O desafio do governo Lula e os direitos humanos na ONU
Ao aceitar as recomendações feitas pelos Estados membros da ONU em relação à Revisão Periódica Universal dos Direitos Humanos no Brasil, o governo Lula assume uma pauta clara para avanços no campo dos direitos humanos
No final de março deste ano, o governo brasileiro anunciou, durante a 52ª sessão da Comissão de Direitos Humanos da ONU em Genebra, que irá adotar o relatório final do 4º ciclo da Revisão Periódica Universal dos Direitos Humanos no Brasil. Esse mecanismo tem como objetivo monitorar o cumprimento dos direitos humanos nos 193 países que compõem o Sistema ONU. Ao aceitar as recomendações feitas pelos países membros, o Brasil assume o compromisso de colocar em prática avanços recomendados nos próximos quatro anos em relação aos direitos humanos.
O 4º Ciclo da Revisão teve como período analisado os últimos quatro anos (2019-2022), época marcada pelo desmanche provocado pelo governo de Jair Bolsonaro. Importante ressaltar que o Brasil, governo Lula, acolheu todas as recomendações, exceto duas feitas pelo Egito e Rússia, que defendiam um conceito de família tradicional.
No que se refere à deterioração da situação dos direitos humanos no Brasil, especificamente em relação ao direito a um meio ambiente limpo, saudável e sustentável, e aos direitos dos povos indígenas, quilombolas e outros grupos afetados pelas indústrias extrativas, em especial as atividades de mineração, é necessário entender o significado, o alcance e as implicações das recomendações assumidas pelo país diante dos Estados membros da ONU.
No Brasil, a legislação ambiental está sendo regredida sem ampla participação pública, favorecendo a indústria extrativa. Exemplos disso são os projetos de lei sobre licenciamento ambiental, PL 2159/2021 e PL 3729/2004, que simplificam os processos burocráticos legais para exploração mineral e carecem de transparência e participação das comunidades. O PL 3729, por exemplo, dispensa a avaliação ambiental ou de direitos humanos em terras indígenas e tradicionais.
Por isso, o governo Lula deve abster-se de adotar leis ambientais regressivas que violem o direito internacional de direitos humanos. Deve, também, adotar medidas para reverter políticas que apoiem procedimentos de flexibilização de licenciamento e monitoramento ambiental, estabelecendo procedimentos claros para garantir a consulta e a participação dos povos indígenas, quilombolas e atingidos, incluindo as populações urbanas e rurais, em todos os processos legislativos.
É necessário investir em políticas públicas que visem a garantia dos direitos das populações atingidas pelos empreendimentos minerários, com ampla participação em processos decisórios, bem como o estabelecimento de mecanismos de fiscalização e regulação que sejam mais eficazes em relação às violações de direitos por parte das empresas do setor minerário.
A promoção de diálogos com as comunidades tradicionais e indígenas, ouvindo suas demandas e necessidades, buscando soluções que respeitem seus modos de vida e a preservação de suas culturas será fundamental para o cumprimento dos acordos aceitos na Revisão. Para o avanço dessas políticas, a realização de estudos de impacto ambiental criteriosos, que considerem os efeitos de longo prazo das atividades de mineração, visando a preservação da biodiversidade e dos recursos naturais, deverá ser um passo prioritário.
O Brasil terá que estabelecer procedimentos claros para respeitar o consentimento livre, prévio e informado para as comunidades afetadas pela mineração. Áreas mineradas ilegalmente cresceram 66% em terras indígenas de 2017 a 2020. Territórios quilombolas também são afetados pela mineração, prejudicando cerca de 20.800 pessoas em sete estados brasileiros. Essas comunidades frequentemente são deslocadas forçosamente e muitas vezes sem consentimento livre, prévio e informado. Em 2020, 57.662 pessoas foram deslocadas internamente em 26 conflitos identificados. Por essa razão o Brasil deve ratificar o Acordo de Escazu e retirar de pauta os PLs 490/2007 e191/2020.
