O fracasso militar russo na Ucrânia
O questionamento que muitos analistas políticos e estudiosos de assuntos militares fazem é o seguinte: como a Rússia, uma nação muito mais poderosa que a Ucrânia, conforme exposto inicialmente, não conseguiu até o momento alcançar a vitória?
A Rússia possui um território com mais de dezessete milhões de quilómetros quadrados, o maior do planeta. Tem uma população com aproximadamente cento e cinquenta milhões de pessoas, uma das maiores economias do mundo. É rica em minerais e tem uma vasta reserva de petróleo, gás e carvão. Suas Forças Armadas agregam mais de um milhão de soldados e sua indústria de defesa produz quase todo o material bélico necessário inclusive artefatos atômicos. O espaço geográfico da Ucrânia abarca aproximadamente seiscentos mil quilómetros quadrados e uma população pouco acima de quarenta milhões de habitantes. Apesar de contar com recursos naturais significativos tais como madeira, ferro, carvão e terras aráveis, possui suprimentos inadequados de água potável e contaminação por radiação no nordeste do país. Suas Forças Armadas incorporam mais ou menos duzentos e cinquenta mil soldados e o armamento utilizado vem de países ocidentais bem como o financiamento da indústria de defesa.
Nos primórdios da invasão russa ocorreu um grande avanço das tropas moscovitas em terras ucranianas, haja vista os quilométricos comboios militares avançando pelas estradas do país. Embora a percepção inicial fosse a de que os russos deveriam conquistar várias partes do território de maneira rápida mesmo sendo afrontados pelas tropas locais, tendo em conta a notória assimetria de poder bélico, não foi o que aconteceu. Ocorreram retiradas e debandadas em locais de luta, milhares de soldados soviéticos foram feridos, mortos e tornados prisioneiros, uma grande quantidade de veículos se tornaram inúteis e comandantes foram substituídos sob a alegação de baixa competência. Previa-se que a denominada Operação Militar Especial acabaria em alguns dias, que a população local saudaria os russos como libertadores e que o governo entraria em colapso, um ledo engano.
O questionamento que muitos analistas políticos e estudiosos de assuntos militares fazem é o seguinte: como a Rússia, uma nação muito mais poderosa que a Ucrânia, conforme exposto inicialmente, não conseguiu até o momento alcançar a vitória? Para tentar responder a esta pergunta vamos utilizar uma categoria do método dialético de pesquisa denominada sobredeterminação. Seu significado é o de que um fenômeno qualquer se manifesta como resultante de um conjunto de fatores que interagem entre si, alterando uns aos outros, no decorrer do tempo.
Apesar deste conceito ser de cunho moderno ele se mostra totalmente sintonizado com a suposta era pós-moderna, ou melhor, ele se revela como uma concepção essencial da pós-modernidade. Com efeito, defensores da sua existência declaram que este novo estágio da história é carregado de instabilidades, mudanças rápidas e incessantes e se move em direção a rumos indefinidos. A Teoria do Caos, integrante da Física contemporânea, prevê que caso ocorra uma alteração, por mais insignificante que seja, no momento em que um evento qualquer se inicia, sérias, desconhecidas e imprevisíveis consequências podem emergir posteriormente. A situação caótica, isto é, as manifestações fortuitas e aparentemente erráticas, constituem o cerne de um estado de guerra, quer na modernidade ou na pós-modernidade.
Já no século dezenove Clausewitz afirmava que o combate na batalha é demasiadamente caótico. Dizia ele que a guerra é o domínio da incerteza, pois a quase totalidade da circunstância sobre a qual a ação da contenda está assentada se encontra mais ou menos oculta em uma névoa de dúvida e é imprescindível a ação de uma inteligência perspicaz e penetrante para estabelecer a verdade. Tal incerteza é agravada pela emergência de múltiplos e velozes acontecimentos no teatro de operações, particularmente aqueles decorrentes do uso do Princípio da Surpresa.
Taras Kuzio, em abril deste ano, publicou um artigo no Ukdefence Journal o qual faz um exame do atual fracasso militar russo, em proximidade à categoria de sobredeterminação anteriormente mencionada. Taras começa pela corrupção, que segundo ele é bastante incrustrada e elevada em diversos setores da sociedade moscovita, inclusive nas Forças Armadas. Cita como exemplos o uso de pneus chineses nos veículos motorizados, bem mais baratos, mas impróprios para estradas lamacentas, o emprego de caminhões comprados a baixo custo, incapazes de suportar o peso de equipamentos bélicos, a ausência ou atraso do fornecimento de comida aos soldados famintos e os kits médicos desatualizados, e, portanto, inúteis no campo de batalha.
