O conflito na Ucrânia e confrontos por hegemonia no sistema interestatal
Nosso objetivo, aqui, não é discutir as causas da guerra, nem fazer prognósticos sobre os destinos da mesma, nem mesmo tentar desvendar as estratégias militares em curso dos diferentes blocos (Otan-UE x Rússia e aliados). Mas, todavia, tentar sugerir como a presente guerra faz parte de uma guerra mundial inerente à ordem internacional do século XXI.
A guerra na Ucrânia, desencadeada pela Rússia em fevereiro de 2022, surpreendeu grande parte dos analistas de política internacional e da sociedade global. Tal invasão, precedida por uma série de declarações de Vladimir Putin, elencaram uma série de argumentos de natureza militar, geopolítica e ideológica para guerra, especialmente a noção de defesa da segurança da Rússia, num contexto de expansão da Otan[1].
Nosso objetivo, aqui, não é discutir as causas da guerra, nem fazer prognósticos sobre os destinos da mesma, nem mesmo tentar desvendar as estratégias militares em curso dos diferentes blocos (Otan-UE x Rússia e aliados). Mas, todavia, tentar sugerir como a presente guerra faz parte de uma guerra mundial inerente à ordem internacional do século XXI. É possível, então, olhar a guerra e conflito de narrativas na Ucrânia a partir de uma hipótese bem específica: o término da Guerra Fria iniciou uma nova modalidade de guerra mundial que é constitutiva do que podemos chamar de neoimperialismo[2]. A nossa hipótese é que a guerra da Ucrânia faz parte de um conjunto de guerras e conflitos por hegemonia dentro neoimperialismo. A dinâmica subjacente à guerra na Ucrânia é, no nosso entendimento, parte de um conflito pela hegemonia no sistema interestatal que tem, como componente central, a luta pelo controle dos recursos naturais energéticos.
Esse confronto está relacionado às mudanças na distribuição do infrapoder energético. Por infrapoder[3] energético entendemos o controle das reservas de recursos naturais energéticos e/ou; controle da infraestrutura e logística de transporte de energia e/ou; domínio da tecnologia e conhecimento da produção de energia e/ou; controle das organizações econômicas responsáveis pela produção de energia. A ideia de infrapoder visa, justamente, indicar que o mesmo é transversal e subjacente aos diferentes tipos de poder, de modo que a ampliação do infrapoder energético é pré-condição para a manutenção ou ampliação do poder e as formas de desenvolvimento de cada Nação no sistema mundial [4]. Iremos, no presente artigo, discutir como a luta pela distribuição do infrapoder energético e hegemonia tem se desenrolado sob uma série de formas e acontecimentos históricos, incluindo a mais recente guerra.
Infrapoder energético e a gênese de uma ordem geopolítica mundial
A Rússia invadiu a Ucrânia no dia 24 de fevereiro de 2022. A esta invasão militar seguiu-se o controle territorial, de diversas regiões (Donestk, Lugansk e o litoral sul da Ucrânia), bem como o cerco de Kiev. Tal invasão foi respondida com sanções econômicas, financeiras, diplomáticas e com o apoio militar ostensivo ao regime do presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski. Essa cronologia é bem conhecida.
Mas tomando o fato da Guerra como ponto de partida, iremos aqui analisar como ela se coloca na estrutura da geopolítica global. Para isso, iremos analisar as respostas da União Europeia, bem como a evolução da geopolítica da energia de 2010 até 2020. A mais imediata, e talvez principal resposta à guerra, no nosso entendimento, não foi a tão propagandeada ajuda militar à Ucrânia. A principal resposta foi a elaboração de um complexo plano de reestruturação da sociedade europeia, para romper o que a Comissão europeia denominou de dependência energética da Rússia.
Tal resposta foi sintetizada em um documento e plano de ação intitulado REpowerEU[5], que reúne um conjunto de medidas econômicas, políticas e de logística, no sentido de acelerar um processo de transição energética. Analisar as ações e a narrativa estratégica que estrutura tal plano de gestão da crise militar e energética regional, desencadeada pela guerra na Ucrânia, é essencial à ampliação da ótica pela qual tal acontecimento histórico pode ser interpretado.
