O combo promocional da ignorância e da servidão
Promove-se a carestia, facilita-se acesso a alimentos de baixa qualidade e recheados com agrotóxicos. Soma-se a isso toda a dependência da tecnologia e seu individualismo e teremos uma população sedentária, alienada, ignorante, incapaz de pensar além de suas telas e dependentes de medicações
Poucos devem conhecer o termo nutricídio que recentemente tem sido usado para descrever como a alimentação inadequada faz parte da necropolítica. Mais do que a falta de nutrientes básicos, o acesso aos alimentos ultraprocessados, favorece ainda mais essa política de morte. Em tempos de um (des)governo incompetente e genocida, que promoveu a volta do Brasil ao Mapa da Fome por conta de sua ineficácia econômica (com inflação acima dos dois dígitos, desvalorização do salário mínimo e perda do poder de compra) jogando mais de 33 milhões para passar fome e outras 127 milhões em insegurança alimentar, o acesso a esse tipo de comida, antes considerada apenas prática, agora tornou-se uma alternativa, aumentando consideravelmente entre as famílias.
Estudo realizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostrou que 80% das crianças brasileiras de até 5 anos costumam consumir alimentos ultraprocessados, como biscoitos, farinha e refrigerantes. Nesse levantamento, constataram que apenas 22,2% das crianças brasileiras de 6 a 23 meses são alimentadas preferencialmente com vegetais e frutas, em detrimento de produtos industrializados.
Tais alimentos ricos em açúcares, gorduras, conservantes, além de promoverem obesidade e suas possíveis complicações (diabetes, hipertensão, câncer, prejuízo cognitivo), também prejudicam a microbiota intestinal, afetando a saúde mental das pessoas. Em maio de 2016, uma pesquisa desenvolvida em Valência, pelo Consejo Superior de Investigaciones Científicas (CSIC), do projeto europeu chamado “MyNewGut”, mostrou que há uma possível e importante influência de microrganismos do intestino no equilíbrio químico de nosso cérebro. Ou seja, seu estado mental pode variar de acordo com as bactérias que habitam seu intestino.
Concomitantemente, outro estudo conduzido com trinta indígenas yanomamis, isolados da civilização urbana ao sul da Venezuela, mostrou que eles apresentavam uma variabilidade bacteriana duas vezes maior do que indivíduos dos Estados Unidos. Para os pesquisadores, ficou bastante claro que quanto mais exposto ao estilo de vida ocidental (leia-se: capitalismo), maior é a perda da diversidade do chamado microbiota. (Em tempo: com a falaciosa “Revolução Verde”, que surgiu para atender aos interesses da indústria química, nossa alimentação que antes era variada, com mais de 1.200 tipos de vegetais, hoje concentra-se em cinco grandes culturas – soja, milho, mandioca, trigo, arroz –, criando não apenas a padronização alimentar, mas o monopólio das sementes nas mãos de grandes corporações e dos latifúndios).
Soma-se a isso os efeitos cognitivos que causam nas crianças – por sinal, os principais alvos desse efeito justamente por necessitarem dos nutrientes para sua formação – e teremos uma legião de pessoas não apenas obesas, mas com baixo desenvolvimento físico e mental.
Fazendo parte deste “combo da morte”, não podemos nos esquecer do uso massivo e desregrado dos agrotóxicos não apenas nos alimentos, mas na água, o que desencadeia outra gama de problemas como danos cerebrais, Alzheimer, Parkinson, autismo, disruptura endócrina e incontáveis tipos de câncer.
E, alimentando um ciclo vicioso, usamos remédios para as doenças causadas por esse comportamento, sem nos atentarmos – ou sermos avisados – de que os próprios medicamentos que parecem inofensivos (como os antiácidos, e até mesmo aqueles controlados, como antibióticos e antidepressivos) são comprovadamente danosos à microbiota intestinal, causando significativa redução da diversidade desses microrganismos que promovem nossa saúde.
Um prato cheio para a indústria farmacêutica – em especial à Bayer/Monsanto, que sabiamente consegue manter esse ciclo da doença-cura.15,16 Quanto mais pessoas doentes, maior o apelo aos remédios. E não afeta apenas jovens e adultos, mas até bebês e crianças que, frutos de pais e mães dominados pela correria do dia a dia, optam por alimentos industrializados – as chamadas papinhas – para otimizar o tempo. O que pouco se divulga é que esse tipo de alimento contém metais pesados (chumbo, arsênico) que podem prejudicar o desenvolvimento. E não é uma exceção. Conforme apresentou o relatório da organização estadunidense Healthy Babies Bright Futures, 94% dos itens disponíveis no mercado para alimentação dos bebês estão com esse grau de contaminação.
