O Congresso e sua pauta conservadora
A pauta imposta à Câmara, que também depende de apreciação do Senado, é uma ameaça às conquistas políticas, econômicas e sociais, além de estar sendo utilizada como elemento de pressão sobre o governo, a quem o presidente da Câmara atribui responsabilidade por sua inclusão na investigação da Operação Lava JatoAntônio Augusto de Queiroz
No Brasil, convivemos em um ambiente de moralismo justiceiro, com uma combinação de quatro fatores que são sinônimo de crise em qualquer conjuntura ou lugar: a) um Congresso conservador e capturado pelo poder econômico; b) um governo fraco; c) um Judiciário midiático; e d) uma imprensa tendenciosa.
Neste texto cuidarei apenas da pauta priorizada pelo Congresso Nacional, que pode ser classificado como conservador do ponto de vista social, liberal do ponto de vista econômico e atrasado do ponto de vista do meio ambiente e dos direitos humanos.
Antes de tratar especificamente da pauta patrocinada pelo Congresso, em especial pela Câmara dos Deputados, é importante resgatar o ambiente da eleição de 2014, que elegeu o Congresso mais conservador do período pós-redemocratização.
Uma das causas da eleição do atual Congresso foi a frustração com a (falta de) resposta das instituições às manifestações de junho de 2013, quando milhões de pessoas foram às ruas protestar em quatro das cinco dimensões da cidadania: a) eleitor; b) contribuinte; c) usuário de serviço público; e d) consumidor. A quinta dimensão é a de assalariado/trabalhador.
Como eleitor, o cidadão tinha e continua tendo razão de sobra para protestar. Ele é o titular do poder e, quando delega para que alguém em seu nome legisle, fiscalize, aloque recursos no orçamento ou administre um município, um estado ou a própria União, o faz com base em um programa, com exigência de prestação de contas e alternância no poder. E nenhum representante tem correspondido a essa expectativa, contribuindo para a descrença do eleitor nos agentes públicos e nos políticos de modo geral.
Na dimensão de contribuinte, o cidadão também protestou com razão. A cobrança de tributos no Brasil é injusta e regressiva, além de incidir basicamente sobre consumo e salários, quando deveria recair sobre renda, lucros e dividendos, patrimônio, grandes fortunas e herança, assim como sobre doações e remessas de lucros ao exterior. Além disso, especialmente na época dos protestos, havia denúncia de desvio de recursos públicos, favorecimento a empresários inescrupulosos, como Eike Batista, e a construção de obras da Copa, especialmente grandes estádios, a que o povo não teria acesso.
Como usuário de serviço público, que foi o estopim das manifestações, sobretudo no transporte público, o cidadão igualmente tinha e continua tendo razão. Apesar do esforço de seus servidores, os serviços públicos de saúde, educação, segurança e mobilidade urbana, além de insuficientes, continuam de má qualidade, tanto por problemas de gestão quanto por falta de recurso.
Na dimensão de consumidor, o cidadão também estava e continua insatisfeito com justo motivo. O governo perdeu a guerra com o mercado financeiro, e o Banco Central voltou a elevar a taxa de juros. Por pura especulação, num momento de sazonalidade de produtos hortifrutigranjeiros, principalmente batata e tomate, a inflação disparou, e o custo de vida ficou mais caro. A atualização das tarifas públicas ou dos preços administrados, como energia elétrica e combustíveis, também impactou o orçamento das famílias, contribuindo para o aumento da indignação do consumidor.
O cidadão, entretanto, não protestou, naquela oportunidade, na dimensão de assalariado/trabalhador porque o emprego e a renda cresciam. Se tivesse participado do processo, o resultado certamente teria sido outro, sobretudo pela capacidade de articulação.