Em relação ao direito à água e a um meio ambiente limpo e saudável, o atual governo, na verdade, terá que reverter a política do governo Bolsonaro de enfraquecimento de instituições que podem fiscalizar efetivamente a implementação de regulamentações ambientais. Exemplo são os cortes orçamentários para construção da política ambiental, como apresentado pelo estudo “O financiamento da gestão ambiental no brasil: uma avaliação a partir do orçamento público federal (2005-2022)”, que teve uma redução de 71% entre 2014, quando os repasses atingiram o maior patamar da história (R$ 13,3 bilhões), e 2021, que contou com apenas R$ 3,7 bilhões.
Os conflitos envolvendo indústrias mineradoras estão relacionados à obstrução do acesso à água causada pela contaminação dos cursos d’água, à privatização de fontes de água pelas empresas e ao esgotamento e poluição das fontes hídricas. Esses conflitos têm aumentado recentemente e estão relacionados a diferentes causas, incluindo o colapso das barragens de rejeitos que afetam rios importantes, contaminação por metais pesados e outros poluentes que atingem comunidades indígenas e quilombolas e o risco de novos projetos de mineração.
Os rompimentos e/ou vazamentos ocorridos nos últimos anos são exemplos de conflitos relacionados à contaminação da água: barragens de rejeitos que afetaram os rios Doce, em Minas Gerais e no Espírito Santo, e o rio Paraopeba, em Minas Gerais; vazamento de alumínio na área de Barcarena, no Pará; contaminação por mercúrio causada por garimpos afetando terras e populações dos Munduruku, no Pará, e Yanomami, em Roraima; transbordamento e rompimento de uma barragem de mineração de ouro em Godofredo Viana, no Maranhão, contaminando três lagos; contaminação por cianeto do Rio Amapari na Pedra Branda do Amapari, no Amapá; contaminação de águas subterrâneas por bário, em Araxá, e por arsênio, em Paracatu, ambas em Minas Gerais.
Para enfrentar essa problemática relacionada à política hídrica, nos processos envolvendo a mineração, o governo brasileiro necessita fortalecer os órgãos de monitoramento, fiscalização e controle como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Serviço Florestal Brasileiro (SFB), a Agência Nacional de Mineração (ANM) e a Agência Nacional de Águas (ANA), para construir políticas que responsabilizem as mineradoras por danos causados.
Quando se trata do direito ao trabalho, das condições justas e favoráveis no ambiente de trabalho, o setor de mineração no Brasil apresenta o maior número de acidentes, três vezes mais do que outros setores. Os desastres e crimes em Mariana e Brumadinho são exemplos desses acidentes, sendo Brumadinho um dos mais catastróficos, com cerca de 272 mortes. As regulamentações trabalhistas são parte do problema, permitindo condições de trabalho inseguras. A empresa Vale, por exemplo, aumentou o número de terceirizados de 57.388 em 2019 para 90.877 em 2020. Em 2017, foi aprovada a Lei 13.467, que permite a ampliação do dia útil para 12 horas em vez de 8 horas, seguido por 36 horas de descanso. Além disso, essas condições precárias foram agravadas durante a pandemia de Covid-19, quando a atividade de mineração foi considerada essencial, para que não houvesse a paralisação desta atividade econômica, ocasionando colapsos no sistema público de saúde, como ocorreu em Parauapebas, no Pará.
Por essas razões, o Brasil tem que estabelecer direitos humanos abrangentes e proteção ao trabalho para os trabalhadores, especialmente aqueles que trabalham na indústria de mineração e garantir o funcionamento efetivo de uma fiscalização laboral e monitoramento independente das condições trabalhistas no setor de mineração.
