O fracasso da agenda econômica do golpe e o caminho alternativo
Este artigo busca analisar a atual crise econômica e o significado da agenda econômica golpista. Ademais, apresenta uma agenda alternativa para o desenvolvimento econômico, em que o crescimento é movido pela redução das desigualdades e pelo aumento e melhoria da infraestrutura social
O golpe fracassou em construir uma agenda econômica capaz de retomar a trilha do desenvolvimento. Seus ideólogos esperavam que, ao promoverem austeridade fiscal e reformas liberalizantes que reduzem o papel do Estado e enfraquecem os trabalhadores, emitiriam sinais para o mercado, que por sua vez melhorariam as expectativas e promoveriam o crescimento do investimento. Com o crescimento em marcha, seria criado o ambiente necessário para a legitimação do golpe e sua agenda econômica neoliberal nas urnas. Esse plano fracassou e lançou o Brasil em uma crise econômica, social e institucional sem precedentes.
A crise econômica brasileira prossegue e as reformas neoliberais já revelam seu viés recessivo e antitrabalhador. Mais grave do que os impactos negativos da crise no presente são as perspectivas negativas para o futuro: com a reforma trabalhista e a limitação do crescimento dos gastos públicos, os direitos sociais, trabalhistas e o financiamento da Previdência Social ficam ameaçados.
A agenda econômica golpista: crise, precarização e desigualdade
A economia brasileira cresceu 1% em 2017, registrando quatro trimestres consecutivos de expansão, o que marcou o fim do período de queda do PIB no país. Apesar disso, o ritmo lento da recuperação do PIB e do emprego faz que se projete que apenas em 2022 o Brasil retomará o nível de produção de 2014 – o mais longo período de recuperação de nossa história.
Se a taxa de crescimento foi positiva no ano, sua aceleração foi diminuindo ao longo dos trimestres de 2017. Na comparação entre trimestre contra o trimestre imediatamente anterior, os valores do ano foram de crescimento de 1,3%, 0,6%, 0,2% e 0,1%. Essa desaceleração ganhou ares de estagnação nos últimos dois trimestres do ano, jogando dúvidas acerca da sustentabilidade do crescimento em 2018.
No entanto, mais grave que a lentidão e a fragilidade da retomada é sua baixa qualidade. Do ponto de vista social, o baixo crescimento não se traduziu em reversão do quadro de agravamento das desigualdades, tampouco foi capaz de aplacar o crescimento do desemprego e da precarização. A taxa de desocupação foi a maior da série histórica: a média anual de desocupados cresceu de 6,7 milhões em 2014 para 13,2 milhões em 2017. A pobreza seguiu se ampliando, com as desigualdades de renda e regionais ampliando seu quadro já bastante deteriorado com a recessão de 2015/2016.
No mercado de trabalho, mesmo com a virtual zeragem do saldo de contratados e demitidos com carteira assinada, o desemprego cresceu e verificou-se o aumento da precarização e dos vínculos informais. É verdade que o número de desocupados tem caído nos últimos trimestres e com ele também a taxa de desocupação, porém o número de pessoas que desistiram de procurar trabalho (desalento) continua aumentando, bem como aqueles ocupados que gostariam de trabalhar mais horas, mas não conseguiram.
Ademais, as mudanças na composição entre os ocupados indicam que as transições de desocupados para ocupados se concentram na informalidade, isto é, assalariados sem carteira assinada, trabalhadores por conta própria e empregadores que não contribuem para a seguridade social. Até o início de 2017, observou-se uma queda no número de ocupados informais, na esteira da destruição de todos os tipos de ocupação. A partir de 2017, quando algumas novas vagas começaram a ser criadas, o número de informais cresceu, alcançando 34 milhões de pessoas no último trimestre do ano. Ou seja, quase a totalidade das novas vagas criadas no período foram informais, assalariados sem carteira, empregadores e trabalhadores por conta própria sem contribuição, como mostra a Figura 1.
Depois de anos de queda, observou-se um aumento da desigualdade na renda familiar do trabalho em 2017, ano da “recuperação” do crescimento. O índice de Gini desse tipo de rendimento, medida usual para calcular a desigualdade, saltou de 0,614 no primeiro trimestre de 2016 para 0,635 no final de 2017, demonstrando a piora acentuada na distribuição de renda num curto período de tempo.
