórios, a seus autores e a sua lógica com severidade.
“Vamos dedicar tempo e esforço para combater esses grupos, não ficaremos sentados como patos na lagoa, para que os grupos de direitos humanos possam atirar em nós impunemente”, declarou Ron Dermer, diretor de planejamento político do gabinete do primeiro-ministro ao Jerusalem Post em julho de 2009. “Cada ONG que participa disso junta combustível ao fogo e está servindo à causa do Hamas”, ele disse10.
Em agosto de 2009, Moshe Ya’alon – ministro de Assuntos Estratégicos e ex-comandante em chefe das Forças de Defesa de Israel – declarou numa reunião com colonos que os ativistas do Paz Agora representavam um “vírus”. “Estamos lidando novamente com esse vírus, Paz Agora, que tem causado um grande prejuízo”11.
O posicionamento das lideranças israelenses tomou corpo após a publicação das conclusões da Missão Investigadora de Fatos no conflito de Gaza para a ONU. O relatório concluiu que havia evidências de sérias violações dos direitos humanos cometidas por Israel e pelo Hamas durante o conflito de Gaza, sendo que os atos israelenses eram considerados crimes de guerra.
O governo de Israel poderia, em princípio, simplesmente ter ignorado ou descartado o relatório, atribuindo-o aos usuais suspeitos anti-israelenses. Mas, ao contrário, levou as acusações extremamente a sério e decidiu combater o relatório da ONU. Em uma conferência em novembro de 2009 no Saban Forum, um afamado instituto israelense de estudos de segurança, Netanyahu identificou três ameaças estratégicas a Israel12. A primeira seria um Irã nuclear, que poderia “varrer Israel do mapa”. A segunda seria “ataques de mísseis e foguetes”, disparados a partir da fronteira por organizações militantes islâmicas como o Hamas e o Hezbollah.
Qual seria o último desafio juntamente com esses dois formidáveis, e clássicos, oponentes? “A terceira ameaça à paz é a tentativa de negar a Israel o direito à autodefesa. O relatório da ONU tenta fazer isso”.
Binyamin Netanyahu enfatizou que não era simplesmente o juiz Richard Goldstone, responsável pelo relatório, ou qualquer organização em particular que constituem a ameaça nem que considerava Israel o único alvo: “Estejam certos de que esse relatório da ONU não é problema somente de Israel. Ele ameaça atar as mãos de todos os Estados que lutem contra o terrorismo”. O primeiro-ministro de Israel clamou então por uma reforma radical da Lei Humanitária Internacional para conter a “ameaça”. “Paradoxalmente, é possível que uma firme reação de importantes líderes e juristas internacionais a esse relatório moralmente distorcido possa acelerar o reexame das leis de guerra nesta era de terrorismo”, afirmou.
Os inimigos internos
Desse ponto de vista, talvez o ataque ao Mavi Marmara demonstre o que Israel quer dizer com o fim da “impunidade” para as ONGs e a outros ativistas internacionais, concedendo-lhes o novo status de ameaças estratégicas, ao lado das armas nucleares iranianas ou dos milhares de mísseis e foguetes.
Em janeiro de 2010, um notável centro de estudos israelense, o Reut Institute, demonstrou preocupação com a chamada “guerra de deslegitimação”. Seu diretor, Gidi Grinstein, escreveu no Ha’aretz: “Nossos políticos e militares são ameaçados com ações judiciais e prisão quando viajam para o exterior, campanhas para boicotar nossos produtos ganham força e nossa própria existência é questionada em instituições acadêmicas e círculos intelectuais. O país está cada vez mais isolado. Até hoje, Israel falhou em reconhecer essa tendência como uma ameaça estrategicamente significante”.13
Talvez o “reconhecimento” esteja acontecendo agora. O governo israelense e um grupo de organizações ligadas a ele lançaram um projeto multifacetado de “contradeslegitimação”, direcionado a ONGs de direitos humanos. Eles buscam, nas palavras de um de seus participantes, “acabar com a prática usada por certas ‘ONGs autodenominadas humanitárias’ de explorar o rótulo de “valores de direitos humanos universais” para promover agendas política e ideologicamente anti-Israel”14.
