Da unipolaridade hegemônica à multipolaridade antagônica
Conforme argumentado no artigo anterior, o programa REpowerEU deve ser compreendido como parte de uma geopolítica do infrapoder energético mundial. Agora devemos compreender como ele se coloca em tal geopolítica e as especificidades da geopolítica russa.
O programa REpowerEU deve ser compreendido como parte de uma situação histórica particular. Tal situação pode compreendida, de forma simplificada, mas ainda verdadeira, pela evolução dos indicadores de consumo, produção, importação, exportação e reservas de recursos naturais energéticos. Quando consideramos o petróleo e outros líquidos derivados, como o gás liquefeito de petróleo (ou liquified petroleum gases, LPG) a dinâmica do consumo se apresenta da seguinte forma. Em 2000 a Europa consumia 900 Mb/d[1] e os EUA 1.4 Mb/d e a Rússia 199 Mb/d de LPG. No ano 2010, a Europa apresentou crescimento de 10%, alcançando o consumo de 988 Mb/d enquanto os EUA apresentaram uma redução do consumo para 1.290 Mb/d. A Rússia cresceu em cerca de 70% seu consumo de LPG, saindo de 199 Mb/d em 2000 para 338 Mb/d em 2010. Em 2019 Europa e Rússia continuam apresentando crescimento do consumo. A Europa alcançou o número de 1.140 Mb/d e a Rússia 793 Mb/d e os EUA 1.4 Mb/d. No que tange ao gás natural a Europa consumia 17,5 bfc em 2000, 21 bfc em 2010 e 19 bfc em 2019.
Como é possível observar pelas figuras 1 e 2, há uma importante expansão do consumo de gás natural na Europa entre 2010 e 2020, mas grande parte do seu consumo é suprido por meio de importações (figura 3). Os países que detém reservas significativas de gás natural na Europa são Polonia, Romênia, Reino Unido, Noruega e Sérvia. Os maiores consumidores (figura 4) eram, em 2019, Alemanha (1º), Reino Unido (2º), Itália (3º), Holanda e Turquia (4º), França (5º), seguidos por Ucrânia e Polônia. Como podemos ver pela figura 5, as reservas de gás natural declinaram radicalmente, enquanto as da Eurásia, Oriente Médio e África cresceram significativamente.
Ao analisarmos a distribuição internacional do consumo de gás natural, das reservas e importações, podemos constatar como a geopolítica da energia vem se alterando nesse mesmo período. O Oriente Médio, a Eurásia e a Rússia respondem pela maior parte das reservas totais de gás natural do mundo. As reservas de gás natural se expandiram muito a partir dos anos 2010 nessas regiões, e, um pouco, nos EUA. Mas as reservas de gás natural europeias, que já eram comparativamente reduzidas, declinaram de forma ainda mais significativa (ver figura 5).
Nesse contexto, o crescimento do consumo de petróleo e gás, ou pelo menos sua estabilização em níveis altos, gera uma demanda pelo comercio internacional e de fluxos energéticos. Enquanto o transporte do Petróleo e do GLP é realizado principalmente por meio da marinha mercante, o transporte do gás natural é mais complexo e exige uma rede de gasodutos interligando os países controladores das reservas, centros de distribuição e os destinatários-consumidores. A posição da Europa é, hoje, de total incapacidade de suprir sua demanda por petróleo e, especialmente, gás natural. Todo o funcionamento da sociedade europeia depende da garantia do comércio internacional e da estrutura sociotécnica dos fluxos energéticos, no caso, de uma rede internacional de gasodutos. Tal rede e estrutura sociotécnica é, essencialmente, territorial e, consequentemente, depende da sua integração no espaço de soberania de diferentes Estados nacionais. Assim, o infrapoder energético incide sobre e é impactado pela lógica do poder-soberania dos diferentes Estados.
Nesse sentido, ao analisarmos a situação da guerra da Ucrânia, e levando em consideração a análise da política energética da UE e dos EUA, realizada acima, podemos trazer luz sobre alguns aspectos que ainda não foram devidamente considerados. A Ucrânia pode ser considerado como um ponto estratégico, talvez o ponto chave, de ligação das redes sociotécnicas de gasodutos e de fluxos energéticos entre a Europa Ocidental e Ásia Central/Eurásia. Observando a figura 6, podemos ver que a Ucrânia é interligada quase que integralmente na rede de gasodutos russa e, por meio da rede ucraniana, o gás natural russo alcança a Romênia, Hungria, Polônia e, subsequentemente, a Europa Ocidental. Segundo dados do Departamento de Estado dos EUA, do total de gás fornecido pela Rússia à Europa em 2014, metade transitava pela Ucrânia.
