O folhetim da discórdia
Um casal muçulmano que resolve seus problemas por meio do diálogo, consome bebidas alcoólicas e faz sexo antes do casamento. Estes são os protagonistas da série turca Noor, que tem registrado uma audiência estrondosa no mundo árabe e provocado debates fervorosos sobre a vida a dois dentro do Islã
Noor suscita divórcios e tensões no seio de casais no mundo árabe”; “Mohannad, o homem com quem sonham as mulheres, cria problemas sem fronteiras!”… Dia após dia, a imprensa faz ecoar o fenômeno Noor. A série turca, exibida pelo canal da Arábia Saudita MBC 4, poderia ser apenas mais uma novela na avalanche despejada pelos canais árabes via satélite. Mas eis que Noor transbordou da telinha para tornar-se um problema social.
Milhões de telespectadores árabes acompanham passo a passo as tribulações do casal formado por Mohannad e Noor, personagem que dá nome à série. O roteiro é extremamente convencional: depois de um acidente com sua namorada Nihal, Mohannad mergulha numa grave depressão. Seu avô, Fekri Bek, decide então casá-lo com Noor, uma jovem do interior que tinha sido o amor de infância de Mohannad, e o casal é envolvido num turbilhão de eventos épicos: sequestros, prisões, tentativas de assassinato… A previsibilidade da trama, aliás, foi a principal razão da baixa audiência conseguida na Turquia em 2005, época em que a série foi transmitida.
Mas nas sociedades árabes a reação foi oposta e Noor alcançou um sucesso estrondoso.
A explicação se baseia em três elementos: “Al Atf wa al Romansiyya wa Mohannad” – “sentimento, romance e Mohannad”. Além dos ingredientes comuns desse tipo de novela, a surpresa vem, de fato, daquele que já está sendo chamado de “Brad Pitt do mundo árabe”: Kivanc Tatlitug, mais conhecido pelo nome de Mohannad, é um modelo de 24 anos que a série revelou como ator. Promovido a ídolo do mundo árabe, esse loiro, de olhos azuis, alto e musculoso, é capaz, por si só, de fazer a audiência feminina sucumbir. Mas o que mais encanta o público é relação baseada no amor, na sensibilidade e na igualdade que seu personagem estabelece com Noor. Ao mesmo tempo, sua parceira de cena, a deslumbrante Songul Oden, representa a mulher moderna, independente e corajosa. Os dois formam um casal exemplar, estruturado no diálogo, no respeito mútuo e na capacidade de fazer concessões.
Muitas mulheres admitem estar fascinadas pela representação dessa relação quase onírica, tão distante de suas realidades cotidianas. Mohannad é o marido perfeito, aquele que tantas amariam ter. “Esse casal simboliza o amor romântico que falta em nossa cultura. É bom que os homens vejam esse tipo de sentimento, nem que seja pela televisão”, declarou uma jovem saudita ao The Washington Post. Há cada vez mais mulheres que exigem que seu marido se inspire em Mohannad. Alguns deles reconhecem o comportamento exemplar do galã diante da esposa. Hamdan, 24 anos, casado e motorista de táxi no Iêmen, constata: “Na nossa cultura, o homen é superior à mulher. E, nessa novela, vemos cada um fazer concessões para que a coisa funcione”.
Mas, inevitavelmente, a “Noor mania” e o culto que algumas mulheres prestam ao belo herói suscitam algumas tensões nos lares e geram certas situações inconvenientes, que a imprensa árabe não deixa de relatar. Na Arábia Saudita, na Síria, em Bahrein ou ainda no Iêmen, são incontáveis os casos de divórcios ligados à novela. Conta-se que, na Jordânia, a questão Noor estava na ordem do dia da Comissão Parlamentar para a Educação, a fim de se definir uma estratégia diante de uma “cultura não-islâmica”.
A dimensão romântica da série não é, entretanto, sua única qualidade. Outros elementos explicam seu sucesso, como a proximidade cultural dos personagens com o público. “Maria, Mercedes: esses nomes não me dizem nada”, declara Dania Nugali, uma adolescente saudita, em referência às novelas latino-americanas exibidas anteriormente pelo canal MBC. “Diante de uma dessas novelas mexicanas, eu tenho a impressão de assistir a um curso de literatura árabe. Enquanto que, com Noor, eu tenho realmente a sensação de ver um programa de entretenimento”1, acrescenta.
