O desafio das metrópoles
No Brasil, as grandes cidades foram utilizadas como fronteira amortizadora dos conflitos sociais inerentes ao capitalismo concentrador e excludente que aqui se implantou. Por isso, as metrópoles apresentam hoje os maiores obstáculos à nossa construção como nação
O destino das metrópoles está no centro dos dilemas das sociedades contemporâneas. As transformações econômicas, sociais e tecnológicas em curso desde a segunda metade dos anos 1970, em especial as decorrentes da globalização e da reestruturação socioprodutiva, aprofundaram as dissociações engendradas pelo capitalismo industrial entre progresso material e urbanização, economia e território. Segundo previsões de organismos internacionais, em 2015 teremos 33 aglomerados urbanos do porte de megalópoles, dentre as quais 27 estarão localizadas em países em desenvolvimento. Apenas Tóquio será a grande cidade do mundo rico.
Por outro lado, enquanto boa parte das metrópoles do Hemisfério Sul continuará a apresentar taxas explosivas de crescimento demográfico, dissociadas do necessário progresso material, aquelas que concentram as funções de coordenação, direção e comando dos fluxos econômicos mundiais encolherão relativamente de tamanho. Teremos então duas condições urbanas: a gerada pela vertiginosa concentração populacional em grandes cidades, nos países em processo de “desruralização”, induzido pela incorporação do campo ao espaço mundial de circulação do capital; e a decorrente da concentração do capital, dos recursos de bem-estar social e do poder.
Ao mesmo tempo, apesar do aumento das assimetrias, as metrópoles ampliaram seu papel indutor do desenvolvimento econômico das nações, como já mostraram os trabalhos clássicos de J. Jacobs (1969) e as pesquisas sobre a relação entre a globalização e as metrópoles (Veltz, 1996; 2002). Porém, para tanto, as metrópoles devem ser mais do que meras plataformas de atração de capitais fundadas na lógica do rebaixamento dos custos. A redução dos custos da distância e as vantagens pecuniárias – produtos da revolução dos meios de transportes e comunicação e dos novos sistemas de gestão empresarial – contam hoje menos do que os efeitos de aglomeração decorrentes da densificação das relações sociais, culturais e intelectuais. As metrópoles devem, portanto, constituir-se em meios sociais capazes de promover a inovação, a confiança e a coesão social, tornando-se veículos da junção entre Estado e nação.
Apesar de seus desequilíbrios, o nosso sistema urbano constitui importante ativo para o desenvolvimento nacional. Ele é composto por 37 grandes aglomerados urbanos onde residem aproximadamente 45% da população (76 milhões de pes-soas) e se concentram 61% da renda nacional. Entre os 37 grandes aglomerados urbanos, temos 15 metrópoles, isto é, aglomerados que apresentam características próprias das novas funções de coor-denação, comando e direção das grandes cidades na “economia em rede”. Isto é: concentração populacional, capacidade de centralidade, grau de inserção na economia de serviços produtivos e poder de direção medido pela localização das sedes das 500 maiores empresas do país, pelo volume total das operações bancárias/financeiras e pela massa de rendimento mensal1. O mapa que acompanha este artigo fornece uma representação gráfica da distribuição e da hierarquia dos grandes espaços urbanos brasileiros.
Os 15 espaços considerados metropolitanos têm enorme importância na concentração das forças produtivas nacionais. Eles centralizam 62% da capacidade tecnológica do país, medida pelo número de patentes, artigos científicos, população com mais de 12 anos de estudo e valor bruto da transformação industrial (VTI) da empresas que inovam em produtos e processos. Nessas 15 metrópoles estão concentrados também 55% do valor de transformação industrial das empresas que exportam. Temos, portanto, um sistema urbano que pode ser considerado importante ativo para um projeto de desenvolvimento nacional, perante as novas tendências de transformação do capitalismo.