Além disso, a zona militarmente ocupada pela Rússia responde por grande parte das reservas de petróleo e gás ucrânias, sendo a região de Donetsk, Lugansk e Criméia, dotadas de grandes reservas, além de infraestrutura sociotécnica para transporte dos fluxos energéticos. A Rússia, com a ocupação da Ucrânia, está assegurando para si o controle de um infrapoder energético implicado no controle das reservas e fluxos energéticos-redes sociotécnicas. Ao mesmo tempo, controlando militarmente aquela região da Ucrânia, estabelece um bloqueio para o acesso aos países do Mar Cáspio (quase todos eles integrados e dependentes da rede de gasodutos russas para exportação de gás). A figura 6 mostra um mapa com a zona de ocupação militar russa (em 20 de abril de 2022), reservas de petróleo e gás e alguns dos principais oleodutos e gasodutos que cortam o país e seu mar territorial.
A ocupação militar da Ucrânia está diretamente ligada ao problema do infrapoder energético. Da perspectiva do governo russo, a expansão da OTAN em direção ao Leste (em número de países membros, bem como a distribuição de sistema de armas e intervenções militares), assim como da própria União Europeia, criaram uma situação de ameaça à segurança nacional e energética da Rússia.
Mas devemos lembrar que, além da guerra na Ucrânia, pelo menos duas guerras estão integradas diretamente nesse quadro de luta pelo infrapoder energético. As guerras na Síria e na Líbia, que resultaram na fragmentação territorial e mudança de regimes governamentais nesses países, ocorreram no mesmo contexto da expansão do consumo de petróleo e gás na Europa e EUA, modificando potencialmente a estrutura e disponibilidade do acesso a recursos naturais e fluxos energéticos.
Nesse sentido, podemos observar o seguinte: o mercado de petróleo e do GLP se dá especialmente por meio da marinha mercante; o gás natural, por sua vez, exige a construção de redes de gasodutos que atravessam fronteiras internacionais. A Líbia e a Síria estavam, até 2010, entre os maiores produtores de petróleo do mundo, sendo a Líbia dotada ainda de importantes reservas de gás. A guerra civil nesses dois países eclodiu no contexto da Primavera Árabe, com movimentos exigindo mudanças de regime governamental. Na Síria, levou a deposição e execução de Muamar Kadafi (originalmente do partido União Socialista Árabe) e na Síria a uma guerra civil visando a derrubada do governo de Bashar al-Assad do Partido Baath (do Partido Socialista Árabe). Tanto na Líbia, quanto na Síria, os países foram divididos em zonas, estando EUA e Rússia participando ativamente das guerras por meio apoio indireto (e às vezes diretamente, com bombardeios aéreos e artilharia). As guerras na Síria e na Líbia compõem um quadro mais amplo de luta pelo controle das reservas de petróleo e gás e de controle das rotas das redes de distribuição de gás.
Na realidade, podemos pensar esta guerra como tendo um “teatro de operações” específico, um amplo território intercontinental integrado por quatro mares e suas rotas de navegação e redes de circulação de gás. A figura 7 tenta cartografar esse território e desenhar os pontos de confrontação entre Impérios. Esse amplo território engloba o Norte da África, Europa, Rússia, Oriente Médio e parte da Ásia Central (Cáucaso). Nessa região existem quatro mares que possibilitam a integração e circulação dos fluxos energéticos (Mar Negro, Mar Mediterrâneo, Mar Cáspio e Golfo Pérsico)[2]. Essa região possui a maior parte das reservas de petróleo e gás natural do planeta. O projeto do Gasoduto Transanatoliano, uma rota que atravessa a Armênia e a Geórgia, até chegar a Turquia, é indicado como uma das alternativas principais para viabilizar a transição energética da Europa, possibilitando importações do Mar Cáspio. Porém, a Georgia sofreu intervenção militar russa e a Armênia tem sido historicamente aliado daquele país. A transição energética do programa REpowerEU (em um de seus aspectos, a substituição de importações russas) esbarra num bloqueio político-militar muito concreto.
