O direito de ir e vir e as eleições de 2022
O sucesso da campanha pela Tarifa Zero no dia das votações evidencia como a mobilidade é fundamental para a democracia. Nem mesmo as operações da Polícia Rodoviária Federal foram suficientes para impedir que, pela primeira vez, o nível de abstenções fosse menor no segundo turno
Nunca antes foi tão evidente a relação entre direito à mobilidade e acesso à democracia. O segundo turno das eleições de 2022 foi marcado pela adoção massiva da Tarifa Zero e os dados da votação indicam que a medida influenciou diretamente na participação do eleitorado. Foi a primeira vez na história que a abstenção foi menor que no primeiro turno.
Entre 2006 e 2020, a média de abstenção do segundo turno para eleições presidenciais foi 2,1% maior que a do primeiro turno. Em 2022, a abstenção no primeiro turno foi 21,9%, o que, considerando a média histórica, permite projetar que a abstenção seria de 23,0% no segundo turno. Com a ampliação Tarifa Zero, porém, o índice foi de 20,6%, variação que representa aproximadamente 3,76 milhões de votos a mais do que o previsto no resultado total. Considerando que a diferença entre o candidato eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o segundo colocado Jair Bolsonaro (PL) foi de 2,1 milhões, é possível que o passe livre tenha tido papel decisivo.
É claro que outros fatores podem ter influenciado na participação, mas, no dia do pleito, o único outro destaque relacionado ao trânsito de eleitores foi a estranha operação realizada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) que mais atrapalhou do que favoreceu os deslocamentos.
A PRF, que pela maneira pouco usual com que passou a atuar no atual governo chegou a ser chamada de “instrumento político do presidente Bolsonaro”[1], realizou no dia da votação mais de 510 ações que interromperam momentaneamente a circulação de ônibus em diferentes pontos do país, atrasando quem queria chegar até a urna. Vale ressaltar que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ter proibido qualquer operação que pudesse atrapalhar o trânsito de pessoas para as cidades onde estavam localizadas suas seções eleitorais. O número de operações no domingo, dia 30 de outubro, foi 70% maior que o número de operações do primeiro turno.
É difícil estimar o impacto dos bloqueios, já que muitos podem ter desistido em função da demora. Porém, nem mesmo a ação coordenada foi suficiente para frear o eleitorado. Assim como nem mesmo as barreiras impostas por caminhoneiros logo após a apuração, em episódio marcado pela omissão da mesma PRF, foram suficientes para anular a eleição ou suspender a democracia, como pretendiam os apoiadores frustrados do presidente derrotado. O direito de ir e vir prevaleceu e Bolsonaro foi o primeiro a não conseguir se reeleger, desde que a possibilidade de um segundo mandato passou a vigorar no país, em 1995.
A campanha
A adoção massiva da Tarifa Zero no segundo turno foi impulsionada por uma mobilização de mais de 70 organizações da sociedade civil com o apoio de mais de 50 mil pessoas. Intitulada Passe Livre pela Democracia[2], a campanha ganhou força no segundo turno e foi decisiva para que no segundo turno pelo menos 393 cidades e oito estados abolissem as cobranças no transporte municipal e intermunicipal respectivamente, beneficiando mais de 100 milhões de pessoas. No primeiro turno, foram 136 municípios, um estado e cerca de 40 milhões de beneficiados.
A discussão sobre Tarifa Zero nos dias de votação em 2022 começou a ganhar destaque no primeiro turno em função de uma disputa judicial em Porto Alegre. Com base em lei promulgada em 1995, a cidade passou a adotar passe livre em eventos como eleições e vacinação, podendo suspender a cobrança de passagens em até doze datas por ano. A regra foi alterada em 2021, com o prefeito Sebastião Melo (MDB) defendendo a suspensão da tarifa zero nos dias de votações e a adoção do passe livre em apenas dois dias por ano. Após pedido da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, a Justiça determinou o passe livre no primeiro turno e a Câmara Municipal aprovou a lei garantindo a gratuidade no segundo.
A disputa entrou em outro nível quando a Rede Sustentabilidade acionou o Supremo Tribunal Federal (STF), que formou maioria para autorizar a adoção de passe livre no segundo turno sem que autoridades corressem o risco de processos por improbidade administrativa[3]. O posicionamento influenciou outros tribunais que julgaram como favoráveis outros pedidos pela adoção. Na fundamentação da decisão, o STF apontou que o custo do transporte é uma barreira no acesso ao voto. Municípios e Estados foram autorizados ou mesmo forçados por decisões judiciais específicas a liberar a catraca.
As decisões judiciais deram força à mobilização da sociedade civil e fortaleceram o processo democrático. A campanha deve continuar, agora pela institucionalização da Tarifa Zero em dias de eleições. A ideia é que a regra torne-se lei por meio de um projeto específico a ser votado antes do próximo pleito.
Mais do que eleições livres, é preciso que as pessoas tenham condições de exercer o seu direito ao voto. A mobilidade urbana precisa ser encarada como um direito fundamental de todas as pessoas.
Desigualdades estruturais
Será que a Tarifa Zero apenas nos dias de votação é suficiente? Ou, para garantir sociedades verdadeiramente democráticas, deveríamos sonhar com a abolição permanente das catracas?
O processo eleitoral e sua relação com a mobilidade escancarou as desigualdades quando falamos de transporte de pessoas. A vida é feita de movimentos e a ação humana sempre esteve condicionada à possibilidade de ir e vir. Iniciamos este texto falando das eleições, mas é importante perceber que o deslocamento, a locomoção, o acesso ao transporte coletivo público regula as chances e oportunidades de acesso diário nas grandes e médias cidades.