É evidente que uma série turca está bem mais próxima das populações árabes que as novelas sul-americanas. Noor se passa num país muçulmano e conta a história de uma família muçulmana. Ela coloca em cena um modo de vida, uma mentalidade, um conjunto de valores e costumes que são encontrados de Istambul a Sanaa. São vários os elementos responsáveis por tornar a série íntima do público, tais como a importância da família, as várias gerações vivendo sob o mesmo teto, o respeito em relação aos mais velhos, os casamentos arranjados pelos pais…
Mas, se é a cultura comum que facilita a identificação do telespectador com os personagens, foram as diferenças entre os países árabes e a sociedade turca – bem mais secularizada –, que provocaram a ira dos conservadores. Apesar de Noor observar o jejum do Ramadã, a série comporta cenas capazes de chocar os conservadores da moral islâmica: seus protagonistas não se incomodam em consumir bebidas alcoólicas ou em ter relações sexuais antes do casamento.
Identificação com os personagens
É essa mistura de reconhecimento daquilo que é parecido e da atração pela diferença que dá a Noor seu poder particular, e assusta as autoridades religiosas. Afinal, quando a identificação é acompanhada por uma admiração pelo herói, o telespectador começa a se interrogar sobre as diferenças existentes entre si mesmo e os personagens. Uma jovem saudita resume perfeitamente o medo dos religiosos: “Quando os jovens, fascinados pela série, vêem muçulmanos envolvidos numa relação pré-marital ou tendo filhos fora do casamento, é muito mais perigoso do que se eles vissem ocidentais fazendo a mesma coisa”. Islah Jad, professor da Universdade de Bir Zeit, na Cisjordânia, resume o verdadeiro problema dos conservadores: “Essa série mostra que há muçulmanos vivendo de diferentes maneiras”2.
Assim, de Hebron a Riyad, sermões inflamados e fatwas se multiplicam à medida que a popularidade de Noor cresce. “Malsã”, “contrária aos princípios e valores das sociedades islâmicas”, “decadente”: todo o campo semântico da moral está mobilizado para condenar a série. Mas os religiosos não são os únicos a criticá-la. Outros, por razões mais “políticas”, vêem com maus olhos esse entusiasmo por uma produção turca. É o caso de Sameh Asi, jornalista do site de informação palestino Al Watan, que intitula um artigo com a pergunta: “As séries turcas conseguiram melhorar a imagem desse país no mundo árabe?3”.
Obrigado a responder afirmativamente a essa questão ao longo do texto, ele convida seus compatriotas da “nação árabe” a se debruçar sobre a história das relações turco-árabes: “Se remontarmos um pouco na história, constataremos que os turcos, na época do Império Otomano foram a razão do atraso civilizacional e tecnológico dos árabes. As séries turcas são um fenômeno passageiro, mas a questão é: Será que esse fenômeno conseguiu realmente mudar nosso olhar sobre os turcos e sobre os crimes que eles cometeram contra nossos avós?”.
Em detrimento de seus opositores, a série também se tornou um formidável meio de promover o turismo na Turquia. Uma jornalista do The Washington Post baseada em Riyad conta que, segundo um diplomata turco, o número de turistas sauditas passou de 40 mil no ano passado para 100 mil este ano4. No consulado da Turquia em Sanaa, constata-se o mesmo fenômeno: “Várias vezes ao dia, iemenitas vêm ao consulado com a intenção de partir para Istambul para visitar os lugares onde foram filmados os episódios e – por que não? – para tentar ver Mohannad!” O setor turístico turco soube, aliás, explorar esse entusiasmo, já que a casa fictícia de Mohannad, às margens do Bósforo, foi alugada por operadoras de turismo e transformada em museu.
Graças a uma programação que não deixa nada ao acaso, a transmissão da série foi interrompida, depois de 200 episódios, no fim do mês de agosto, antes do período do Ramadã. Várias novelas que entrariam no ar na seqüência acabaram adiadas por terem sido consideradas muito vanguardistas. “O lançamento de todos esses projetos era sem dúvida um pouco prematuro”, comenta em seu blog Yves Gonzalez-Quijano, professor de literatura árabe moderna na universidade francesa Lyon-2.
“Mas faz parte da lógica das coisas – a que impõe o gosto do público sobre os anunciantes – que, no próximo Ramadã ou antes dele, se multipliquem as explorações da realidade das mulheres no mundo árabe5”, completa. Fomentando o debate sobre a relação entre a mulher e o casamento, Noor talvez fosse uma boa forma de tatear o público durante o mês sagrado, protegendo-se atrás de uma novela estrangeira, tão próxima e tão distante do mundo árabe.
*Julian Clec’h é diplomado pelo Instituto Francês de Geopolítica.