O difícil ato de estudar em tempos de intensificação do roubo do tempo
Este artigo integra uma série de três partes: Parte 1: O difícil ato de estudar em tempos de intensificação do roubo do tempo; Parte 2: A falta de oxigênio do materialismo histórico dialético na atualidade; e Parte 3: A dialética marxista entre a asfixia e a ressuscitação
Elogio da dialética, Brecht
A injustiça vai por aí com passe firme.
Os tiranos se organizam para dez mil anos.
O poder assevera: Assim como é deve continuar a ser.
Nenhuma voz senão a voz dos dominantes.
E nos mercados a espoliação fala alto: agora é minha vez.
Já entre os súditos muitos dizem:
O que queremos, nunca alcançaremos,
Quem ainda está vivo, nunca diga: nunca!
O mais firme não é firme.
Assim como é não ficará.
Depois que os dominantes tiverem falado
Falarão os dominados.
Quem ousa dizer: nunca?
A quem se deve a duração da tirania? A nós.
A quem sua derrubada? Também a nós.
Quem será esmagado, que se levante!
Quem está perdido, que lute!
Quem se apercebeu de sua situação, como poderá ser detido?
Os vencidos de hoje serão os vencedores de amanhã.
De nunca sairá: ainda hoje.
O objetivo desta parte é trazer apontamentos introdutórios, com a mediação da literatura, da música e da poesia, para a imersão nos problemas da produção de conhecimento científico no nosso tempo, em especial relacionado ao difícil ato de estudar. Processo este conformado na dimensão conflitiva e contraditória entre a intensificação do roubo do tempo, a ampliação da ideia de democratização de acesso às fontes de pesquisa e os impactos entre o mundo da sobrevivência superexplorada cotidiana e o aparente, e/ou, essencial incompatível processo da disciplina engajada para o estudo.
Apontamentos introdutórios de coesão entre as 4 partes que compõem este artigo
Em A caverna de José Saramago, o personagem principal, o aldeão/oleiro Cipriano Algor, vivencia na forma de angústia e reflexão as transformações da vida cotidiana, com a cidade tornando o campo distante, e as tecnologias substituindo, sem volta atrás, o trabalho artesão. Cipriano é um homem comum, um filósofo da vida cotidiana repleto de dilemas no âmbito da sobrevivência, do amor e da solidão. A caverna de Saramago nasce em alusão ao debate de Platão.
Saramago produz uma bela evidência de que a literatura e a ciência são composições necessárias para o processo de compreensão, questionamento e posicionamento sobre o sentido da vida, ante um tempo que não para [1].
Entre os dilemas vividos por Cipriano Algor, o poema de Brecht que abre este texto e a imagem mural de Aurora Reyes, transitam universos de conhecimentos e estéticas que nos auxiliam na compreensão dos conflitos de nosso tempo. No quadro, a destruição da professora e dos livros à base de armas e de morte e o processo educativo de instituir o pavor como arma contra os levantes apresentam-se hoje como uma herança que insiste em ser preservada.
Na leitura da imagem mural com os olhos em nossos dilemas atuais, quem está no lugar dessa professora rural? Quem tem as armas na mão apontadas para ela? Quem lhe arrasta violentamente, como ato de execução da morte, pelo cabelo? Quem são os sujeitos que, temerosos, miram sem intervir? Pois, como diz Brecht, a injustiça caminha a passos longos, logo, quem a tem protagonizado dentro do campo crítico?
A produção de conhecimento na atual fase do capitalismo, de exacerbação da acumulação do capital com intensificação da superexploração da força de trabalho e da exclusão real do mundo do trabalho formal, está parada ante um precipício. Como se antevisse a visão-presságio de Álvaro de Campos, acerca da tendência a deparar-se com o precipício das angústias humanas, nos termos do poeta grandes são os desertos, e tudo é deserto [2]. Educadores e educandos vivenciam na vida pessoal e no âmbito acadêmico do estudo um desencontro nos tempos da produção, gerando uma tendência individual ao isolamento/sofrimento.
A vida acadêmica, pequena fração da vida em sua totalidade, está, ante a ofensiva neoliberal contemporânea e após a traumática experiência do conservadorismo do violento governo Bolsonaro, correndo rápido demais para que os sujeitos possam acompanhá-la. No Brasil, o período pandêmico, ao ser acompanhado pelo período de governo Bolsonaro, tanto aumentou as mortes físicas, como expandiu a asfixia do campo crítico.
A aceleração do tempo histórico, resultado do avanço técnico científico e resultante da entrada, mesmo que crítica, na cena dos produtivismos, tem gerado um processo de esvaziamento dos grupos, dos espaços políticos e culturais, das salas de aula, da conclusão dos cursos. Adoecimentos generalizados, embates que se tornam conflitos sem volta atrás e uma rotina imersa no processo de desenvolvimento do pensamento crítico cada vez mais solitário e individualizado são algumas das características do tempo presente vivido nas universidades.
