Massacre no Jacarezinho: necropolítica aplicada
Se desumanizar o outro facilita a aceitação moral de todo tipo de violência que lhe seja infligido, o “favelado” é regularmente destituído de sua dignidade humana pela sua suposta “degenerescência moral, social, cultural e racial”
Missão Impossível
Rio de Janeiro, maio de 2021. Assumamos que existisse de fato, na cidade, uma situação análoga à guerra – ou à “guerra de guerrilhas”, ou ainda, à “guerra urbana” – entre forças do Estado e grupos do narcotráfico. Assumamos, por um instante, que o enfrentamento militarizado contra facções do tráfico fosse uma tática legítima e legal para enfraquecê-las diante do poder que têm nos “bastiões inexpugnáveis”, que construíram nas favelas da Grande Rio. Assumamos, por fim, que não haveria outro meio para executar os 21 mandados de prisão expedidos contra moradores da Favela do Jacarezinho, em decorrência da Operação Exceptis, que investiga o aliciamento de menores para o tráfico.
Pois bem, com isso em mente – e diante dos resultados da operação –, perguntemo-nos: qual foi a sua “eficiência” na “Guerra do Rio”?
A Polícia Civil confirmou, como resultado da incursão, a apreensão de 6 fuzis, 15 pistolas, 1 submetralhadora, abundante munição, 6 presos, dentre os quais apenas três dos 21 buscados pela Justiça. Foram empregados 250 policiais, 4 blindados e 2 helicópteros. Após horas de forte enfrentamento, a operação terminou deixando 29 mortos, que as forças de segurança indicam terem ocorrido estritamente no cumprimento do dever legal entre pessoas da comunidade
Imediatamente, passaram a circular imagens de vídeo gravadas por moradores em que se vê e ouve tiroteios, corpos em vielas, voos rasantes de helicópteros. Também surgem as primeiras denúncias de graves irregularidades na ação policial, que inclui a execução sumária de detidos e a ilegalidade da própria operação. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu missões desse tipo, durante a pandemia, sem prévia comunicação ao Ministério Público Federal e sem justificativa de urgente necessidade.
Nos dias subsequentes, o delegado responsável pela operação, o vice-presidente e o presidente da República defenderam sua importância diante do que qualificaram como mais um capítulo da guerra dos “cidadãos de bem” contra os “bandidos”. Voltamos, assim, à questão: qual teria sido a “eficiência” da operação no Jacarezinho no curso dessa “guerra”?
Regulares irregularidades
O Dicionário Aurélio define “eficiência” como a ação que “produz o efeito esperado”. Se o efeito esperado da operação no Jacarezinho foi a de executar os mandados de prisão, temos um sério fracasso. Apenas 3 dos 21 mandados foram cumpridos deixando 29 mortos, que incluíram um policial, e uma dezena de feridos.
Será que a operação, com esse saldo, foi eficiente para cumprir o objetivo maior de coibir a convocação de menores pelo tráfico? Os mais de 40 anos acumulados de estudos, observação e análise do narcotráfico no Rio respondem taxativamente: eficiência zero.
Uma comunidade como a do Jacarezinho é um manancial quase inesgotável de jovens – e muito jovens – homens e mulheres para o mercado ilegal das drogas, por razões sabidas há tempos: falta de opções de trabalho e carreira, pouco acesso a educação básica (sem falar da superior), processos de socialização em meio a práticas de violência e preconceito racial, de classe e de gênero, entre outras.
Num contexto como esse, “entrar no tráfico” é uma forma de conseguir sustento, alcançar algum nível de reconhecimento, status e de garantir uma forma de dignidade pelo consumo e pelo provimento de bens aos seus. As declarações do presidente e do vice-presidente apenas sintetizam a retórica da “degradação moral” dos favelados, assumindo que os membros de um grupo narcotraficante são pessoas que, diante de uma abstrata opção de vida, exercem seu “livre arbítrio” escolhendo o “caminho do mal”.
O discurso e a crença na “degeneração moral” são um disfarce frágil para outra perspectiva ideológica, a da “degenerescência da raça”. E tem sido assim na cidade do Rio, desde tempos quando a proibição de se fumar maconha, por uma lei municipal de 1830, foi instrumentalizada como forma de coibir (e prender) negros forros ou escravos.
Invasões de morros e favelas são uma regularidade no Rio de Janeiro. Nelas, ações oficiais atravessam regulamente o limiar da ilegalidade, como a invasão de lares, prisões arbitrárias, vexações, agressões, roubos, execuções (registradas ou não como “autos de resistência”). Na prática, o espaço da favela e seus moradores são tratados pelo Estado e pelos moradores do “asfalto” como um território e uma população de nação inimiga. Nessa perspectiva, são considerados um “outro povo”, perigoso, selvagem, bárbaro, como “comprovariam” seu tom de pele, seus gostos estéticos e artísticos, sua “sensualidade” e muitos outros elementos estereotipados e racistas que são reforçados pelas mídias, discursos governamentais, policiais, telenovelas etc.
Com isso, se fortalece no senso comum a noção de que o “outro” é perigoso e que, se afinal “guerra é guerra”, então vale tudo. Se desumanizar o outro facilita a aceitação moral de todo tipo de violência que lhe seja infligido, o “favelado” é regularmente destituído de sua dignidade humana pela sua suposta “degenerescência moral, social, cultural e racial”. O medo, então, faz o resto, e faz os “cidadãos de bem” – que deveriam, por princípio moral, repudiar a violência e o assassinato – aplaudam resultados como os da operação no Jacarezinho. Em parte desse discurso etnocêntrico e racista de guerra ao tráfico está a confusão estratégica entre o tráfico e a favela, a pessoa do traficante com a da residente da comunidade, como categorias intercambiáveis na simbologia do conflito.