Mas, ao mesmo tempo, nelas estão concentrados também os grandes desafios a serem enfrentados, na forma de passivos resultantes de um modelo de urbanização organizado essencialmente pela combinação entre as forças de mercado e um Estado historicamente permissivo com todas as formas de apropriação privatistas das cidades. Não se trata de constatar e procurar entender a ausência do planejamento governamental no intenso e acelerado processo de urbanização, que transferiu para a cidade 8 milhões de pessoas na década de 1950, 14 milhões na de 1960 e 17 milhões na de 1970. A omissão planejadora do Estado decorreu da utilização da cidade como uma espécie de fronteira amortizadora dos conflitos sociais inerentes ao capitalismo concentrador e excludente que aqui se implantou.
Por esse motivo, as metrópoles estão hoje despreparadas, material, social e institucionalmente, para o crescimento econômico baseado na dinâmica da inovação, na economia do conhecimento e na eficiência que mobilizam não apenas a lógica do mercado, mas também os efeitos positivos da coesão social. Nelas está conformado um conjunto de passivos cujo enfretamento é imperativo para que forças produtivas consteladas na complexidade de nossa rede urbana possam alavancar o desenvolvimento nacional.
Examinaremos três dimensões desses passivos. Tomemos, em primeiro lugar, as conseqüências dessa “política urbana perversa” sobre a mobilidade espacial. Inexistem sistemas públicos e coletivos de transportes urbanos nas metrópoles capazes de estruturar o uso e a ocupação do espaço e, ao mesmo tempo, se contrapor à submissão ao transporte individual e privado, hoje gerador de enormes “deseconomias” urbanas. Os últimos números sobre São Paulo são impressionantes: no dia 3 de abril de 2008, o índice de congestionamento atingiu a marca 229 quilômetros. Mas, como era de esperar, as conseqüências dessa irracionalidade não atingem igualmente a todos. A “São Paulo dos negócios” paira acima do inferno do trânsito, movimentando-se com a utilização da segunda maior frota particular de helicópteros do mundo, com cerca de 500 aparelhos. Enquanto os “players do mercado”circulam pelo ar, os trabalhadores enfrentam as conseqüências desse modelo de urbanização, buscando formas de estar próximos aos espaços onde se concentram os empregos e a renda. O gráfico que acompanha este artigo nos fornece uma visão da pressão demográfica pela centralidade. Ele traz o grau de concentração do PIB, da população residente e do incremento demográfico nos pólos e nos quatro graus de integração aos pólos dos municípios que compõem as 15 metrópoles.
A pressão pela ocupação das áreas centrais resulta da combinação das transformações do mercado de trabalho ocorridas nos anos 1980 e 1990 – cujo principal traço é o crescimento da ocupação informal, transitória ou precária, especialmente no setor de serviços, e sobretudo nos serviços pessoais e domésticos – com a reconhecida crise da mobilidade urbana e o colapso das formas de provisão de moradia. Como a riqueza continua concentrada nos municípios-pólos pode-se concluir que uma das principais características da dinâmica socioterritorial nas metrópoles é o conflito pela centralidade na ocupação e uso do solo urbano.
Trocaram o ônibus pelo par de tênis
As duas outras expressões desse conflito são, de um lado, a imobilidade de parte da população trabalhadora e, de outro, a reprodução da precariedade do habitat urbano. Nos últimos nove anos, nas principais metrópoles, nada menos de 26% dos brasileiros que hoje vegetam com renda familiar abaixo de R$ 500 trocaram o ônibus pelo par de tênis! Outros 13%, pela bicicleta. Estudos têm estimado que, se os trabalhadores das regiões metropolitanas utilizassem de maneira produtiva o tempo gasto em transporte, tal fato acarretaria, em um ano, um aumento de cerca de R$ 55 bilhões na renda do trabalho (em valores de março de 2004). Nas metrópoles de São Paulo e Rio de Janeiro, onde as distâncias dos bairros periféricos à cidade-pólo são as maiores, essa perda potencial corresponde, em cada uma delas, a 26% da massa de renda apropriada pelos trabalhadores. Em outros termos, o aumento da eficiência da circulação poderia ter um impacto muito positivo na diminuição da pobreza, com repercussões adicionais no aumento da produtividade da economia.