O mapa acima mostra como as guerras da Ex-Iuguslávia (anos 1990), Afeganistão (2001) Iraque (2003), Líbia (2010), Síria (2011) se desenrolam numa macrorregião intercontinental em que há disputas pelo controle das reservas de petróleo e gás natural, bem como pelas redes on-shore e off-shore de gasodutos, bem como pelo controle das rotas marítimas do comércio internacional de recursos naturais energéticos (especialmente petróleo). Esta mesma região foi onde teve lugar a Guerra da Geórgia (2008), realizada pela Rússia e a guerra entre Armênia e Azerbaijão (2020), que foi encerrada com a mediação diplomática russa e um acordo entre os três países. Dos dez países com maiores reservas de Petróleo (EUA, Canadá, Irã, Iraque, Kwait, Arábia Saudita, Emirados Árabes, Rússia, Líbia e Venezuela), três sofreram intervenção militar direta da Otan (Iraque, Kwait e Líbia) e a Venezuela passou por curta Guerra Civil (2002) com um Golpe de Estado que foi apoiado, diplomaticamente, pelos EUA.
O Mar negro e o Mar Cáspio são especialmente importantes em razão da presença de grandes reservas de petróleo e, dependendo do caso particular, gás. O Golfo Pérsico é, reconhecidamente, a região por excelência de concentração de reservas. Com as guerras do Iraque e do Afeganistão, os EUA tentaram ampliar sua presença e controle do infrapoder energético no Golfo Pérsico e no Mar Cáspio[3] (por meio das fronteiras do Afeganistão com o Turcomenistão). A partir da guerra da Geórgia, a Rússia iniciou seu ativismo estatal-militar internacional, por meio do apoio de setores envolvidos na Guerra da Líbia e na Síria, inaugurando assim os conflitos militares indiretos e às vezes, furtivamente e em pequena escala, diretos, com os EUA/Otan. Assim, rotas alternativas (as do Golfo Pérsico, que estão em situações militares instáveis e complexas) de acesso a reservas de recursos naturais energéticos (Síria e Líbia, no mar mediterrâneo) tornaram-se também questões militares.
Levando em consideração o programa REpowerEU anunciado pela Comissão Europeia, ele opera justamente nesse quadro. A Guerra na Ucrânia explicita uma fragilidade estrutural da Europa, sua dependência energética da Rússia. Por outro lado, o objetivo político principal, de diminuir a dependência externa da Rússia, já estava implícita nas próprias Guerras da Líbia e da Síria[4]. Mas agora, com as medidas apresentadas no plano, se tornará imperativo para a Europa realizar a transição energética, e duas dessas medidas implicam uma tendencia de radicalização da militarização da questão energética: a construção de rotas alternativas de abastecimento; a necessidade de controlar as reservas e as redes de gasoduto, o que significa redesenhar a política para a África, para o Golfo Pérsico e Mar Cáspio. Quanto menor for a efetividade da revolução tecnológica no sentido da produção de energias alternativas, maior será a tendencia da conflitualidade internacional pelo controle do infrapoder energético.
Do Império do mal ao Império das Mentiras[5]: alguns esboços sobre a geopolítica russa
Para entender a situação de uma perspectiva mais global, devemos entender como a Rússia, na figura dos representantes do seu regime governamental como o Ministro do Exterior e o Presidente, interpreta e elabora sua estratégia de política externa e busca dar legitimidade às suas ações. Numa entrevista em março durante evento com a Liga Árabe, mais ou menos no mesmo momento em que foi divulgado o programa REpowerEU, o Ministro do Exterior deu a seguinte declaração. “Serguei Lavrov[6]: “O que nos interessa é saber como o povo russo encara esta (e outras) situação, se compreende os objetivos fixados às nossas Forças Armadas. O mais importante é que o nosso povo compreenda que não é da Ucrânia que se trata, mas do facto de o Ocidente, coletivo subjugado definitivamente por Washington, ser um modelo de um mundo unipolar que Washington queria preservar por meios lícitos ou ilícitos (na maioria dos casos, por meios ilícitos). O problema é que este “soberano” do mundo unipolar pode fazer o que quiser, enquanto os outros não devem sequer ousar levantar a questão de como podem garantir a sua segurança. Durante muitos anos, o Ocidente não se mostrou interessado em debater alguma coisa, ignorando os apelos para honrar os seus compromissos sobre a indivisibilidade da segurança”.