Outra faceta negativa da recuperação está estampada no aumento da pobreza e da miséria. Entre 2016 e 2017, 444 mil pessoas entraram na condição de pobreza (pessoas cuja renda familiar per capita é menor que US$ 5,5 por dia). A pobreza extrema (pessoas cuja renda familiar per capita é menor que US$ 1,9 por dia) aumentou 11,2%, o que representa quase 1,5 milhão de pessoas a mais nessa condição. No mercado de trabalho, se olharmos para a massa real de rendimentos de todos os trabalhos dos 10% com maior renda e dos 10% com menor renda, veremos que, enquanto a massa de rendimentos entre os de maior renda reverteu sua trajetória em 2017 (crescendo aproximadamente 10%), o mesmo não ocorreu com a massa de rendimentos dos trabalhadores de menor renda, que seguiu em queda.
Se juntarmos a queda na renda do trabalho dos mais pobres com a redução de seu “salário indireto”, recebido por meio da prestação cada vez mais precária dos serviços públicos sociais, o quadro se torna ainda mais dramático. A Emenda Constitucional 95 (ler mais nas págs. 6 e 7), que pretende reduzir os gastos públicos federais – per capita e em proporção do PIB – por vinte anos e atinge diretamente o financiamento de áreas como saúde, educação e segurança, sinaliza para uma deterioração social progressiva, uma vez que afeta a oferta de serviços públicos essenciais.
Em suma, o ano de 2017 registrou um tímido crescimento positivo, mas está longe de tirar o país do cenário de crise e prostração em que ainda se encontra. O baixo dinamismo do PIB, o volume recorde de desemprego, a crescente precarização, assim como o aumento da pobreza e da desigualdade regional apontam para uma recuperação lenta e de baixa qualidade, sem perspectivas sustentáveis de reversão da crise social e econômica que se instalou no país.
Talvez o exemplo mais bem acabado do fracasso da estratégia neoliberal adotada pelo governo golpista e seus apoiadores seja a política de preços da Petrobras, que desencadeou um aumento no preço dos combustíveis e engendrou a paralisação no setor de transportes que desabasteceu o país no fim de maio. A opção por orientar a política de preços dos combustíveis pelos preços internacionais e pelas variações da taxa de câmbio agradou fortemente os acionistas da empresa, muitos deles estrangeiros, mas prejudicou diretamente os setores produtivos dependentes da cadeia produtiva do petróleo. A Petrobras perdeu espaço no mercado de combustíveis, levando a uma redução no ritmo de refino e no crescimento da importação de derivados de petróleo, dado o elevado preço dos produtos no mercado doméstico. A lógica privatista aplicada na administração da Petrobras é apenas um exemplo de como a agenda neoliberal, quando posta em prática, pode gerar enormes perdas sociais e criar o caos, em vez da ordem.
Dado o fracasso da agenda golpista, é preciso debater outra agenda econômica, que se contraponha frontalmente aos retrocessos sociais e busque a redução das desigualdades, o crescimento econômico e a melhora efetiva no mercado de trabalho.
O social é o caminho para o desenvolvimento
O Brasil terá um enorme potencial de crescimento econômico e desenvolvimento produtivo quando enfrentar suas duas principais mazelas: a concentração de renda e a carência na oferta pública de bens e serviços sociais. Isso porque a distribuição de renda e o investimento social são extremamente funcionais ao crescimento econômico e à diversificação produtiva e tecnológica, como já mostrado no artigo “Desenvolvimento social e estrutura produtiva”, publicado pela Frente Brasil Popular e de autoria dos economistas Eduardo Fagnani, Esther Dweck, Marco Antonio Rocha e Rodrigo Teixeira, além dos dois economistas autores deste texto.
A distribuição da renda é o primeiro “motor” do crescimento, uma vez que a ampliação da renda das famílias fomenta o mercado interno de consumo, induzindo os investimentos privados na ampliação da produção, proporcionando aumento de escala e ganhos de produtividade para as empresas domésticas e impulsionando a geração de emprego e renda, o que se reverte em mais consumo, investimento e renda.
O investimento social, como segundo “motor” do crescimento, tem um enorme efeito dinâmico a curto prazo por meio dos multiplicadores de gasto e da geração de empregos, sendo, portanto, um vetor de saída para a atual crise econômica. Mas também tem amplos efeitos positivos sobre o crescimento econômico a longo prazo, por meio da melhora da qualidade de vida das pessoas e da produtividade do sistema e de uma redistribuição de renda e riqueza.
São trabalhadores que demoram menos tempo para ir e voltar do trabalho, com serviços de transporte de maior qualidade. Trata-se de uma força de trabalho com mais saúde, educação, lazer e cultura, decorrentes de uma maior oferta de serviços sociais.