As manifestações foram convocadas pelas redes sociais, sem a participação dos setores organizados – partidos, sindicatos, movimentos sociais etc. –, por isso não havia liderança clara e interlocução com capacidade e experiência na sistematização das reivindicações, sobretudo na negociação com os poderes responsáveis pela aplicação das respectivas políticas públicas reivindicadas. A efetividade, no regime representativo, requer institucionalidade.
Frustrados em suas expectativas, os eleitores ficaram indignados e passaram a se identificar com o primeiro populista, fundamentalista ou messiânico que se apresentasse “contra tudo que está aí”. Com isso elegeram, irrefletidamente, parlamentares conservadores e neoliberais que tinham o mesmo diagnóstico da situação, porém com propostas completamente opostas às esperadas pelos eleitores, que, afinal, pediam mais governo, mais Estado, mais políticas públicas.
O Congresso eleito nesse ambiente político foi esse que vemos, formado por bancadas como a ruralista, a evangélica, a da segurança/bala e a da bola, que, somadas, reúnem a maioria absoluta das cadeiras da Câmara dos Deputados. Essas bancadas, que representam o que há de mais atrasado na política nacional, têm atuado de modo articulado.
Para completar esse quadro sombrio, a Câmara elegeu como seu presidente o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que representa simultaneamente as bancadas conservadoras e os interesses empresariais. A pauta imposta à Câmara, que também depende de apreciação do Senado, é uma ameaça às conquistas políticas, econômicas e sociais, além de estar sendo utilizada como elemento de pressão sobre o governo, a quem o presidente da Câmara atribui responsabilidade por sua inclusão na investigação da Operação Lava Jato.
Entre as matérias pautadas para constranger o governo, além da chamada pauta-bomba, com proposições que aumentam despesas, podemos mencionar, por exemplo, as emendas constitucionais n. 88/2015, conhecida como PEC da Bengala, que aumenta a idade de 70 para 75 anos para a aposentadoria compulsória de magistrados, retirando da presidenta o direito de indicar ministros dos tribunais superiores, especialmente do STF, STJ, TST etc., e n. 86/2015, do orçamento impositivo, que força a liberação automática das emendas parlamentares.
No campo dos direitos humanos, a questão mais simbólica foi a aprovação da PEC n. 171/1993, que reduz a maioridade penal. Mas não se limitou a ela: existe a PEC n. 18/2011 e as cinco anexas, que reduzem de 16 para 14 anos a idade para ingresso no mercado de trabalho; o PL n. 3.722/2012, que desmonta o Estatuto do Desarmamento; o PL n. 6.583/2013, sobre o Estatuto da Família, que nega o direito à união homoafetiva reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal; e o Projeto de Decreto Legislativo n. 1.358/2013, que susta a RN 15, que trata da definição de limites de tolerância para exposição ao calor ou para o exercício de atividade a céu aberto, entre outros.
Na área ambiental, dois exemplos ilustram bem a mentalidade dos ruralistas. Eles pretendem aprovar a PEC n. 215/2000, que transfere do Poder Executivo para o Poder Legislativo a aprovação de demarcações de terras indígenas, dos territórios quilombolas e das áreas de preservação ambiental, e já aprovaram na Câmara, por 320 votos a favor contra 135, o PL n. 4.148/2008, que acaba com a exigência do símbolo da transgenia no rótulo dos produtos com organismos geneticamente modificados (OGM), como óleo de soja, fubá e derivados do milho e da soja transgênica, entre outros.
No campo político, a Câmara aprovou a PEC n. 182/2007, que restabelece o financiamento empresarial de campanha, já declarado inconstitucional pelo STF, além da rejeição das proposições que indicavam a ampliação da participação nas decisões políticas e nos processos eleitorais.