Objetivamos refletir neste texto acerca da tendência ao individualismo que educadores e educandos do campo crítico têm vivenciado nas universidades brasileiras no nosso tempo presente. Dentro do campo crítico, um campo minoritário dos marxismos vive uma relação progressiva de asfixia. Seja porque a ofensiva do capital é brutal sobre o trabalho em todos os âmbitos, seja porque, no afã de demarcar território, seus sujeitos têm sido, em uma boa maioria, incapazes de romper com a postura vaidosa/egoica, individualista e soberba de sentir-se superior aos demais, ou capaz de tornar a vida de outros insuportável no mesmo ambiente de trabalho.
Vivemos dilemas intensificados em nossa dimensão de humanidade conosco mesmos e com o mundo. No entanto, quando alguns personagens se posicionam, como pensadores críticos, e/ou marxistas, e apagam a potência solidária e coletiva da produção vinculada à transformação, algo de muito errado está ocorrendo no âmbito do conhecimento. Ou somos capazes de na crítica-autocrítica falarmos sobre isso, ou seguiremos evadindo, ao mesmo tempo que contribuímos para a diminuição reiterada do campo crítico do conhecimento.
Portanto, o presente artigo – nas três partes que o constituem – traz alguns apontamentos que são vivenciados coletivamente por parte dos grupos com os quais trabalhamos, nos ambientes em que transitamos, como forma de explicitar um conteúdo cuja resolução não depende de uma escolha pessoal, individual, e sim, de uma tomada de posição coletiva sobre nosso futuro nas universidades, nos sindicatos e nos partidos. Está diretamente dirigido para o campo crítico em geral, e os marxismos em particular, porque é com esse grupo que nos interessa dialogar diretamente. O que não implica dizer que o que vale para nós não valha para os outros campos do conhecimento. A pretensão é provocar uma reflexão coletiva, à luz do nosso próprio protagonismo também distorcido e necessitado de revisão. Ou seja, a pretensão da crítica é em si mesma uma autocrítica em busca de melhoria concreta.
Estudar: um ato cada vez mais difícil [3]
A escolha de um objeto de pesquisa está mediada por muitas questões, entre elas: nosso tempo histórico presente e suas contradições; a relação entre a vida cotidiana, o conhecimento científico e a desigual condição de cada classe social; o mundo da sobrevivência e a existência, ou não, de outros tempos para o afeto, o convívio, a cultura, o lazer; os medos, as cobranças, os parâmetros de uma sociedade que, mediada pela produtividade, determina a cobrança coordenada pelo tempo cronológico como êxito do conhecimento; e nossa própria história e as perguntas que vamos nos fazendo à medida que vivenciamos determinadas situações como seres sociais.
Assim, mais do que um objeto, o estudo encarna a compreensão sobre os dilemas da própria vida em diversas áreas do conhecimento, quando da realidade saltam questões que se apresentam em toda sua conflitividade, contradição, processualidade histórica. Trata-se sempre de um objeto de estudo vivo, histórico e sociocultural. E como tal, repleto de inquietações que exigem a conformação de um processo de estudo rigoroso, ancorado em um sentido de história concreto que nos permita, a partir de nossa posição política, pensar como chegamos no que vivemos hoje. Um viver extenuante como o atual, assentado em múltiplas violências, é certeiro na ampliação dos dilemas sobre como começar e continuar a investigar um determinado tema.
É pensando no avanço das questões e suas possíveis rotas investigativas, e de fugas, que a relação entre orientadores e orientandos se estabelece. A função, no ato educativo de orientar, é ajudar a construir a trilha. E para isso requer-se tempo, entendimento sobre os sujeitos e seus cotidianos, encontro verdadeiro.
As perguntas da investigação jamais se distanciam do próprio sujeito histórico em seu tempo a ponto de que este não se vincule à ação investigativa proposta. Por mais distantes que possam avançar nos níveis de abstração entre o mundo concreto e o mundo refletido, essa relação dialógica e dialética entre viver o problema e ter tempo para pensá-lo demarca a complexidade presente na temática escolhida e as mediações que a circundam.
Ao perguntar-se sobre o mundo, o sujeito do conhecimento põe em movimento suas razões e sensibilidades. Questiona situações cotidianas, ao mesmo tempo em que se questiona sobre seu estar no mundo. Desse dilema entre viver uma complexidade angustiante e investigar sobre a mesma, pulsam dilemas que paralisam uma produção que deveria fluir.