Os combatentes ucranianos impediram os guerreiros russos de dominar o ar, os quais foram treinados pelos militares da Turquia na operação de drones Bayraktar. Embora em número menor, os pilotos da Ucrânia, por terem recebido um adestramento mais adequado, foram mais eficazes na luta porquanto derrubaram várias centenas de jatos, bombardeiros e helicópteros. As forças especiais militares e do Serviço de Segurança da Ucrânia foram treinadas de acordo com os padrões da OTAN e equipadas com equipamentos de última geração. Com décadas de experiência em cibernética e donos de um grande setor de tecnologia da informação, os ucranianos se destacaram na interceptação de comunicações militares russas que eram excepcionalmente pobres, às vezes contando apenas com telefones celulares. O serviço de segurança, a inteligência militar e os voluntários hackearam as comunicações militares russas fortemente auxiliados pelos satélites da OTAN e dos EUA.
Embora este texto de Taras contemple a sobredeterminação e contribua muito para o entendimento do fracasso russo, se mostra relativamente parcial. Ele não aponta o papel do caos no decorrer da luta o qual deve ter favorecido bastante os atos de fuga, de derrota e de rendição. Também não situou a contenda no âmbito da Teoria da Paz Democrática, a qual diz que os países dotados de regimes democráticos hesitam muito em entrar em conflitos armados com outras nações democráticas haja vista que preferem resolver as tensões internacionais por meio das instituições diplomáticas. Seus governantes sabem que são forçados a aceitar a responsabilidade pelos fracassos na guerra, os quais poderão acarretar pressões internas, tais como reações grupais contrárias à pugna, fuga do recrutamento e críticas de políticos aliados, as quais aconteceram em cidades moscovitas.
Para amainar os desgastes internos Putin anexou fraudulentamente algumas regiões ucranianas e passou a adotar a tática da Terra Arrasada, ou seja, destruir tudo aquilo que é proveitoso do inimigo, principalmente por meio de ataques aéreos. Taras não realça também o papel da democracia em relação à eficácia militar no campo de batalha. De fato, já foi comprovado por ocorrências, desde há um bom tempo, que a maior legitimidade dos estados democráticos induz o aparecimento de soldados superiores bem como leva seus militares a apresentarem maior eficácia organizacional. Vale lembrar que a guerra em questão envolve um país governado de forma autocrática e outro dirigido de maneira democrática, ainda que de jeito pouco genuíno.
Neste conjunto de fatores responsáveis pelo fracasso moscovita, Taras menciona também o fato de que as forças armadas russas ostentam um elevado grau de hierarquia e inflexibilidade, tornando-as alvos fáceis para as constantes emboscadas ucranianas. Esta menção faz referência ao estilo de liderança praticado pelos seus integrantes. Consideramos que dentre os fatores listados por ele, este emerge de forma destacada e decisiva porquanto já é sabido que a permanência do soldado no campo de batalha, sua resiliência nas pugnas e sua motivação para lutar depende muito do modo pelo qual ele é conduzido. E este modo de liderar é mais apropriado e eficaz nas hostes castrenses pertencentes a países regidos pela democracia.
Vale observar que as forças armadas russas passaram por um processo de reformas sucessivas. Em 1991 ocorreu a dissolução da União Soviética e no ano seguinte emergiu as Forças Armadas da Federação Russa. A partir do ano de 1997 aconteceu a primeira delas sob o Ministro da Defesa Igor Sergeyev, a segunda deu-se em 2001 com Vladimir Putin, a terceira concretizou-se em 2007 com o Ministro da Defesa Anatoliy Serdyukov e a quarta apareceu em 2012 com o Ministro da Defesa Sergey Shouygu. Tais reformas incidiram na alteração de contingentes, quantidade de divisões e brigadas, mudança no tempo de serviço obrigatório, aumento dos gastos com pessoal, modernização do armamento. Não ocorreu nenhum aperfeiçoamento no ato de liderar as tropas em combate o qual permaneceu de modo linear, ou seja, na forma de uma estrutura piramidal em cujo vértice se encontra a autoridade máxima preservadora da unidade de comando. Nos escalões mais baixos os indivíduos não se comunicam livremente, necessitam da intervenção dos respectivos chefes para a troca de informações. Como pode ser inferido este modelo espelha o jeito autocrático de governar o país que vem desde a época da antiga União Soviética e permanece até os dias atuais. Veja-se ainda o caráter prepotente da conscrição como forma de recrutamento que provocou a fuga de milhares de jovens e a tentativa de mobilização de antigos reclusos recentemente aprovada pelos parlamentares.
