O Estado que tira o brilho dos olhos de crianças
Nós e eles. A narrativa que tenta justificar a barbárie e fazer da chacina mais uma notícia no jornal. Mais uma vez, a sociedade escolhe quem deve viver e quem deve morrer
Era uma poça vermelha no meio do asfalto rachado. Jamais esquecerei da parede azul e as marcas fincadas no muro de um objeto que ali atravessou e dilacerou a vida. Crianças brincavam na rua, tentavam fingir que a morte não esteve presente há poucas horas. Mas havia os olhos, opacos, sem luz, pedindo socorro ainda que em silêncio. Os olhos não mentiam. Aquelas crianças, pulando em volta da água misturada ao sangue em frente à sua casa já sentiam a sentença da morte. Morriam aos poucos. Primeiro os olhos deixavam de brilhar, depois a alma passava a não mais acreditar. Naquela noite eu não dormi.
Pela madrugada senti uma dor que beirava a revolta. Escrever sobre uma chacina e presenciar o enterro do brilho dos olhos de crianças que só deveriam se preocupar com o doce aguando a boca foi como também morrer um pouco. Lembro da editora enviando mensagens e mensagens perguntando se eu já tinha escrito a minha parte do texto – estávamos fazendo a matéria a quatro mãos. E eu simplesmente não encontrava palavras para descrever o horror. Rabisquei algumas linhas, de cenas que estavam gravadas em minha mente e enviei. Mas sentia que o texto nunca tinha sido escrito. Eu durmo e acordo pensando naquela parede azul cravada de balas. Imaginando os jovens dentro de um carro branco, alvejados por serem negros. O sono calmo de bebês dormindo no conforto do colo de suas mães e, de repente, o barulho da bala atravessando o corpo – e a vida.
Talvez, de fato, esse texto jamais fique pronto. A não ser que sejamos atravessados pela inércia de vida e morte, a compreensão jamais será tão fiel. O horror em sua máxima não tem como ser transformado em palavras. O horror se sente. O horror mata. E mata em vida. Decidi voltar a essas linhas porque, ainda destruída pela cena que testemunhei há anos, a polícia matou minha alma um pouco mais. Homens armados entraram na favela do Jacarezinho e replicaram, de forma ainda mais brutal, o que eu presenciei em 2019 no Jardim Peri Alto, periferia da zona norte de São Paulo. Armados até os dentes, os PMs cariocas invadiram vielas, casas, salas e quartos. Buscavam sangue. Queriam que as escadarias do Jacarezinho fossem pintadas de vermelho, da vida ainda quente que escorria. Efetivamente, 28 pessoas foram jogadas à terra como lixo descartado. Fadados a morrer como sub-humanos, sem a menor oportunidade de perguntar: “Senhor, será mesmo que eu não posso ter a chance de ver meus filhos crescerem?”. Com a boca semiaberta, pensando ainda nas palavras que fugiam da cabeça ao presenciar a barbárie, a bala atravessou o corpo. Caíram uma, duas, três, quatro, vinte e oito vezes. E a cada queda, os olhos vívidos de crianças esmoreciam, perdiam a cor, fadadas a viver com o horror na alma.
Quantos litros de sangue precisam manchar vielas para que a indignação não seja passageira? Até de colegas jornalistas eu escutei: “Na próxima semana ninguém nem vai mais lembrar dessa chacina em Jacarezinho, já vamos ter outra operação policial e assim vai…”. É assim que lidamos com o horror. Fizemos dele rotina, um acaso. A morte do outro não aflige de tão corriqueira que é – e as crianças, testemunhas da barbárie, continuam ali, em pé, com os olhos frios: sonhando e acordando com o sangue. É assim que lidamos com a morte neste país, deixamos que outros 28 morram para que se tenha notícia. “Na favela é assim mesmo”, eles dizem, deixando explícito a existência da narrativa do nós e eles. Nós, aqui, protegidos, escolhemos com o que nos indignar. Eles, lá, fadados a viver com o cano da arma no pescoço, que chorem os seus mortos. Eles. Nós. Os que morrem. Os que vivem.
Volto a dizer, talvez esse texto jamais fique pronto. Não é possível dimensionar o horror. Não há como fazer uma sociedade mesquinha se indignar com os assassinatos do Estado. Continuarei pensando na poça de sangue no meio do asfalto rachado. Nos rostos antes infantis e agora sem brilho, do doce que antes aguava a boca descartado e sendo tomado por formigas no chão. Da vida que antes existia e, agora, é mera lembrança. E gritarei pela vida, ainda que esta se faça tão desigual em um país onde de um lado se morre de tiro e, do outro, acredita-se em super-heróis. A conta não fecha.
Mariana Ferrari é jornalista.