O contraterrorismo global
A cultura do medo é semeada cotidianamente no Ocidente por meio de restrições migratórias, da xenofobia e do sacrifício das conquistas democráticas. Em nome da luta antiterrorista, criou-se uma sociedade global dividida e apavorada, pronta para aceitar práticas desumanas de tortura
Quais foram os efeitos dos atentados de 11 de setembro de 2001 nos países ocidentais? Duas interpretações dominam o debate público. Para a primeira, a amplitude da ameaça é tamanha que justifica o recurso a práticas de exceção temporárias, que permitam por si só salvar os valores “democráticos”. A segunda inverte o raciocínio: as medidas antiterroristas constituem uma estratégia de longo prazo dos governos para eximir-se da lei comum e instaurar um clima de vigilância que nos faz sair da democracia. No dia seguinte aos atentados, o presidente George W. Bush e sua equipe decidiram aplicar represálias imediatas contra os talibãs e recusar aos não-afegãos capturados no país o estatuto de prisioneiros de guerra previsto pelas convenções internacionais. Para detê-los indefinidamente no campo de Guantánamo, inventaram uma categoria bastarda, a de “combatentes inimigos”. Justificada por argumentos falaciosos – como a presença de armas de destruição em massa e de elementos da Al-Qaeda no Iraque –, a legitimidade da opção pela guerra ao terrorismo é altamente discutível. Mas terá sido, ao menos, “eficaz”? Seja no caso do Iraque ou do Afeganistão, a resposta está longe de ser positiva.
Além disso, a intensificação da cooperação antiterrorista internacional permitiu que inúmeras ditaduras e regimes pouco ou nada democráticos, fortemente solicitados para a coleta de informações contra os presumidos terroristas, endurecessem a repressão contra seus opositores políticos e algumas minorias étnicas ou religiosas. Esse é o caso principalmente da Líbia, do Egito, da Argélia, da Tunísia e do Nepal, além da Rússia. A demanda de colaboração realmente abriu, para esses tipos de regime, a possibilidade de transformar as lutas contra seus opositores em um novo elemento da guerra global contra o terrorismo.
Entre ciência e adivinhação, formam-se relatórios sobre as pessoas potencialmente criminosas que precisam ser presas de antemão, uma forma de estruturar o conjunto da racionalidade das políticas antiterroristas. Mas a análise dos repetidos erros de julgamento dos governos e de seus serviços de informação desde 2002 entrevê que esse suposto saber sobre o incerto, sobre o comportamento dos inimigos e sobre a capacidade de localizá-los a tempo é no mínimo discutível, como mostra a diferença extraordinária que há entre suspeitos, interrogados, acusados e condenados. Essa diferença pode sempre ter existido, mas agora toma outras proporções. Ela parece mais uma astrologia à procura de signos desconhecido nos corpos e comportamentos humanos do que uma forma de técnica científica probabilista e fundada na análise racional dos riscos.
É, no entanto, a vontade de prevenção “justifica” a tortura, as detenções, a ausência de processo justo e todas as práticas que desafiam os direitos fundamentais. Trata-se sempre de “extrair informação”, de fazer falar os indivíduos. E se eles se calam, é preciso obrigar seu corpo a falar. Muitos lugares foram utilizados para esses fins, incluindo quase sempre tratamentos degradantes e desumanos: Abu Ghraib no Iraque, Baía de Guantánamo, em Cuba, além de todo um arquipélago de lugares de detenção secretos no Afeganistão, Síria, Marrocos, Egito etc.; e no continente europeu, na Polônia e na Romênia – conectados pela rede das bases militares norte-americanas e da Otan –, entre as quais Diego Garcia, no Oceano Índico; Campo Bondsteel, no Kosovo; e de outros lugares revelados aos poucos. Sete anos após sua implantação, esses dispositivos são ineficazes. Afinal, apesar dos tratamentos aos quais foram submetidos, os suspeitos em todas essas bases não trouxeram informação válida e as acusações que pesam contra eles não foram fundamentadas.