Os trabalhadores que conseguem se infiltrar na centralidade metropolitana trocam a imobilidade pela precariedade habitacional. As favelas são a sua mais evidente expressão. Nas 15 metrópoles, quase três quartos dessas moradias se distribuem por um raio de até 10 quilômetros a partir dos pólos. As características da precariedade habitacional são a ilegalidade, a irregularidade, a construção em solos pouco propícios à função residencial, o adensamento da ocupação da moradia e, em muitos casos, o emprego de parcelas consideráveis da renda no aluguel.
Essas características não estão homogeneamente presentes em todas as metrópoles, pois são altamente influenciadas pela história das formas de produção da moradia popular e do regime político de gestão do território urbano. Em São Paulo, por exemplo, as favelas apresentam maior precariedade quanto ao tipo de terreno ocupado e maior afastamento das áreas centrais. Ermínia Maricato (1996) estima que 49,3% das favelas da cidade de São Paulo estão localizadas em beira de córrego, 32,2%, em terrenos sujeitos a enchentes, 29,3% foram construídas em terrenos com declividade acentuada e 24,2%, em terrenos sujeitos à erosão. Os mapas de localização das favelas de São Paulo evidenciam o seu distanciamento em relação ao núcleo econômico e social da metrópole, mas em áreas que permitem o acesso. Em compensação, os cortiços parecem constituir estratégia de proximidade, em razão de sua localização nas áreas mais centrais. Já na região metropolitana do Rio de Janeiro, o regime urbano permite um modelo de proximidade das favelas com os bairros que concentram as moradias dos segmentos superiores da estrutura social, conforme descrito por Ribeiro e Lago (2001).
Ao lado desse conflito, as metrópoles brasileiras estão concentrando também os aspectos mais dramáticos da crise de sociabilidade, cujo lado mais evidente é a exacerbação da violência. Os dados sobre a criminalidade violenta nas metrópoles brasileiras são tão impressionantes que levaram o historiador Luiz Mir (2004) a cunhar a expressão “metrópoles da morte”: a taxa de homicídios dobrou em 20 anos; a média da taxa de vítimas de homicídio, entre 1998 e 2002, foi de 46,7 vítimas por 100 mil habitantes. Esse valor está bem acima da média nacional, que, no mesmo período, foi de 28,6. Ou seja, a incidência de homicídios nas regiões metropolitanas é quase duas vezes maior que a incidência nacional. Como é sabido, as vítimas de homicídio concentram-se no segmento dos jovens do sexo masculino.
O terceiro aspecto decorre das conexões entre a segregação residencial e os mecanismos de reprodução das desigualdades sociais. A utilização da cidade como fronteira amortizadora dos conflitos implicou a instituição de um regime dual de bem-estar, combinando a variante “familístico-mercantil” (Esping-Anderson, 1995) com a atuação de um Estado de bem-estar social seletivo. Foram transferidas para as famílias e comunidades as principais funções de reprodução social, ao mesmo tempo que se instaurou uma perversapolítica urbana de tolerância totalpara com todas as formas e condições de ocupação da cidade, tanto pelo capital quanto pelo trabalho.A fisionomia, a organização do território, a vida social, enfim, todos os aspectos de nossa realidade urbana expressam as várias facetas desse regime de reprodução social.