Com o incentivo ao transporte individual e privado nas últimas décadas, o transporte público coletivo foi se tornando cada vez mais caro. Quando foi criado na França do século XIX e ainda puxado por tração animal, o “omnibus” logo se transformou em símbolo de democratização de acesso à cidade. Mas, contraditoriamente, o transporte coletivo logo se estabeleceu como mercadoria, um serviço vendido e cobrado. Com o crescimento urbano, seu propósito final era carregar a massa de trabalhadores para realizar suas atividades diárias visando a manutenção da vida na cidade, em um movimento que quase sempre obedece a lógica periferia-centro-periferia.
Falar sobre o serviço ofertado nos grandes centros urbanos é um dos grandes desafios para as pessoas que pesquisam mobilidade urbana. Os processos de concessões não têm sido transparentes, as condições de trabalho são duvidosas e a eficiência, apesar de questionável, apresenta-se como única alternativa possível para quem não tem dinheiro para investir no transporte individual privado.
Essa complexidade do ecossistema da mobilidade urbana, sua ligação com as necessidades mais urgentes do campo social e a falta de priorização da questão para os governos têm se transformado em um verdadeiro barril de pólvora. Podemos listar diversos conflitos urbanos que ocorreram nos últimos 100 anos e que tiveram a mobilidade como foco. Para não ir muito longe e recuperar revoltas do século XIX como a Revolta do Vintém, no Rio de Janeiro, quem não se lembra do ano de 2003 com a Revolta do Buzu, em Salvador, e que rapidamente se espalhou para outras capitais como Florianópolis; ou ainda o histórico ano de 2013 com as manifestações convocadas pelo Movimento Passe Livre em razão do aumento de 20 centavos na tarifa da capital paulista? A mobilidade urbana é um ponto central na vida de todas as pessoas na cidade e nos últimos anos ela continuou no centro das discussões.
A pandemia da Covid-19, que teve como fator de aumento da transmissão a própria mobilidade, foi um choque para as nossas práticas móveis. Em diversos lugares do mundo, a mobilidade ativa ganhou força com a criação de ciclovias temporárias para evitar a aglomeração no transporte público e melhorar o deslocamento de quem, obrigatoriamente, não podia trabalhar em home office.
No pós-pandemia, com a economia em frangalhos, cidades europeias e norte-americanas adotaram a Tarifa Zero para apoiar a classe trabalhadora que sentiu o peso do desemprego e da redução de salários. No Brasil, a pandemia, que matou quase 700 mil pessoas até o momento, não foi suficiente para sensibilizar as autoridades responsáveis. Apesar de mais de 100 cidades brasileiras terem aderido ao subsídio, de forma parcial ou temporária, não houve nenhuma iniciativa nacional no sentido de aliviar os custos com o transporte público coletivo; ao contrário, nas grandes cidades as linhas diminuíram e o que vimos foi um empilhamento de trabalhadores dentro dos trens e ônibus.
Muitos só ouviram falar na Tarifa Zero com as eleições deste ano. E o que é o Passe Livre, a Tarifa Zero? É uma tecnologia social que pode salvar o sistema público de transporte no Brasil que se encontra em plena decadência. As primeiras iniciativas da Tarifa Zero começaram a ser discutidas no final dos anos 60, em países como Alemanha e Estados Unidos. Hoje, mais de 250 cidades em todo o mundo e 52 no Brasil adotam a Tarifa Zero Universal[4]. Mariana, em Minas Gerais, é um bom exemplo. Ainda precisamos produzir dados e realizar pesquisas para entender o impacto disso para a população, principalmente para os mais pobres. O acesso universal ao sistema de transporte representa uma série de ganhos para o próprio sistema econômico, como a desoneração de preços que são impactados diariamente pela maneira como pessoas e objetos se deslocam pela cidade.
As eleições representaram uma oportunidade única para mostrar que a Tarifa Zero é possível. O que está previsto na Constituição Federal precisa se tornar realidade. Não à toa, se pensa na criação de um Sistema Único de Mobilidade, inspirado no Sistema Único de Saúde. Ele tem a meta de tornar o transporte público um sistema com equidade, acesso universal e possibilidade de representar mudanças profundas na maneira como nos relacionamos com o espaço urbano.
Democracia pressupõe participação efetiva e negociação permanente. Esperamos que a resposta das urnas no dia 30 de outubro possa representar uma nova mudança na maneira como encaramos a mobilidade urbana e sua relação com o espaço urbano, as pessoas que trabalham e, em especial, aquelas que moram nas áreas e territórios menos favorecidos. Temos a certeza que a sociedade civil e todas as instituições e organizações que pensam a mobilidade estarão prontas para dar sua contribuição para a construção de cidades melhores.
Daniel Santini é coordenador na Fundação Rosa de Luxemburgo, mestrando em Planejamento Urbano e Regional na FAU-USP, jornalista, autor e pesquisador sobre direito à mobilidade. Glaucia Pereira é fundadora e pesquisadora do Instituto de Pesquisa Multiplicidade Mobilidade Urbana (IPMMU). Marcelo de Trói é analista de informação no IPMMU.
[1] “O INSTRUMENTO – A bolsonarização da Polícia Rodoviária Federal”, Revista Piauí, edição 191, ago. 2022. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-instrumento/
[2] Passe Livre pela Democracia. Disponível em: https://passelivrepelademocracia.org/.
[3] “STF forma maioria para manter liminar que autoriza passe livre no segundo turno”, Conjur, 19 out. 22. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-out-19/stf-forma-maioria-manter-autorizacao-passe-livre-turno.
[4] Relação completa de cidades disponível em: http://tiny.cc/f8d0vz