Em países democráticos o exercício da liderança militar ocorre de maneira diferente. Na Alemanha, por exemplo, o comando da tropa é feito com base no estilo Auftragstaktik, ou missão dada pela finalidade, o qual possibilita que todos os integrantes da pirâmide hierárquica, desde o soldado raso até o general comandante, exercitem seu espírito crítico, sua faculdade de julgamento, sua conduta autônoma e sua capacidade de tomar a iniciativa. O militar, qualquer que seja sua graduação, pode, até mesmo em circunstâncias especiais, modificar ou deixar de cumprir as tarefas que lhes foram confiadas por superiores hierárquicos, se ele considerar que isso está de acordo com a intenção do comandante responsável pela ordem expedida.
Nos Estados Unidos da América do Norte, há alguns anos vem sendo posto em prática um procedimento de liderança alcunhado de Shared Leadership – o qual pode ser traduzido como liderança compartilhada. Em tal modo de direção grupal inexiste a figura de um indivíduo específico responsável pelo encaminhamento do grupo. A ênfase recai na interação dos membros da equipe para possibilitar o exercício do comando coletivo onde a conduta de todos é resultante de protagonismos alternados. Ele se mostra bem adequado em operações militares carregadas de alto risco para todos os integrantes que participam dessas operações.
Vale lembrar também o caso da Suíça, até há alguns anos, quando vigorava o sistema de milícia, recentemente abandonado. Nele o cidadão servia algumas semanas por ano às Forças Armadas e conservava em casa armamento, munição e farda. No decorrer do treinamento os comandantes percorriam o campo sozinhos, sem ajudantes-de-ordens e sem ostentar autoridade hierárquica. Durante os exercícios frequentemente acontecia de um superior hierárquico, na esfera militar, porém funcionário subalterno em uma determinada empresa, estar comandando um grupo no qual um dos integrantes era seu chefe nessa empresa.
Em relação à Ucrânia sabe-se que seus militares mais graduados, tendo à frente o general Zaluzhnyi, comandante das Forças Armadas, foram encaminhados à OTAN para serem treinados nas contendas norteadas pela descentralização que confere agilidade aos agrupamentos combatentes porquanto possibilita aos líderes das pequenas e dispersas unidades pensarem e agirem por conta própria. Acrescente-se à esta eficiente forma de direção dos soldados o apelo ao patriotismo que é muito cultivado nos diversos setores da sociedade, principalmente nas escolas, o qual tem surtindo efeito haja vista a condição de país invadido
Nos primórdios do ataque russo à Ucrânia os moscovitas se comportaram como se estivessem combatendo numa guerra da época moderna, particularmente a de terceira geração a qual diz respeito às lutas pautadas na manobra, no movimento dos veículos blindados e no enfrentamento das tropas, típicas da segunda guerra mundial. Os fatores intervenientes anteriormente expostos e analisados colaboraram para o esclarecimento do fracasso ocorrido com destaque para o estilo de liderança praticado pelos comandantes soviéticos que é incapaz de manter os soldados lutando e se empenhando tenazmente na derrota do inimigo. Ao mudarem a forma da pugna, agora centrada nos ataques por meio de mísseis e drones, perceberam que através do uso de sistemas autônomos próprios da alcunhada guerra pós-moderna, teriam condições de apresentar mais eficiência no teatro de operações. Apesar dessa aparente vantagem a vitória dificilmente será alcançada pois o apoio de diversos países da comunidade internacional se mostra como um grande óbice. Ademais, como já foi mencionado, a vitória sempre pendeu para o lado dos países governados pela democracia na luta contra as nações dirigidas pela autocracia.
Antônio Carlos Will Ludwig é professor Aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)