O primeiro ponto, que é base para compreensão de toda a política derivada dessa estratégia, é a noção de dependência externa europeia: “A UE deve estar preparada para qualquer cenário. Pode libertar-se da dependência do gás russo muito antes do final da década. Quanto mais rápida e decididamente diversificarmos o aprovisionamento, acelerarmos a implantação das tecnologias de energia verde e reduzirmos a nossa procura de energia, mais cedo poderemos substituir o gás proveniente da Rússia”. (p.1) Do diagnóstico da situação de dependência (energética) externa, conclui-se pela orientação de ampliar o ativismo/intervencionismo estatal na economia e sociedade europeia. A recomendação para os estados da Europa é justamente lançar mão de diferentes pacotes de medidas político-econômicas para gerenciar a crise[6] e os efeitos da dependência energética externa. “A Comissão tenciona utilizar toda a flexibilidade do seu conjunto de medidas em matéria de auxílios estatais a fim de possibilitar que os Estados-Membros apoiem as empresas e os setores gravemente afetados pela atual evolução geopolítica. Para possibilitar que os Estados Membros corrijam as graves perturbações da economia resultantes da agressão militar da Rússia à Ucrânia (p.2)”.
As ações estatais estratégicas e emergenciais na área de energia apresentadas no documento podem ser sintetizadas da seguinte maneira: 1º diversificação das importações e gás e petróleo; 2ª ampliação do estoque (com ampliação do volume em armazéns subterrâneos); 3ª investimento em energias renováveis, especialmente hidrogênio e biometano; 4º flexibilização dos procedimentos de licenciamento ambiental para facilitar o desenvolvimento de projetos de energias renováveis[7] (p.6); 5ª redução da demanda de Gás natural, pelo aumento da eficiência energética das infraestruturas urbanas e industriais; 6ª aumento dos incentivos e renúncias fiscais para subsidiar as empresas grandes e pequenas afetadas pela crise, bem como dar subsídios às famílias por meio de regulação do preço das tarifas de energia e transporte, visando controlar o aumento da pobreza que pode ser ampliada em razão da pobreza energética.
Tais medidas visam, do ponto de vista estratégico, acelerar a transição energética para evitar a dependência externa e subordinação da Europa ao poder da Rússia. “No seguimento da invasão da Ucrânia pela Rússia, as razões para uma transição rápida para as energias limpas nunca foram tão fortes nem tão claras. A UE importa 90 % do gás que consome, sendo a Rússia responsável pelo fornecimento de mais de 40 % do consumo de gás da UE. A Rússia representa igualmente 27 % das importações de petróleo e 46 % das importações de carvão da EU”.
A visão da UE é que o problema principal em jogo na guerra na Ucrânia, não é a mudança do regime de governo, nem mesmo a crise humanitária, mas sim a independência energética da UE em face da Rússia. A política elaborada logo no início da Guerra visa acelerar a transição energética, motivada por motivos geopolíticos. As metas da política energética são reduzir o consumo de gás em 155 bilhões de metros cúbicos, que é justamente o volume importado da Rússia anualmente. A Rússia controla quase a metade das exportações de gás para a Europa, 25% do petróleo e 45% do carvão (segundo os dados da própria Comissão Europeia).
Por isso, podemos dizer que a política de transição energética da UE visa aumentar o infrapoder energético da Europa, mudando o quadro de dependência da Europa em face da Rússia[8]. A corrida para aumentar o infrapoder energético articula, como observamos acima, diferentes ações. Mas todas elas têm contradições e não possuem garantia plena de realização, o que gera consequências diretas sobre a política global.
O Plano RepowerUE deve ser situado também no quadro das alianças EUA-UE e na leitura que os EUA passaram a elaborar em meados da década de 2010, bem como sua política energética. Um importante documento é o “Relatório sobre Energia e Geopolítica: desafios e oportunidades”, elaborado pelo Conselho Consultivo de Segurança Internacional, órgão federal integrante do Departamento de Estado[9]. Tal documento apresenta um diagnóstico da situação energética mundial e suas implicações para a segurança nacional dos EUA, analisando as grandes superpotências (China, Rússia e EUA) e, também, diversas regiões.
Um dos elementos principais do documento é justamente apontar, já em 2014, as consequências do aumento ou diminuição da capacidade energética como elemento potencialmente desestabilizador da política global. Nesse sentido, três elementos são colocados como fundamentais: 1º a revolução tecnológica na exploração do petróleo, centrada nos EUA, e as peculiaridades do comércio internacional do petróleo; 2º o GNL (gás natural liquefeito) tem particularidades de transporte que aumentam o custo do mesmo, dando assim aos gasodutos uma importância decisiva, o que segmenta o mercado internacional de gás; 3º a necessidade de pensar a geopolítica do mundo em função da localização estratégica da energia, destacando alguns hotspots energéticos.