A análise de Putin, em seu discurso de 24 de fevereiro em que apresenta as razões da invasão da Ucrânia, explicitam essa questão estratégica de fundo. O tema principal do discurso quase não toca na Ucrânia, mas fala da política externa dos EUA: “Primeiro, sem qualquer autorização do Conselho de Segurança da ONU, realizou-se uma sanguinolenta operação militar contra Belgrado, com uso de aviação e mísseis bem no centro da Europa. Foram várias semanas de bombardeio contínuo de cidades pacíficas e de infraestrutura vital. É preciso lembrar esses fatos, já que alguns colegas ocidentais não gostam de lembrar esses eventos e, quando falamos disso, preferem apontar não para as normas do direito internacional, mas para as circunstâncias, que tratam como lhes convém. Depois, foi a vez do Iraque, da Líbia e da Síria. O uso ilegítimo da força militar contra a Líbia e a deturpação de todas as decisões do Conselho de Segurança da ONU sobre a questão Líbia levaram à destruição completa desse Estado, criando uma enorme concentração de terrorismo internacional ali e mergulhando o país em um desastre humanitário e no pântano de uma longa guerra civil que não terminou até agora. Já agora, à medida que a Otan se expande para o leste, a situação fica pior e mais perigosa para o nosso país a cada ano que passa. Além disso, nos últimos dias, a liderança da Otan fala abertamente da necessidade de acelerar e de forçar o avanço da infraestrutura da aliança rumo às fronteiras da Rússia. Em outras palavras, eles endurecem sua posição. Não podemos mais apenas observar o que acontece. Isso seria absolutamente irresponsável de nossa parte. Para os EUA e seus aliados, isso faz parte da chamada “política de contenção da Rússia”, são claros dividendos geopolíticos. Mas, para nosso país, isto é, no final das contas, questão de vida ou morte, uma questão do nosso futuro histórico como nação”.
A visão do Estado russo, formulada pelo presente regime governamental, tem dois componentes fundamentais: 1º eles identificam com clareza que o problema de fundo da Guerra da Ucrânia é o modelo de mundo unipolar, tendo a Europa sido submetida pelos EUA e, com isso, ajudando o mesmo a impor esse modelo de subordinação da Rússia. O objetivo da Rússia é assegurar que o mundo de poder unipolar seja destruído e deter a expansão da Otan em direção a Rússia, o que implicaria sua destruição; 2º há uma clara declaração de contestação da ação militar dos EUA e Otan na Líbia, Síria e Iraque, o que tem implicitamente uma declaração de justificação da ação russa nesses países. Isso deriva do fato que a ação dos EUA e da Otan desconsidera o conceito russo de indivisibilidade da segurança, de modo que a hegemonia unipolar dos EUA-Otan, que supõe sua política de segurança própria, compromete, do ponto de vista russo, sua segurança e existência como Estado soberano.
A geopolítica dos EUA, da UE e da Rússia estão em clara rota de colisão. Os EUA, segundo o entendimento da Rússia, continuam operando pela lógica da guerra fria, considerando a Rússia como o “Império do Mal” e avançando as estruturas militares contra seu país. Como resposta, a Rússia aponta os EUA como um “Império das mentiras”, sinalizando para a unipolaridade da ação militar dos EUA/Otan e seu papel recente de destruição e fragmentação de Estados nacionais. Trata-se, então, categoricamente, de conflito entre Impérios que consideram estar lutando por seus interesses vitais.
Aqui então chegamos ao “X” da questão. A presente guerra tem um caráter inovador, já que implicou uma ruptura histórica, pois é a primeira guerra do século XXI em que o protagonismo político-militar é da Rússia e ela, abertamente, está questionando o que ela própria denomina de hegemonia unipolar dos EUA. Trata-se, portanto, do fato que a guerra na Ucrânia é um episódio de uma nova situação histórica, a de um confronto hegemônico entre EUA/U.E versus Rússia e seus aliados. Essa guerra terá, segundo nossa hipótese, como palco principal, pelo menos na próxima década, a região intercontinental dos quatro mares. A luta pelo infrapoder energético é, nesse cenário, vital.
Perspectivas de futuro e cenários geopolíticos
A guerra da Ucrânia definitivamente inaugurou uma nova situação histórica. A Rússia declarou uma guerra para questionar as contradições do sistema ONU e a hegemonia unipolar dos EUA/Otan. É fundamental ter em mente que, sem a pretensão de realizar previsões específicas, compreender que esta situação histórica, a de um confronto hegemônico global entre Rússia e seus aliados versus EUA-Otan, cria possibilidades de novos cenários históricos e de diferentes mundos possíveis.