Hoje, podemos dizer que atravessamos, nas grandes metrópoles, uma crise decorrente da fragilização desse regime dual de bem-estar, cujos mecanismos são as transformações do mundo do trabalho e a fragilização das estruturas sociais nos planos da família e do bairro, combinados com os mecanismos de segregação residencial. A fragilização das estruturas sociais familiar-comunitárias tem ocorrido pela ação de três tendências:
– a crescente incorporação à cidade, mediante a lógica mercantil, dos territórios populares marginalizados, com a constituição de mercados paralelos de moradias (sem titulação formal), de segurança pública (sujeitos à ação de milícias privadas) e de serviços coletivos (“gatonet”, “gatogás”, “gatoluz”) – fato que aprofunda a separação da população que neles mora das instituições garantidoras da coesão social por meio dos direitos de cidadania;
– a difusão de uma sociabilidade violenta2 como ordem social e suas conse-qüências na vida coletiva prevalecente nesses territórios; a tendência à concentração territorial dos segmentos vivendo relações instáveis com o mercado de trabalho e seu conseqüente isolamento sociocultural em relação ao conjunto da cidade.
Os três mecanismos se reforçam mutua-mente, transformando a segregação residencial em uma das principais marcas da atual ordem urbano-metropolita
na. Observamos, em nossos estudos, evidências empíricas nessa direção. Além das já conhecidas tendências ao auto-isolamento das camadas superiores em cidadelas fortificadas – conhecidas como “condomínios fechados” –, constatamos a formação de territórios concentrando uma população que vive o acúmulo de vários processos de vulnerabilização social. São bairros periféricos e favelas onde habitam pessoas que mantêm laços instáveis com o mercado de trabalho e vivem sob condições de fragilização do universo familiar – territórios que tendem a concentrar uma espécie de “capital social negativo”, segundo a terminologia de Wacquant (1998).
Em estudo realizado pelo Observatório das Metrópoles (Ribeiro, 2007), constatamos que o risco de jovens de 17 a 24 anos ficarem em situação de “desafiliação institucional” (ou seja, sem estudar, sem trabalhar, nem procurar ocupação) aumenta 30% se moram em bairros com forte concentração de responsáveis por domicílios que mantenham frágeis e instáveis laços com o mercado de trabalho. E que o risco de “desproteção escolar-familiar” de crianças e jovens de 4 a 14 anos aumenta 28%.
As metrópoles, que apresentam expressivos traços das forças produtivas requeridas pelo novo modelo de desenvolvimento, geram condições de vida e estruturas bastante desfavoráveis à reprodução social e, conseqüentemente, à coesão social. Estão, portanto, no coração dos dilemas atuais- da nação brasileira. Em seu solo, estão concentrados e dramatizados os efeitos da disjunção entre economia, sociedade e nação inerentes a nossa condição histórica de periferia da expansão capitalista, acelerados pela subordinação à globalização hegemonizada pelo capital financeiro.
Por que tão pouco tem sido feito?
Devemos ser capazes de construir respostas às ameaças de descoesão social, sem o que nenhuma mudança de rumo do transatlântico da economia estabilizada e solvável será possível ou terá sentido. Lembrando Celso Furtado, diría-mos como ele que, nas metrópoles, estão concentrados os processos que interrompem a nossa construção como nação. Mas cabe, então, perguntar: se enfrentar a questão social é uma necessidade simultaneamente social e econômica, além de um imperativo moral, por que tão pouco tem sido feito? Por que a questão metropolitana tem sofrido de uma ameaçadora orfandade política? Até quando será possível conciliar o processo de democratização com a manutenção de tamanhas e gritantes disparidades sociais?
Em resumo, o sistema urbano-metropolitano brasileiro contém forças produtivas potencialmente capazes de sustentar um novo modelo de desenvolvimento. Depende da capacidade de a sociedade brasileira instituir um verdadeiro Programa de Reforma Urbana que transforme as metrópoles em metropolis, ou seja, em urbes, civitas e polis.
*Luiz César Queiroz Ribeiro é professor titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisador do IA do CNPq e coordenador do Observatório das Metrópoles /Instituto do Mmilênio-CNPq. (www.observatoriodasmetropoles.net)