Quando se trata do direito a uma remediação eficaz, incluindo reparação, muitas comunidades afetadas por desastres e/ou crimes relacionados à mineração ainda não receberam reparação completa pelos danos que sofreram. Um grande número delas não é reconhecido como vítima, seja pelo governo ou pelas empresas, e permanece excluído de programas de ajuda emergencial e compensação. O processo de reparação em si também pode violar os direitos humanos. Desastres e/ou crimes que exemplificam isso são os rompimentos da barragem em Mariana, onde 344 famílias ainda aguardam a reconstrução de suas casas, a Fundação Renova que não cumpriu as medidas de reparação planejadas e o acordo de repactuação que não leva em consideração os atingidos, e o não reconhecimento do status dos afetados pela barragem Córrego do Feijão em Brumadinho para as comunidades ao longo do rio Paraopeba.
O Brasil deve garantir que as vítimas que tiveram seus direitos violados como resultado das atividades empresariais tenham acesso à justiça, à compensação justa, remediação e reparação de danos e deve desenvolver planos de preparação de emergência em conjunto com o governo e as comunidades, especialmente em áreas de alto risco, como também combater a impunidade e responsabilizar as empresas por irregularidades estabelecendo processos penais, civis e administrativos independentes e imparciais.
Ao aceitar as recomendações feitas pelos Estados membros da ONU em relação à Revisão Periódica Universal dos Direitos Humanos no Brasil, o governo Lula assume uma pauta clara para avanços no campo dos direitos humanos em relação ao setor minerário.
Na América Latina, é comum ver uma relação de complementação e fortalecimento mútuo entre os Estados nacionais e o setor privado. O Estado assume um papel central como proprietário ou incentivador da extração, principalmente para o mercado externo, e subsidia os investimentos. Por sua vez, as empresas passam a exercer um papel fundamental nas políticas públicas, tanto naquelas que criam um ambiente favorável à manutenção do modelo extrativista, como nas redistributivas ou compensatórias para a população em situação de pobreza e miséria. No entanto, quando essas últimas políticas são financiadas pelo próprio extrativismo, surge um paradoxo perigoso: o combate à pobreza depende do aumento do extrativismo. Para expandir o modelo extrativista, os Estados abrem suas portas para os mercados extrativistas na sistemática de globalização imposta pelo capitalismo transnacional.
A apropriação privada, intensa e prejudicial de bens comuns, como terra, água e bens naturais, é um método de acumulação de capital. A mineração é um processo que se baseia na perspectiva utilitarista e econômica da natureza, resultando em uma exploração insustentável de bens comuns e em um aumento crescente da demanda por bens de consumo. Como resultado, milhões de pessoas têm sido privadas de seus meios de subsistência e dos recursos que sustentam suas comunidades. A mineração é um processo de pilhagem das populações em seus territórios que provoca grande depredação do sistema vida do planeta.
Um imenso desafio que surge como resultado do 4º Ciclo da Revisão Periódica Universal dos Direitos Humanos no Brasil é a necessidade de combater a captura do Estado pelo setor minerário. A história mostra que as instituições do Estado são frequentemente influenciadas pelas corporações mineradoras. A negligência, a burocracia e a violação de direitos humanos e ambientais por parte dessas empresas não são exceções, mas sim características do modelo de mineração, que é reforçado pela impunidade decorrente da captura corporativa do Estado. Esse processo ocorre por meio de diversas estratégias, como financiamento eleitoral, por exemplo, pela chamada “bancada da lama” no Congresso e nas assembleias legislativas, ou ainda por meio da “porta giratória”, em que indivíduos trocam de funções entre o setor público e privado. Além disso, a empresa é vista como parceira do Estado no desenvolvimento, o que pode levar o Estado a defender o processo de licenciamento do empreendimento e, até mesmo, corrupção dentro das instituições do Estado, como apresentado pelo relatório do TCU no ano de 2020.
A agenda em relação à mineração a ser desenvolvida pelo atual governo, portanto, terá de ser a de superação de um modelo de comercialização da vida, das pessoas, dos bens comuns, da política e do Estado que gerar lucros para corporações e agentes públicos a elas aliados.
Frei Rodrigo de Castro Amédée Péret é frade franciscano, coordenador da Ação Franciscana de Ecologia e Solidariedade, e membro da equipe de assessoria da Comissão Especial para Ecologia Integral e Mineração da CNBB.