O desconforto das mulheres que desafiaram a história
No Brasil patriarcal, o desconforto de nascer mulher é percebido desde a infância, quando a elas são impostas as obrigações do cuidado
Como mulher e pesquisadora, percebo que, ao longo da história, a maior parte das conquistas femininas nas áreas social, política, educacional e cultural advém de um desconforto vivido em suas próprias trajetórias, frequentemente silenciadas pelas narrativas dominantes. Superando um esforço extraordinário em nome da liberdade, justiça e equidade, suas lutas defendiam não apenas o coletivo, mas também o seu próprio direito de existir e realizar-se.
No Brasil patriarcal, o desconforto de nascer mulher é percebido desde a infância, quando a elas são impostas as obrigações do cuidado. Além da maternidade, somam a responsabilidade por acompanhar parentes idosos, doentes ou com deficiência, as tarefas domésticas, o equilíbrio emocional da residência ou a reprodução desses mesmos trabalhos na casa de terceiros. Esse cenário evidencia como, desde a infância, as mulheres são educadas para cuidar. Embora a presença feminina tenha crescido em campos predominantemente masculinos, elas ainda são maioria nas funções em que o cuidado é central, como na educação e na saúde.

Essas rotinas acabam por desenvolver na mulher uma combinação de sensibilidade e inconformismo que, aliados ao repertório social e cultural de uma sociedade machista, levam-na à rejeição de um status quo centrado no masculino. Motivadas por suas dores, começam a se comunicar e, descobrindo causas comuns, iniciam uma revolução para romper este silêncio.
Pensando na história do Brasil, sugiro sete exemplos de mulheres que, pelo abalo sofrido no cerne de sua existência, ocuparam espaços, falaram e escreveram, resultando em um legado aplaudido até hoje. A cearense Maria da Penha lutou para que seu ex-companheiro agressor fosse condenado após tentar matá-la duas vezes. Paraplégica, assistiu indignada à demora de mais de uma década pelo veredicto da Justiça até escrever um livro cuja repercussão chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Mesmo assim, seu agressor só foi condenado em 2002 e cumpriu apenas dois anos de prisão. O caso resultou na criação da Lei Maria da Penha, que regulamentou o combate à violência doméstica e familiar contra mulheres no Brasil.
Na luta política, a então vereadora Marielle Franco foi assassinada em uma emboscada no ano de 2018. A repercussão de sua morte jogou mais luz sobre a sua luta contra a milícia no Rio de Janeiro. Sua oratória contundente provocava o Legislativo com seus questionamentos e desconfortos. Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 1086/23, para instituir o ‘Dia Nacional Marielle Franco de Enfrentamento da Violência Política de Gênero e Raça’.
No campo literário, Carolina Maria de Jesus narrou a realidade da Favela do Canindé, em São Paulo, onde viveu, expondo desigualdades e injustiças na obra Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada (1960) – um testemunho que inspirou o termo “escrevivência”, cunhado anos mais tarde por Conceição Evaristo. Sua obra ecoa os desconfortos da marginalização social, da falta de oportunidades e da luta por sobrevivência.
Na cena cultural, Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata, transformou sua casa em um polo de resistência da identidade cultural afro-brasileira, provocando a independência econômica de várias mulheres negras da região. Líder comunitária e curandeira, Tia Ciata garantiu renda para mulheres quituteiras e iniciou um movimento que fortaleceu a identidade cultural negra no Brasil.
No campo da saúde, Nise da Silveira introduziu as terapias humanizadas na psiquiatria ao rejeitar práticas violentas como o eletrochoque. A única mulher em sua turma de medicina, ela enfrentou perseguições políticas, foi presa durante a Era Vargas e, ao sair, revolucionou a psiquiatria ao desenvolver ambientes sem grades e terapias ocupacionais.
Na educação, Magda Soares trouxe os conceitos de letramento e ‘alfaletrar’, desafiando o método tradicional de memorização mecânica. Inspirada por Paulo Freire, ela defendeu que a alfabetização deve estar conectada com a realidade do aluno, garantindo uma educação mais significativa e democrática.
Por fim, Rosângela Costa Araújo, a Mestra Janja, desconstruiu a hierarquia de gênero na capoeira. Primeira mulher a receber o título de mestra na capoeira, fundou o Grupo Nzinga de Capoeira Angola, promovendo a equidade de gênero na prática, antes dominada pelos homens.
Outras tantas mulheres desconfortaram o curso da história no Brasil, desafiando leis que as excluíam e papéis sociais que lhes foram impostos. Suas trajetórias são diversas, mas todas compartilham a luta contra uma sociedade patriarcal que limitou suas vozes. No século XXI, estamos assistindo a uma revolução feminina plural, em que cada mulher, com sua luta, transforma o desconforto em ação.
Kelly Amaral de Freitas é mestre em Educação, doutora em Ciência da Informação (UFMG) e tutora dos cursos do Instituto Cultiva.
Penso que a trajetória de Dilma Vana Rousseff deve ser lembrada pela resiliência ante a violência política misógina