Por essa mesma lógica, passados alguns dias do acontecimento trágico do Jacarezinho, não seria ousado supor que as 29 pessoas mortas – todas tidas como “do tráfico” – já tenham sido substituídas por outros jovens que, em breve, matarão e morrerão. E os/as menores continuam sendo regularmente convocados.
Necrópole Brasil
Pensando sobre as formas pelas quais se articula e se justifica a eliminação seletiva de pessoas tidas como “indesejáveis” no mundo atual, o filósofo camaronês Achille Mbembe cunhou o conceito de “necropolítica”, a partir do grego “nekrós” (morte) e “pólis” (cidade/sociedade política). De modo inteligente e provocativo, Mbembe atualizou uma discussão lançada, ainda nos anos 1970, pelo filósofo francês Michel Foucault, quando buscava compreender como era possível que em sociedades “biopolíticas” – voltadas a oferecer mais qualidade de vida (“bios”) aos cidadãos – seria possível legitimar a perseguição e eliminação física de parte dessas mesmas sociedades. A resposta de Foucault: o racismo.
O racismo consegue, para Foucault, não apenas superar as barreiras morais e legais que impedem que o Estado assassine seus próprios cidadãos, como vincula a busca da “vida feliz” de uns à necessidade de matar os “outros”. Esse racismo seria praticado de formas explícitas – como no nazismo, na violência institucionalizada do Estado de Israel contra civis palestinos ou no supremacismo branco dos EUA – ou de modo menos evidente, como no Brasil, onde o racismo é (mal) escondido sob a roupagem de uma “democracia racial”, e que deixa a cargo da justiça criminal e da ação repressiva do Estado a realização do racismo na forma da “aplicação da lei”.
A reflexão de Mbembe é interessante para destacar que não há “biopolítica” para uns sem a “necropolítica” para outros. Daí a importância do medo como sentimento individual e prática coletiva, legitimando a morte de muitos como um “mal necessário”. Eis o “medo na cidade do Rio de Janeiro” – título de importante livro da historiadora Vera Malaguti Batista – que transformou a capital fluminense numa “fobópole” – “cidade do medo” – como a chama o geógrafo Marcelo Souza. A fobópole, então, logo se converte em necrópole.
A eficiência do fracasso
No Rio, como em cidades por todo o país, a principal justificativa para a condução de uma “guerra urbana” é o combate ao narcotráfico. Essa “guerra” tem apenas intensificado desde os anos 1980. Hoje, o Brasil é um país que conta com grupos como o PCC (Primeiro Comando Capital), que estabeleceram um outro patamar em termos de organização e abrangência nas suas práticas ilegais, quando comparado aos mais antigos como o Comando Vermelho, que controla o Jacarezinho. O país é, segundo dados da ONU, o segundo maior consumidor de cocaína do mundo, além de estar altamente conectado com grupos narcotraficantes da América Andina, da África Ocidental e da Europa.
O que diríamos a um amigo que, há quarenta anos, tenta resolver um grave problema insistindo numa resposta que apenas piora a situação? Pois bem, esse “amigo” é o Brasil combatendo o narcotráfico.
No entanto, ao invés de fazer o que a mais simples reflexão indicaria, o país é obcecado pela repressão, acreditando sem vacilar que “bandidos” são degenerados que renunciaram à cidadania e, por isso, podem ser eliminados se não se renderem (ou, até mesmo, rendendo-se). Após quarenta anos de fracassos, ninguém poderia considerar uma política qualquer um “sucesso” e nela persistir, certo? Parece que sim, no campo da segurança pública.
Mas não há estratégia que sobreviva sem eficiência. Nesse caso, há que se perguntar qual é a real eficiência de operações como a do Jacarezinho. Que elas sequer arranham a economia do narcotráfico e seus efeitos negativos, em termos de violência e “criminalidade”, é um fato fartamente documentado por especialistas, jornalistas, estatísticos de todas as perspectivas políticas e ideológicas.
Será então que a tragédia do Jacarezinho nos mostra mais um exemplo da eficiência da necropolítica? Talvez, por esse prisma, a operação tenha sido um sucesso: 28 mortos contra 1, uma população local mais uma vez amedrontada, uma cidade novamente em pânico, líderes fazendo uso político das mortes ao jogar para o aplauso do seu eleitorado de “cidadãos de bem”. A guerra contra o narcotráfico é um fracasso exitoso. Cada operação policial não aproxima o Estado da vitória sobre o tráfico, mas expõe moradores, policiais e traficantes à morte. Dificilmente eles são filhos da elite ou da classe média alta. São pobres “esculachando” pobres, pobres matando pobres. Nenhuma dessas operações é uma vitória estratégica e, assim, outras e mais outras são executadas. Na necrópole Brasil há um, dois, muitos Jacarezinhos.
Thiago Rodrigues é Professor Associado no Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Coordenador do grupo de pesquisa Segurança e Defesa nas Américas (SeDeAMERICAS/UFF) e Senior Fellow da Coordinadora de Investigaciones Económicas y Sociales (CRIES/Argentina).