Corroborando com a política do capitalismo que alimenta o individualismo, o uso recorrente dos fones de ouvido é mais um agente determinante nesse pacote, pois isola as pessoas em suas telas, evitando o contato e convício social, fortalecendo ainda mais o individualismo. Mas não é só isso. Estudos comprovam que o uso desses equipamentos em alto volume e de forma prolongada causa anormalidades na área do hipocampo, uma região associada com os processos de memória e aprendizagem.18 Isso sem citar os casos de surdez causados pelos sons altos, incapacitando os jovens e adultos e que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), afetará mais de 1 bilhão de jovens.
Paralelamente, nota-se o surgimento de uma nova doença, caracterizada pela dependência da tecnologia e acessibilidade a todo momento: a nomofobia. De acordo com os compêndios de psiquiatria, essa é uma doença geralmente associada aos transtornos de ansiedade, como síndrome do pânico, transtorno bipolar e estresse pós-traumático.
Em um breve – e assustador – resumo: promove-se a carestia, facilita-se acesso a alimentos de baixa qualidade e recheados com agrotóxicos. Soma-se a isso toda a dependência da tecnologia e seu individualismo e teremos uma população sedentária, alienada, ignorante, incapaz de pensar além de suas telas e dependentes de medicações. Analisando tudo isso, parece até mesmo uma ficção distópica, que nem Orwell e Huxley poderiam imaginar.
A garantia de uma alimentação digna, saudável e balanceada não é apenas uma necessidade, mas direito básico de qualquer pessoa. Políticas públicas de distribuição de renda, que lutem para extinguir a fome, devem ser prioridades de qualquer governo. É inadmissível que em pleno século XXI, ainda aceitemos pessoas desnutridas, passando fome, tendo que recorrer às sobras de carros de lixo e até mesmo comprando (absurdo!) ossos e pelancas de frango.
Mais uma vez, o capitalismo mostra que é ilógico e atende apenas interesses de uma minoria abastada, ignorando as verdadeiras necessidades da população em geral. O capitalismo e suas crises mostra o quão frágil é esse sistema que tenta se vender como forma justa e competitiva. No entanto, como a produção se baseia na geração de lucros via commodities, a alimentação é deixada para segundo plano.
Paralelamente, não podemos esquecer que o surgimento e avanço das chamadas fast foods visa justamente fornecer refeições rápidas, a fim de se otimizar o tempo das pessoas que, com isso, geram mais lucros e “gastam” menos tempo pensando e se organizando. Criação ardilosa, uma vez que o tempo para organização, pensamentos críticos é fundamental para a revolução social. Ou seja, nota-se que os tempos atuais requerem não apenas a disciplina de estudos, mas também alimentar.
Importante também lembrar que mais do que causar doenças para a venda de remédios, a publicidade é igualmente lucrativa, se abastecendo ao vender a busca de um corpo padronizado – o que é inviabilizado com esse tipo de dieta capitalista. Cria-se, assim, o ciclo vicioso do mercado capitalista.
Valorizar produtos e produtores agroecológicos, financiar políticas de sistemas agroflorestais, que além de gerar comida contribuem para restauração e recomposição de áreas degradadas, assim como a instalação de leis que restrinjam a publicidade e o fácil acesso aos ultraprocessados, são algumas das alternativas. Na Bahia, por exemplo, isso já é lei e, com aval do STF, restringe-se a publicidade infantil nas escolas. Um passo pequeno é verdade, mas que já é o início de uma possível mudança. Mais do que garantir alimentação, o compromisso sustentável se fará presente, gerando ambiente menos degradado, pessoas mais saudáveis – reduzindo doenças e a sobrecarga ao sistema de saúde e previdência social.
Assim, a luta pela verdadeira democracia só existe se esta for comprometida com a igualdade, com o verdadeiro progresso e dignidade do povo. Um povo verdadeiramente politizado, emancipado, precisa de alimento de verdade, e não de comida que sacia. Mas isso é um perigo para o sistema que quer se manter soberano à custa dessa servidão. Lutar pelo direito ao alimento de verdade é lutar contra a necropolítica.
Luiz Fernando Leal Padulla é professor, biólogo, doutor em Etologia, mestre em Ciências e especialista em Bioecologia e Conservação. Autor do blog e do canal no Youtube “Biólogo Socialista” e do podcast “PadullaCast”. Recentemente publicou pela editora Dialética, o livro Um irritante necessário. Instagram: @BiologoSocialista