Por meio da expansão da infraestrutura social pode-se ainda diversificar a estrutura produtiva e repensar a tradicional concepção de política industrial como política voltada à promoção de setores, empresas e tecnologias tidas como chave para a modernização das forças produtivas e para a aproximação da fronteira tecnológica. Uma nova política para a estrutura produtiva pode se basear na formação de eixos voltados para “missões orientadas à solução de problemas históricos da sociedade brasileira”.
Não se trata de reinventar a política industrial e outras políticas para o setor produtivo, e sim de utilizar a imensa carência de infraestrutura social para garantir maior apoio político, ampliação da escala produtiva de parte da indústria nacional e aumento do encadeamento de importantes setores industriais no Brasil.
Colocando em exemplos práticos, podem-se sugerir eixos das políticas públicas em torno dos seguintes setores: mobilidade urbana, saneamento básico, tecnologia verde, habitação popular, saúde – em particular a cadeia produtiva em torno do SUS – e educação, além de outros eixos voltados para as especificidades regionais, como desenvolvimento das atividades agropecuárias do Semiárido e desenvolvimento sustentável da Amazônia (incluindo a expansão do mapeamento do genoma da região amazônica), entre outros a serem elencados.
Nesse sentido, a ideia básica das políticas produtivas e tecnológicas orientadas por missões é promover a diversificação do setor produtivo por meio das demandas sociais específicas, conforme ilustra a Figura 3. Ou seja, a articulação de uma ampla política orientada pela demanda possibilita reconstruir a estrutura de oferta brasileira e fornecer meios para sua modernização.
Por exemplo, a saúde movimenta o que Carlos Gadelha conceitua como complexo industrial da saúde, no qual setores prestadores de serviço, como hospitais, ambulatórios, serviços de diagnósticos e tratamentos, articulam-se com dois principais setores industriais: 1) a indústria de base química e biotecnológica, que fornece fármacos, medicamentos, vacinas, hemoderivados, reagentes para diagnósticos e equipamentos; e 2) as indústrias de base mecânica, eletrônica e de materiais, que fornecem equipamentos mecânicos e eletrônicos, próteses e órteses e materiais de consumo.
No eixo de saneamento também ocorrem encadeamentos produtivos importantes por meio dos investimentos sociais. Além de consideráveis efeitos multiplicadores de emprego, o investimento em saneamento possui fortes encadeamentos diretos e indiretos com materiais elétricos, química e serviços de informação.
Considerando o fornecimento de água e esgoto, temos grupos tecnológicos que envolvem o fornecimento de bens e serviços em torno de bombeamento, processos físicos e químicos de tratamento, recuperação e reúso da água, controle de odores e disposição de lodos, todos com forte potencial demandante de novas tecnologias. A tendência tecnológica é que a médio prazo tenhamos cada vez mais estações de tratamento que contarão com sistemas automatizados, bioprocessos e biofiltros, biorreatores com membranas e tecnologias voltadas à reutilização dos lodos.
Portanto, não se trata de reinventar setores prioritários nem trajetórias e paradigmas tecnológicos. Pelo contrário, defende-se que é possível criar condições para a promoção de empresas nacionais em setores dinâmicos do ponto de vista tecnológico, porém com diferenças significativas sobre a forma de execução das políticas e cobrança dos atores envolvidos. A proposta se dirige para a mudança da lógica das políticas pelo lado da demanda, sobretudo no sentido de fornecer maior legitimidade às políticas para o setor produtivo.
Por fim, a agenda econômica neoliberal institucionalizada pelo golpe apresenta resultados desastrosos. Em pouco tempo perdeu credibilidade e viabilidade eleitoral. O momento pede o debate de uma agenda alternativa que legitime a redução da desigualdade e a infraestrutura social como carros-chefe do desenvolvimento. Essa agenda tem muito mais aderência entre a população brasileira do que a agenda neoliberal, a julgar pelas pesquisas que mostram que 80% dos brasileiros preferem melhores serviços públicos à redução de impostos; sete em cada dez brasileiros são contra as privatizações; a maioria dos brasileiros acha que o Estado deve ter responsabilidades como o bem-estar social, a redução da desigualdade, o provimento de saúde, educação… Portanto, o Brasil tem todas as condições de retomar o desenvolvimento e radicalizar seu caráter social e distributivo. Já o fracasso da alternativa golpista/neoliberal para além de trágico aumenta a possibilidade histórica de construir e colocar em prática esse projeto.
Figura 1: Número de ocupados informais, e contribuição para a variação do número de ocupados informais (média móvel 4 trimestres).
Figura 2: Principais motores do desenvolvimento para um projeto social
Figura 3: Articulação entre demandas sociais, políticas públicas e diversificação produtiva
*Pedro Rossi e Guilherme Mello são professores do Instituto de Economia da Unicamp.