O escândalo da Americanas: bom jornalismo é ruim para os negócios
Esse apagão jornalístico não é caso isolado e ocorre toda vez que o estrago causado pela elite econômica emerge. Como fica difícil de ignorar o tamanho da encrenca, a cobertura da imprensa faz um trabalho de redução de danos, aborda o assunto pelas franjas e evita expor os personagens
Se a imprensa corporativa entendeu que a Lava Jato, por conta do apelo midiático que exercia na audiência, com reviravoltas e prisões espetaculares de políticos e empresários graúdos, era um assunto para ser trabalhado em ritmo de seriado dramático, com alguma dose de sensacionalismo, o escândalo da Americanas oferece em tese todos os ingredientes de que a grande mídia precisa para desenvolver um jornalismo investigativo instigante: gente importante, grandes somas de dinheiro, “inside information”, mistério, provavelmente intrigas, ameaças e corrupção nas altas esferas do poder econômico, além de indicar se tratar de um crime perfeito.
Mas ao contrário, o que vemos é uma cobertura burocrática, asséptica e previsível como são as notícias da temporada de compras Black Friday. O que mudou? Os atores. Enquanto na Lava Jato os protagonistas eram as lideranças do PT, pelas quais a imprensa nutre antipatia, no caso da Americanas são os homens mais ricos do país, incensados cansativamente pelo “jornalismo independente e profissional”. A troca de personagens faz uma grande diferença.
A inflexão não é um descuido. Colocar em questão assuntos que contrariem a posição dos veículos e do empresariado é buscar sarna para se coçar. Com o tempo, ensina Robert McChesney – estudioso do papel que a mídia desempenha nas sociedades democráticas e capitalistas -, os jornalistas bem-sucedidos simplesmente internalizam a ideia de que é tolice e “não profissional” querer perseguir histórias controversas que, em sua maioria, causam dores de cabeça e demandam muito esforço para obter a aprovação da chefia – que exige cada vez mais provas “irrefutáveis” para submeter ao escrutínio jornalístico um ator político aliado -, um padrão absurdo pela qual, como apontou a produtora da CNN April Oliver, “não teria havido Watergate”.
Parece ser esse o caso do golpe bilionário da Americanas. A cobertura jornalística tem sido extremamente zelosa na apresentação dos fatos e de seus protagonistas. A dívida exorbitante de mais de R$ 40 bilhões é abordada muito mais como um rombo contingente do que como uma fraude deliberada (desculpe o pleonasmo).
A maior parte das notícias explora as repercussões do caso para o mercado acionário, a guerra judicial entre os bancos credores e a varejista, as possíveis implicações do pedido de recuperação judicial e as alternativas para os milhares de pequenos acionistas e fornecedores, questiona como um rombo daquela magnitude pôde ter passado despercebido aos olhos dos executivos, dos sócios de referência, da auditoria externa e dos órgãos de fiscalização e especula sobre as medidas que deveriam ter sido tomadas para que a inconsistência contábil não acontecesse e quais as providências que o Conselho de Valores Mobiliários, órgão normatizador, deverá tomar. Nem os editoriais – dois apenas (O Globo e Folha de S. Paulo ) -, que costumam ser contundentes e intransigentes com as autoridades, os servidores públicos e as políticas econômicas que lhes desagradam, aplicaram um tom quase que indulgente sobre o calote.
Enquanto isso, ao contrário da práxis corriqueira nas páginas policiais e políticas, em que suspeitos de crimes e esquemas de corrupção são rapidamente expostos, até agora estão envoltos em mistério os responsáveis por uma das maiores falcatruas contábeis do país, apesar das fortes suspeitas de que se trata de um golpe de mestre, não de um problema de governança. A descoberta de que o ex-CEO e a então diretoria da Americanas, cujos nomes estranhamente pouco aparecem nas matérias, venderam R$ 241,5 milhões em ações da companhia no segundo semestre de 2022 é evidência indiscutível de má-fé e de que a fraude nos balanços da varejista foi um plano bem arquitetado.
A falta de interesse na cobertura jornalística para revelar os culpados e provocar uma reflexão sobre a permissiva lei das S.A., sobre a frágil proteção ao consumidor e aos pequenos fornecedores, sobre a selvagem desregulação dos mercados e sobre a responsabilização penal dos crimes de fraudes não apenas pouco tem ajudado a esclarecer quem é o vilão dessa “pirotecnia contábil” como tem contribuído para criar uma nuvem cinzenta que engolfa a história, tergiversa e deixa confuso quem vê de fora toda essa bagunça. Mesmo os sócios de referência da Americanas – Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira -, sob inevitável pressão dos credores e da Justiça, ainda gozam do infinito benefício da dúvida por parte da mídia, que até outro dia os tratava como os semi-deuses do “capitalismo do bem”, ou seja lá o que isso quer dizer.
Até que um jornalista investigativo faça o dever de casa, como se atreveram os advogados de defesa do BTG , que meteram o dedo na cara dos festejados bilionários chamando-os de fraudadores , a percepção de quem acompanha pelo noticiário o desenrolar das apurações é a de que essa lambança não resulta de um golpe de caso pensado, mas de mero efeito colateral do arriscado mundo dos negócios. É do jogo!
É como se os jornalistas que cobrem e comentam o assunto fossem orientados pela chefia a não colocar em questão o caráter dos super-ricos e o mito de que as corporações são os faróis da meritocracia, da moralidade e da eficiência, a não questionar os alicerces do liberalismo, quais sejam a desregulação dos mercados, o corte de impostos e o acúmulo de capital, ou a disfuncionalidade desse modelo capitalista para a sociedade brasileira.