Em janeiro de 2002, o jurista americano Alan Dershowitz tentou justificar a tortura “legal” invocando a imagem de um terrorista que sabe a localização de uma bomba prestes a explodir e recusa-se a revelá-la. Essa hipótese é muito pouco realista, mas sua simples lembrança serviu para legitimar práticas usadas para obter uma informação qualquer – às vezes pela simples rotina do medo, e nem tanto pelo objetivo de extrair uma informação.
O que é certo é o efeito contraproducente maior desses procedimentos: eles foram mais competentes que a melhor propaganda da Al-Qaeda para desenvolver vocações de combatentes suicidas, radicalizando segmentos da população do mundo muçulmano que, antes, não eram hostis aos norte-americanos, como na Indonésia e na Índia. E, para além da administração Bush, é a imagem da diplomacia ocidental em seu conjunto – incluindo as organizações não-governamentais (ONGs), que correm o risco de sofrer com esse retrocesso durante décadas, visto que a recusa dos europeus em participar incisivamente dessas ações não impediu algumas formas de cumplicidade.
Porém, ainda que as fórmulas antiterrorismo não sejam similares, Europa e Estados Unidos estão juntos, desenvolvendo práticas comuns. Os jogos políticos que provocam a criminalização dos migrantes e, de modo mais geral, a instrumentalização das relações entre terroristas, muçulmanos e estrangeiros são em parte responsáveis pelo aumento das inquietudes: eles dão um caráter íntimo à inimizade, criando um clima de suspeição segundo o qual os membros das organizações clandestinas seriam as pessoas “sem-documentos”, os religiosos, os desempregados, aqueles que migraram irregularmente.
Limites ao poder judiciário
Em nome da luta antiterrorista, parlamentares de todas as linhas aceitam, sem discussão, as medidas restritivas concernentes às imigrações ilegal e legal, às condições de reagrupamento familiar e aos princípios do direito de asilo. Trata-se evidentemente de uma incitação aos ministros do Interior e às polícias para aumentar, por meio dessas medidas, sua margem de manobra, e de um encorajamento para limitar os controles judiciários que pesam sobre eles.
À proporção que as medidas repressivas parecem tocar apenas categorias específicas, visadas pelo contraterrorismo global, a emoção pública é limitada. Ela só se exprime quando alguns grupos privilegiados se tornam bruscamente objeto de controle, pois compartilham dos “parâmetros” de populações “anormais” e sentem o que a segurança individual tem a perder quando ela se confronta com os imperativos de segurança nacional.
Isso é ainda mais flagrante em relação aos controles de identidade policiais e aos mecanismos de vigilância privados: os cidadãos só se insurgem contra esses dispositivos quando tomam consciência de que as informações coletadas podem ser utilizadas por anos a fio, em contextos sociais diferentes e segundo interpretações no mínimo distantes da realidade vivida. No cotidiano, resta a indiferença e até a aprovação explícita em relação às novas formas de vigilância. Tanto que os jovens das classes populares – e principalmente dos grupos étnicos estigmatizados – são vistos como nada mais do que os indesejáveis de quem a sociedade deve se proteger por medida de segurança. Assim, o único papel da prisão é mantê-los afastados, se não indefinidamente, ao menos pelo maior tempo possível. Seu sentido social é o cativeiro.
Esses comportamentos estruturam, tanto quanto os discursos do contraterrorismo e os apelos a que se abra mão de certas leis em nome do perigo iminente, as normas do que parece ou não inadmissível. Refletir sobre a política da inquietude nos faz questionar nossas próprias responsabilidades, e não apenas as dos dirigentes, sobre os dispositivos de uma gestão da insegurança da qual participamos ativamente, e mais voluntariamente do que gostaríamos de admitir.
*Didier Bigo é mestre de conferências no Institut d’Études Politiques de Paris.