Além disso, a minirreforma eleitoral, colocada em prática por intermédio da Lei n. 13.165/2015, ficou muito aquém das expectativas da sociedade. Ela promoveu mudanças nas leis n. 9.096/95 (partidos políticos), n. 9.504/97 (normas gerais para eleições) e n. 4.737/65 (Código Eleitoral), com as seguintes mudanças principais: a) redução do prazo de filiação partidária; b) redução do período de campanha e de propaganda eleitoral; c) modificação na forma de preenchimento das vagas pelos partidos ou coligações; e d) previsão de janela para mudança de partido sem perda de mandato, sempre no sétimo mês que antecede o término do mandato. O texto aprovado instituía o financiamento empresarial de campanha aos partidos, mas a presidenta Dilma vetou.
No aspecto econômico, destaca-se a tentativa de desmonte dos marcos regulatórios que protegem as empresas nacionais, o conteúdo local, o sistema de partilha na exploração do pré-sal, entre outras proposições, como o PLS n. 167/2015, que trata do estatuto jurídico das estatais e determina a privatização de empresas públicas, como os Correios, o BNDES e a Caixa Econômica Federal, entre outras.
Na área dos direitos sociais, especialmente na esfera dos trabalhistas, a investida é assustadora. Além da aprovação do PL n. 4.330/2004, que autoriza a terceirização e a pejotização em qualquer atividade da empresa, há a emenda à MP n. 680, aprovada na comissão mista, mas rejeitada no plenário da Câmara, que pretendia a adoção da prevalência do negociado sobre o legislado, o que representaria o fim do direito do trabalho e da própria CLT, na medida em que valeria a lei se acordo ou convenção coletiva não dispusesse em sentido diferente.
Também fazem parte da pauta trabalhista da bancada empresarial: o PL n. 450/2015, que institui o Simples trabalhista, ou seja, a redução de direitos trabalhistas dos empregados de pequenas e microempresas; e o PL n. 8.294/2014, que institui a livre estipulação das relações contratuais de trabalho diretamente entre empregados e empregadores, mais nocivo do que o PL n. 4.193/2012, que só aplica a lei se não houver acordo ou convenção com menos direitos. Além destes, existem dezenas de outros, como o PL n. 7.341/2014, que determina a prevalência da convenção coletiva sobre as instruções normativas do Ministério do Trabalho e Emprego.
Essa pauta só não avançou mais e foi toda incorporada ao ordenamento jurídico pela resistência dos movimentos sociais, das centrais sindicais e também pelo fato de ter sido tão retrógrada que até o Senado, que é uma casa conservadora por natureza, considerou exageradas as propostas da Câmara dos Deputados e resolveu debatê-las com mais cuidado, sem açodamento. O fato de o líder desse processo, o presidente da Câmara, estar sob investigação também arrefeceu os ânimos de seus aliados na aplicação dessa agenda atrasada e antinacional.
No Senado, que resiste à agenda retrógrada da Câmara, foi elaborada a tal Agenda Brasil, cujo conteúdo coincide com os interesses empresariais e do mercado. Apresentada como uma agenda positiva em contraponto à pauta da Câmara, ela também constitui ameaça a direitos e aos marcos regulatórios que protegem a economia e as empresas nacionais. Seu escopo é abrangente e está dividido em três eixos – Melhoria do Ambiente de Negócios, Equilíbrio Fiscal e Proteção Social.
Como se vê, as ameaças persistem, e os setores populares precisam organizar a resistência, nas ruas e no campo institucional, porque o governo, além de fragilizado e dividido em relação aos temas da agenda conservadora e neoliberal do Congresso, não dispõe de meios e recursos para conter a investida empresarial sobre os direitos nem das bancadas conservadoras, muitas delas lideradas por integrantes dos partidos da base governamental. A eventual queda do presidente da Casa, por si só, não será suficiente para barrar o ímpeto retrógrado da composição da Câmara dos Deputados. Todo cuidado e toda atenção serão pouco.
*Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista político, diretor de documentação do Diap, colunista da revista Teoria e Debate e do portal eletrônico Congresso em Foco, e autor dos livros Por Dentro do processo decisório: Como se fazem as leis e Por Dentro do Governo: Como funciona a máquina pública.