Podemos indicar dois grandes cenários para o futuro, de acordo com as ideias acima expostas:
1º Cenário: se o programa RepowerEU se realiza por completo, tenderia a diminuir as tensões militares e o risco de guerra direta entre países centrais, ou seja, geraria uma tendencia de desmilitarização da questão energética (pelo menos na relação entre os países centrais). A independência energética europeia das importações russas teria como consequência uma relativa pacificação da Europa, porém poderia gerar um aumento das tensões militares e políticas no Norte da África e Oriente Médio (acirrando a disputa para integração de países como Georgia, Armenia, Cazaquistão, Azerbaijão, impactando assim a política interna destes países). Ou, num cenário mais otimista, poderia aumentar o poder de barganha desses países e melhorar sua posição nas trocas internacionais (isso dependeria da evolução dos regimes governamentais e do ativismo dos povos e das sociedades civis para gerar regimes distributivos da renda extrativa). Mas isso exigiria uma repactuação entre Rússia e EUA/UE e uma reconstrução do sistema ONU, especialmente no que tange a visão derivada do conceito de indivisibilidade da segurança (isso significa, mudar a visão de mundo dos regimes desses países no que tanque à geopolítica) e a doutrina de segurança nacional dos EUA.
2º Cenário: se o programa REpowerEU fracassa e não elimina a dependência energética da Europa em face Rússia, isso reforçaria a tendencia de militarização (aumento de guerras diretas e indiretas pelo infrapoder energético), ampliando os teatros de guerra em todas as regiões dos 4 Mares. Isto pode tanto significar a eclosão de guerras na Europa envolvendo OTAN X Rússia (o que poderia levar uma guerra direta entre superpotências), quanto o expansionismo militar de tipo colonial da U.E/OTAN em direção à África, mas eventualmente, também, uma maior pressão política sobre apolítica energética de países da América Latina, especialmente, Venezuela e Brasil. Nesse cenário, a guerra tenderia a se generalizar. A Rússia, por sua vez tenderia a avançar posições para Oeste e radicalizar o esforço de unificação de sua área de influência no Oriente Médio e Mar Cáspio. Ao mesmo tempo, o Sistema ONU tenderia a entrar numa profunda crise e desestruturação.
A complexidade da situação, entretanto, faz com que para cada tendencia haja contratendências, algumas manifestas, outras latentes: as insurgências e os poderes locais tendem a jogar um papel cada vez maior; as rápidas mudanças na política interna e regimes governamentais também; o ativismo da sociedade civil autônoma; os efeitos climático-ambientais do aumento da intensidade energética; a concretização da revolução tecnológica na área de energia. Todos esses fatores relativizam as tendencias acima e adicionam um componente de imprevisibilidade. Porém, por uma lógica crítica, devemos entender que entramos numa nova ordem internacional em que o confronto hegemônico entre Impérios já foi deflagrado. As tendências para os cenários acima podem evoluir de forma lenta ou acelerada, ou caminharem em outras direções. Mas o confronto por hegemonia irá marcar a vida de todo ser vivo em todo o planeta daqui por diante.
Andrey Cordeiro Ferreira, professor associado da UFRRJ.
LEIA A PRIMEIRA PARTE DO ARTIGO: https://diplomatique.org.br/o-conflito-na-ucrania-e-confrontos-por-hegemonia-no-sistema-interestatal/
Referências
[1] Mb/d = Milhões de barris por dia. Bfc = bilhões de pés cúbicos.
[2] Nesses mares estão o Canal de Suez, Estreito de Ormuz e Estreitos turcos, que concentram as maiores rotas de circulação de petroleiros do mundo.
[3] É importante lembrar que tais guerras levaram a situações militares e sociais complexas, com fragmentação territoriais e a emergência de insurgências islâmicas e étnicas que modificam substancialmente a correlação de forças entre os Impérios, como EUA, e as forças insurgentes locais, dificultando a capacidade de apropriação de infrapoder energético.
[4] Há um número grande de megaprojetos de exploração de petróleo e gás no continente africano liderado por países como França, Itália, Espanha e Inglaterra. A Líbia, por exemplo, é caso exemplar da entrada de empresas de petróleo desses países depois da queda de Kadafi.
[5] Império do Mal, termo pelo qual Ronald Reagan qualificou a URSS num discurso em 1983. Império das Mentiras foi o termo usado por Putin em fevereiro de 2022 para se referir aos EUA.
[6] Intervenção inicial e respostas do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, às perguntas dos jornalistas na conferência de imprensa conjunta com o Secretário-Geral da Liga Árabe, Ahmed Aboul Gheit, e o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Egito, Sameh Shoukry, após as conversações, Moscovo, 4 de abril de 2022. In: http://government.ru/en/