A própria produção do relatório, pelo Conselho Consultivo, já faz parte de uma nova situação histórica inaugurada pelo redesenho das relações Rússia-Ucrânia gerada pela anexação da Criméia pela Rússia e da crise política resultante do Euromaidan. Mas, considerando as conclusões e orientações do documento, os elementos mais importantes são a reafirmação da necessidade de projeção do poder dos EUA no mundo, para assegurar sua segurança nacional e a posição dos seus aliados, e, não menos importante, a relação da dependência energética da Europa em face da Rússia e as grandes dificuldades em eliminar tal dependência (por meio de substituição de importações e revolução tecnológica) no curto prazo. Como podemos observar: “Mais a jusante, os estados europeus são vistos como limitados em sua capacidade de reagir fortemente à agressão russa devido à dependência das importações da Rússia e da Ucrânia. Essa restrição é reforçada pelos investimentos do setor privado ocidental em energia russa. O gás russo é abundante e barato demais para desaparecer da paisagem europeia. Não há panacéia ou conjunto de soluções fáceis de curto prazo”.
A Ucrânia é, nesse sentido, um grande entroncamento de gasodutos e oleodutos por meio dos quais os fluxos energéticos transitam. Porém, não é possível pensar o significado da Ucrânia isoladamente, e apenas a conexão Rússia-Europa, mas devemos levar em consideração uma geopolítica intercontinental. O próprio relatório qualifica como as ações a serem tomadas pela Europa tem implicações sobre a Eurásia, em particular o mar Cáspio: “Mas a necessidade da Europa de aumentar a segurança e a diversidade de fontes de abastecimento além da Rússia continua insatisfeita, e os estados litorâneos do Mar Cáspio, como Azerbaijão, Turcomenistão e Cazaquistão, podem ser parte da solução. O acesso direto ao gás natural do Cáspio através do corredor sul, incluindo os gasodutos Transanatólio e Transadriático, é uma possibilidade”.
Como observado, a necessidade de estabelecer os países do Mar Cáspio como fornecedores alternativos à Rússia, é parte fundamental da estratégia dos EUA para a geopolítica da energia, visando assegurar a maior independência da Europa em face da Rússia. Porém, o próprio controle das reservas de recursos naturais energéticos em tais países são estabelecidos por complexos regimes de propriedade que precisam ser considerados como um fator especial[10], além do fato de que vários países estão na área de influência russa.
A guerra na Ucrânia se coloca então, do ponto de vista da geopolítica da energia, num complexo quadro, em que Estados e blocos regionais estão lutando para ampliar seu infrapoder energético. Como poderemos observar, a Europa ficou para trás nas últimas duas décadas, dependendo do fornecimento de recursos naturais energéticos em relações internacionais cada vez mais complexas e conflituosas. E a guerra da Ucrânia não deve ser analisada isoladamente, mas considerando uma macrorregião intercontinental onde as principais guerras pelo infrapoder energético tem se desenrolado.
Andrey Cordeiro Ferreira, professor associado da UFRRJ.
LEIA A SEGUNDA PARTE DO ARTIGO: https://diplomatique.org.br/da-unipolaridade-hegemonica-a-multipolaridade-antagonica-infrapoder-energetico/
Referências
[1] No discurso de Vladimir Putin em 21/02/2022 ele afirma. “Sabe-se bem que por 30 anos tentamos, persistente e pacientemente, chegar a um acordo com os principais países da Otan sobre os princípios de uma segurança igualitária e unida na Europa. (…) a Aliança do Atlântico Norte, no meio tempo, apesar de todos os nossos protestos e cuidados, se expande sem parar. A máquina de guerra se movimenta e, repito, se aproxima em cheio de nossas fronteiras”. O discurso de Putin justifica a guerra na Ucrânia como uma guerra para deter a expansão dos EUA contra a Rússia e a eventual ameaça de destruição do Estado russo.
[2] Tal argumento foi esboçado num artigo de 2016, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, sob o título “A Luta pela Energia”, em que nos valemos de uma elaboração do Subcomandante Marcos sobre a historiografia internacional e as Guerras Mundiais. A definição de guerra mundial deixa de ser definida por uma guerra convencional direta entre superpotências, para englobar as guerras descentralizadas e indiretas em todo o planeta, motivadas ou envolvidas no confronto estrutural entre as superpotências. Por isso, a Guerra Fria é considerada como a 3ª Guerra mundial e a 4ª Guerra Mundial se inaugura em 1991, assumindo a princípio a forma de guerra ao terror e guerra às drogas.