Esta atmosfera recente contribuiu para duas decisões políticas importantes em Israel: a esmagadora aprovação no Knesset, a assembleia, em fevereiro de 2010, de uma lei privando grupos que recebam apoio financeiro de governos estrangeiros (como acontece com a maioria dos grupos humanitários ou de direitos civis) da isenção de impostos, comprometendo assim sua capacidade de levantar fundos no exterior; e a proposta, em abril, de uma nova lei visando fechar ONGs envolvidas em processos judiciais contra representantes do governo ou militares israelenses no exterior15.
Os militares, por seu lado, ganharam novo fôlego nos enfrentamentos. Recentemente, eles desenvolveram a prática de invadir cidades palestinas não para prender militantes, mas ativistas internacionais, principalmente membros europeus do Movimento de Solidariedade Internacional. Muitos outros nem têm a chance de entrar no país, sendo deportados na fronteira ou presos no novo centro de detenção construído no aeroporto de Tel-Aviv especialmente para esse fim.
A ameaça da lei
A noção de que a flotilha do Mavi Marmara e os ativistas nela embarcados foram vistos como inimigos pode ajudar a explicar por que uma operação militar em grande escala foi deflagrada contra uma missão humanitária – afinal, diversos navios transportando ajuda humanitária foram tolerados em Gaza em anos anteriores. E até mesmo porque quando a resistência de alguns dos passageiros à tomada do navio tornou-se mais violenta, a reação dos soldados foi tão desproporcional. Mas o que é mais difícil de explicar é por que essa denominação de inimigos ocorreu inicialmente. Que milícias, bandidos, terroristas e piratas visem atacar ou matar ativistas de direitos humanos ou trabalhadores humanitários parece fácil de compreender, por mais repreensíveis que possam ser suas ações. Mas é algo misterioso que um Estado que insiste em ser o único a respeitar os direitos humanos e a democracia na região decida “combatê-los” tão diretamente.
Uma das críticas mais fortes e frequentes à lei internacional de crimes de guerra é que ela é aplicada somente contra as partes mais fracas de um conflito. A lei ministrada pelo Tribunal Criminal Internacional, como Guénaël Mettraux aponta “torna-se, consideravelmente,o direito dos outros, um conjunto de regras que nos contentamos em aplicar aos outros, mas não a nós mesmos. Os ‘outros’ são aqueles, Estados ou indivíduos, que perderam a força política de esvaziar ou resistir à aplicação de tal regime a eles”.16
Aparentemente, os Estados poderosos podem simplesmente escapar impunes das violações das leis de guerra e mal precisam se preocupar com a má publicidade. Assim, quando a ministra das Relações Exteriores de Israel, Tzipi Livni, declarou à rádio Reshet Bet, durante a guerra de Gaza, que “Israel é um país que reage de modo selvagem quando seus cidadãos são atacados – e isso é uma boa coisa”, ela parecia promover com orgulho a patente desproporção na operação militar então em ação17. Mas quando essa mesma citação apareceu como peça central do relatório da comissão Goldstone, o governo reagiu ultrajado, e alguns temem possíveis acusações de crimes de guerra18.
No momento em que as questões humanitárias e de direitos humanos tornaram-se um fator importante no conflito, o campo de batalha se expandiu para englobá-las, tanto no sentido discursivo como no físico. Se Israel ainda pretende reescrever a lei humanitária internacional e regulamentar os fornecimentos humanitários como instrumentos do poder do Estado e se algumas organizações internacionais responderem com crescentes ações legais e outras com mais navios nos mares, então o incidente do Mavi Marmara será lembrado como um dos tiros iniciais dessa emergente batalha de lei e ajuda.
Thomas Keenan é professor associado de literatura comparada e editor do Human Rights Project da Universidade de Bard (Nova York).
Eyal Weizman é diretor do centro de pesquisa em arquitetura do Instituto Goldsmith, da Universidade de Londres.