Os objetos de estudos e o próprio ser humano estão tão mercantilizados pela lógica do dinheiro, que a razão dialética de estudá-los apresenta-se como abstrata no sentido do senso comum, como não concreta, difícil de ser apreendida desde o real vivido. A tal ponto essa situação condiciona o sujeito da investigação que torna-se necessário uma etapa prévia à escolha do objeto para o entendimento acerca do sentido da escolha do tema a ser desbravado. Mas os sentidos não estão também coisificados?
Entre o objeto e os sentidos corre um mundo de contradições, assentado na relação entre a supremacia mercantil e a humanidade desumana que a produz. Nesse sentido, a vida que corre na dimensão hegemônica do roubo do tempo parece habitar todo o sentido da produção material de vida cotidiana.
Cabe perguntar: na era extrema da coisificação que vivenciamos, há margens para o reconhecimento do que persiste de outras práticas, outros olhares, outras vivências? Ou há uma história cotidiana apenas centrada no monolítico universo da riqueza capitalista? Entre o pensar e o existir correm entrecruzando-se, ou não, outros processos que precisam com urgência serem reconhecidos, percorridos, vivenciados? Como correm os braços dos rios em diferentes territórios, nessa ordem poluente sobre os objetos e os sentidos, percorrendo outras histórias.
Chegamos ao século XXI atravessados pelos meios tecnológicos a serviço de um tipo de encontro, de verdade, de vida, que nos afasta do convívio, do tempo para a aprendizagem, da produção de um conhecimento atrelada à beleza não mercantil. Seremos, nesse tempo de inteligência artificial que subsume nossa condição humana, capazes de usar a dialética para tratar o que, mesmo quando não vemos, existe? Mesmo quando não conhecemos, ocorre? Mesmo quando não vivenciamos, explicita outro viver?
É possível, para os sujeitos de origem e vínculo com o popular e sua classe – a trabalhadora – em tempos de angústias como o atual, reorganizar a vida no âmbito dos dilemas da sobrevivência, a ponto de permitir um estudo sem temores, rico em possiblidades, questionando o roubo do tempo em toda a sua tessitura? Caso não seja possível, como então usar a dialética? Pois, a dialética materialista está ancorada em um sentido de tempo que requer pausa, entendimentos diversos, estudos múltiplos, conexões coletivas, organizações, lutas e reações.
Seguiremos para a parte 2: A falta de oxigênio do materialismo histórico dialético na atualidade.
Roberta Traspadini é pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia e professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Relações Internacionais, UNILA.
*Há uma música que embala a leitura desse texto: The scene, de Wim Mertens, 1997.
[1] Em uma situação conflitiva entre a modernidade e o barroco, Saramago na trama de A Caverna, produz um discurso filosófico descritivo sobre esse sujeito ao dizer: “Cipriano Algor sentou-se num velho banco de pedra que o avô fizera colocar ao lado do forno, apoiou os cotovelos nos joelhos, o queixo nas mãos juntas e abertas, não olhava a casa nem a olaria, nem os campos que se estendiam para lá da estrada, nem os telhados (…) Não tinha pensamentos nem sensações, era apenas o maior daqueles pedacinhos de barro, um torrãozito seco que uma leve pressão de dedos bastaria para esfarelar, uma pragana que se soltara da espiga e era transportada pelo acaso de uma formiga, uma pedra aonde de vez em quando se acolhia um ser vivo, um escaravelho, ou uma lagartixa, ou uma ilusão” (SARAMAGO, 2000, p.127)
[2] Na primeira estrofe diz o poeta e filósofo Pessoa/Campos: Grandes são os desertos, e tudo é deserto./Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto/Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo./Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes —/Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,/Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.(…)
[3] Esse texto não nasce fora de uma conflitividade concreta como educadora. A mesma centra-se na dificuldade, em tempos atuais, de provocar e promover encontros educativos duradouros em tempos miseráveis. Somada à luta cotidiana de manter os espaços coletivos, de estudo e trabalho, com vistas a entender os dilemas do nosso tempo, que nos impedem de conciliar o mundo do desejo e o mundo das necessidades. O que tem gerado nostalgias contínuas sobre a ausência de encontros sólidos que parecem esvair-se no ar, para parafrasear Marx e Engels na obra Manifesto do Partido Comunista, quando diz: Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas. É, portanto, um texto de homenagem/gratidão à semeadura que produzimos durante o período de 2018 a 2023, como Observatório de Educação Popular e Movimentos Sociais na América Latina (OBEPAL).
Texto preciso para alunos e professores, comprometidos com os dilemas do ingresso expressivo da classe trabalhadora, no campo da pesquisa e produção do conhecimento hoje. Principalmente após as políticas de ações afirmativas que levaram um corpo discente diverso,para esse espaço de saber poder individualista que é a universidade.
É tempo de reflexão e proposições.
Sigamos.