[3] O conceito de poder comporta inúmeras definições de tipos possíveis e modos. Mas empregaremos aqui a ideia de que o poder pode ser considerado como manifesto em diferentes formas (político-militar, econômico, ideológico e outros). Ao falar de infrapoder energético, indicamos que todas essas formas de expressão do poder demandam energia. Sem ela não há poder. A energia perpassa e interpenetra essas formas de poder. Mas não se deve entender que sugerimos aqui um determinismo energético. É apenas uma perspectiva de análise que deve ser complementada por outras.
[4] Por imperialismo, e optando por definição simplificada, entendemos um sistema de relações (de poder) internacionais desiguais, expressa pela disparidade de poder militar, econômico e ideológico entre centro, semiperiferia e periferia. Tal sistema mundial apresenta uma hierarquia de poder em que os Estados centrais e hegemônicos impõem normas e relações de dependência (comercial, diplomática, financeira, tecnológica e institucional e militar), que permitem que os países periféricos sejam enredados em relações de subordinação. A ideia de neoimperialismo, que pode sugerir noções erradas a partir de uma oposição ao “velho”, busca apenas indicar duas questões: a importância de reabilitar o conceito de imperialismo, desmistificando a ideia de que as relações internacionais se tornaram idilicamente igualitárias; demarcar uma diferença histórica em relação ao imperialismo convencional do século XX (marcado pela existência de um sistema de colonialismo internacional, uma matriz energética e relações hegemônicas que já desapareceram).
[5] REPowerEU: ação conjunta europeia para uma energia mais segura e mais sustentável a preços mais acessíveis. Comunicação Da Comissão Ao Parlamento Europeu, Ao Conselho Europeu, Ao Conselho, Ao Comité Económico E Social Europeu E Ao Comité Das Regiões, Estrasburgo, 08/03/2022
[6] Segundo o documento “Mais de metade das fundições de alumínio e de zinco da UE estão a funcionar com capacidade reduzida ou encerraram temporariamente. A UE deixou de dispor temporariamente de 650 000 toneladas de capacidade de produção de alumínio primário, cerca de 30 % do total” (p.2). Há então uma diminuição substantiva da capacidade industrial e produtiva da Europa decorrente da guerra na Ucrânia.
[7] “A simplificação e redução dos prazos dos procedimentos de concessão de licenças constitui uma pré-condição para a aceleração dos projetos de energias renováveis. A morosidade dos procedimentos administrativos foi identificada como um dos principais obstáculos aos investimentos em energias renováveis e infraestruturas conexas. Esses problemas devem ser resolvidos através da transposição plena e célere da Diretiva Energias Renováveis16 em vigor, da execução das reformas e medidas correspondentes previstas nos planos de recuperação e resiliência dos Estados-Membros, bem como da aplicação das disposições relativas ao licenciamento de infraestruturas no quadro revisto das RTE-E17” (p.6)
[8] É preciso observar a ambiguidade inerente à noção da dependência comercial externa. No caso da dependência de recursos naturais, os energéticos em particular, a dependência comercial pode significar subordinação, mas também controle/estrangeirização. O que diferencia a subordinação do controle externo/estrangeirização é justamente o infrapoder energético. A Europa, por exemplo, durante o período colonial, dependia de recursos naturais das colônias. Porém, ela tinha o controle político-militar, da produção e da logística para o comércio dos recursos naturais. A dependência dos recursos naturais externos encontrava na relação de dominação colonial sua equação final. Desse modo, uma relação de dependência comercial pode ocultar o domínio estrangeiro. No caso das relações estabelecidas com a Rússia, a Europa depende das exportações, mas não controla as reservas, a logística e a produção. Logo, a dependência comercial da Rússia implica uma relação de subordinação. A invasão russa da Ucrânia visa exatamente assegurar a proteção desse infrapoder energético russo.
[9] ISAB, 2014. Relatório do Conselho Consultivo de Segurança Internacional (ISAB), um Comitê Consultivo Federal estabelecido para fornecer subsídios ao Departamento de Estado dos EUA.
[10]No caso do Azerbaijão, por exemplo, existem consórcios compostos pela SOCAR e por corporações transnacionais privadas, como a BP, Lukoil e outras.