Esse apagão jornalístico não é caso isolado e ocorre toda vez que o estrago causado pela elite econômica emerge. Como fica difícil de ignorar o tamanho da encrenca, a cobertura da imprensa faz um trabalho de redução de danos, aborda o assunto pelas franjas e evita expor os personagens centrais da barafunda até o episódio virar memória.
A lista é grande, como o das varejistas Magazines Luiza e Americanas que vendem produtos de marcas acusadas de trabalho análogo à escravidão, das gigantes de tecnologia que usam ouro ilegal de terras indígenas brasileiras, do cartel da Crutale que levou milhares de pequenos agricultores à ruína financeira, das milhares de famílias que perderam suas casas pela mineração da Braskem, em Maceió, da fabricante de alumínio Norsk Hydro, responsável pela poluição de rios com resíduos tóxicos que adoeceram comunidades quilombolas e povos indígenas no Pará, e a vista grossa que os bancos fazem para o desmatamento causado por seus clientes.
Não se pode esquecer da Operação Zelotes da Polícia Federal deflagrada 2015 visando investigar um esquema de corrupção no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (CARF), órgão colegiado do Ministério da Fazenda, responsável por julgar os recursos administrativos de autuações contra empresas e pessoas físicas por sonegação fiscal e previdenciária. Foram investigadas ao menos 70 empresas, com destaque para a Gerdau, BankBoston, Mundial-Eberle, Ford, Mitsubishi, Santander, Bradesco, Banco Safra e o Grupo RBS, afiliado da Rede Globo no Rio Grande do Sul, todos com dívidas fiscais milionárias em jogo.
Por fim, o rompimento das barragens da mineradora Vale em Brumadinho e Mariana. Que fim deram o ex-CEO da companhia, os demais membros de sua diretoria e os responsáveis pelos frágeis laudos técnicos que atestaram a estabilidade das barragens? A exemplo de outros peixes graúdos enrolados em crimes e denúncias de toda ordem, Fabio Schvartsman, presidente da mineradora à época dos desastres, parece estar bem. Apesar da tragédia ambiental e da morte de mais de 270 pessoas, continua corado com sua imperturbável vida de luxo e glamour e seu sono reparador protegido por medalhões da advocacia, às expensas da Vale. Reapareceu na cena corporativa brasileira no ano passado numa espécie de reabilitação no mundo dos negócios.
A proximidade que existe entre os figurões da elite dominante e a cúpula dos jornais e emissoras de TV dificulta ainda mais a disposição dos veículos em ir a fundo na apuração jornalística. Os laços estreitos, notou o estudioso Silvio Waisbord , constrangem as organizações midiáticas de irem atrás dos segredos dos envolvidos, que transitam nos mesmos ambientes exclusivos por onde perambulam os magnatas dos grandes grupos de comunicação. Têm a mesma origem aristocrata, compartilham a mesma visão de mundo e criam vínculos afetivos que vão além do pacto ideológico.
Registro raro da intimidade dos moradores do andar de cima foi o jantar, flagrado em setembro de 2021, no apartamento de Naji Nahas, que resume com inteireza a relação promíscua entre mídia e gente poderosa com ficha suja. Além do anfitrião, especulador preso por corrupção e lavagem de dinheiro, mais conhecido como “o homem que quebrou a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro” , estavam no repasto o ex-presidente Michel Temer , detido pela Polícia Federal por corrupção ativa e lavagem de dinheiro, seu amigo e advogado José Yunes , preso pela PF e acusado de ser intermediário de propina, e o presidente do PSD, Gilberto Kassab, indiciado pela PF pela propina de R$ 58 milhões recebidos do grupo J&F . Junto a essas celebridades de reputação questionável estavam os jornalistas Roberto D’Ávila, apresentador e diretor da GloboNews, João Carlos Saad, presidente do Grupo Bandeirantes, e o jornalista Antonio Carlos Pereira, que foi diretor de opinião do jornal “O Estado de S. Paulo”.
A cumplicidade e a descontração reveladas em vídeo nos levam a desconfiar da independência que teria a redação do veículo de qualquer um daqueles prepostos da grande mídia para apurar em profundidade seus pares sociais. Daí, explica Waisbord, o porquê de os jornalistas serem propensos a fornecer uma cobertura complacente ou a ignorar as transgressões de gente poderosa do mercado.
O jornalismo investigativo brasileiro é seletivo. O compromisso da imprensa corporativa em combater a corrupção, em revelar as irregularidades de autoridades e empresários depende em grande medida de quem as comete. Citando mais uma vez Robert McChesney, o mais producente e prudente, no entendimento dos jornalistas mais experientes, é gerar histórias de fórmula testada e comprovada que custem pouco, que se ajustem bem aos objetivos comerciais dos meios e não antagonizem com os interesses da elite e dos anunciantes. Afinal, como resumiu o escritor e colunista Richard Reeves sobre a visão pragmática dos executivos que governam o mundo da mídia: o bom jornalismo é ruim para os negócios.
Luís Humberto Carrijo é sócio-fundador da agência de comunicação Rapport Comunica, especializada em relacionamento com a imprensa para o funcionalismo público e autor do livro “O Carcereiro – o Japonês da Federal e os preso da Lava Jato”.
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[2] https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/01/americanas-em-queda.shtml
[3] https://static.poder360.com.br/2023/01/mandado-seguranca-btg-justica-rj.pdf
[4] https://www.poder360.com.br/economia/em-pedido-a-justica-btg-critica-americanas-e-trio-3g-capital/