O governo Temer na economia: conjuntura, estrutura e “fracasso”
Diante dos resultados negativos em todas essas frentes e das perspectivas no mínimo modestas para 2017 e 2018, seria correto afirmar que o governo Temer é um fracasso na economia? A hipótese deste artigo é a de que não, e um sinal claro é a enorme condescendência com que sua performance é noticiada e comentada até aqui
No fim de abril de 2017, os sinais da conjuntura econômica eram dúbios, mas não autorizavam grande otimismo. Beneficiados por uma mudança metodológica (usual, mas desta vez muito mal esclarecida) relativa aos setores de comércio e serviços, os indicadores antecedentes apontavam para um encerramento da recessão no primeiro trimestre. Por outro lado, os dados de geração de empregos (que haviam surpreendido favoravelmente em fevereiro) voltaram ao território negativo em março, assim como os dados da arrecadação da Receita Federal. Notícias positivas só mesmo em relação ao setor externo e aos índices de preços, mas em ambos os casos as motivações não são muito virtuosas, como já havia ficado claro no equívoco revelador da Globonews: “Recessão e desemprego derrubam a inflação e devolvem poder de compra aos brasileiros”.
O desempenho das contas públicas continua a decepcionar, mas agora sem provocar diagnósticos apocalípticos. A equipe econômica, ainda em sua fase provisória, ampliou significativamente a meta de déficit primário ao assumir (de R$ 97 bilhões para R$ 170,5 bilhões), o que deu algum fôlego às despesas na segunda metade de 2016 e permitiu “entregar” um resultado ligeiramente melhor (R$ 154 bilhões, ou 2,5% do PIB), mas bem pior do que o 1,9% em 2015 e o 0,6% em 2014. A meta para 2017 é de R$ 139 bilhões, as dificuldades para cumpri-la são enormes, e o contingenciamento anunciado de mais de R$ 40 bilhões – concentrado como sempre no investimento público, já anêmico – dificultará ainda mais a recuperação do nível de atividade. A dívida pública, para muitos a síntese da tragédia anterior, segue em forte movimento de alta: de 56% do PIB (em termos brutos) ao final de 2014, passou para 70% em 2016 e se projeta que ultrapasse 75% em 2018.
A campanha pelo impeachment – que, é óbvio agora, tinha também muito de autopreservação e tentativa de “estancamento” – foi embalada por duas grandes promessas econômicas: a da retomada da confiança de empresários e consumidores com a substituição de um governo irresponsável fiscalmente; e a dos benefícios trazidos pelos investimentos estrangeiros, que também se traduziriam em crescimento. Mesmo implícita, havia ainda outra grande aposta, de natureza estatística: não seria difícil produzir recuperação em cima de uma base de comparação tão baixa.
Diante dos resultados negativos em todas essas frentes e das perspectivas no mínimo modestas para 2017 e 2018, seria correto afirmar que o governo Temer é um fracasso na economia? A hipótese deste artigo é a de que não, e um sinal claro é a enorme condescendência com que sua performance é noticiada e comentada até aqui.
O sentido econômico dessa gestão, para as forças que de fato foram decisivas para a derrubada da presidenta eleita, nunca girou em torno de metas de curto prazo, relativas a crescimento ou emprego. Nem mesmo aos resultados conjunturais das contas públicas. Sua missão econômica vem sendo cumprida à risca, com profundas mudanças estruturais realizadas com ritos e ritmos característicos dos períodos de exceção. E é diante dessas tarefas que seus êxitos, fracassos e riscos devem ser avaliados.
II.
Para fins analíticos, é possível dividir as formas de atuação pública na economia em dois planos. De um lado localizam-se as três principais políticas macroeconômicas (monetária, cambial e fiscal) e seus resultados sobre o PIB, inflação, taxas de juros, contas externas etc. De outro, a estratégia de longo prazo, ou opções relativas aos papéis do Estado e do mercado, políticas industriais, abertura comercial e financeira, distribuição de renda etc. Dessas segundas escolhas resultam, em interação com as condições herdadas e o cenário internacional, um certo estilo de desenvolvimento (ou a falta dele). Há relações inescapáveis entre as duas dimensões, mas as combinações possíveis entre elas são inúmeras, e dessa associação é que se entende melhor o sentido econômico de um governo.
Um dos dramas da economia brasileira desde os anos 1980 é que a agenda de prioridades raramente figurou no primeiro plano, ao contrário do que prevaleceu nas décadas anteriores. Mesmo depois de controlada a inflação em 1994, a urgência do curto prazo frequentemente se manifestava nas dificuldades cambiais, que condicionavam todo o resto.
A “instabilidade macroeconômica inibidora do desenvolvimento e da reflexão sobre ele”1 só seria temporariamente superada na segunda metade da década de 2000, com a retomada do crescimento, a melhora externa e o controle da inflação e das contas públicas. Abriu-se muito mais espaço para o debate sobre “desenvolvimentismo”, a estrutura produtiva, a distribuição e o planejamento. Olhado já com alguma perspectiva, aquele momento contrasta com a realidade vivida desde 2013, na qual o império da conjuntura volta a vigorar.
Do ponto de vista das políticas, no entanto, as relações entre as duas dimensões têm trajetória bem mais oscilante, em fases distintas.
No arranjo inicial do governo petista em 2003, a política macroeconômica manteve (ou aprofundou) os sinais da gestão anterior, priorizando a estabilidade e a conquista da “credibilidade”. Taxas de juros muito elevadas, superávits primários ampliados e apreciação contínua da taxa de câmbio conviveram (em situação de superioridade) com a construção gradual de uma estratégia que apostava na ampliação do mercado interno e no papel indutor do Estado – da qual os sinais mais evidentes eram as políticas sociais e o fortalecimento dos bancos públicos. Muito beneficiado pela conjuntura internacional, esse arranjo cumpriu seu papel e sofreu uma inflexão a partir de 2006.
Na gestão de Guido Mantega à frente da Fazenda, a política macro – principalmente a fiscal, e de maneira mais intensa durante a reação à crise internacional de 2008 – passou a estar mais sintonizada com os objetivos de longo prazo. O grande destaque desse segundo período é a elevação do investimento público, sustentáculo do PAC – em si um importante sinal da estratégia de longo prazo que foi mantida e se aprofundou, com o uso mais intenso dos bancos públicos e também da Petrobras.
A missão autodeclarada da terceira fase, no início do governo Dilma, era recuperar a competitividade, a produção e o investimento industriais, e para isso se escolheu mexer nos dois preços macroeconômicos “fora do lugar”: juros mais baixos, câmbio mais alto (com mais controle sobre esse último mercado). A redução nos preços de energia e as desonerações tributárias fizeram parte da receita, que visava essencialmente reduzir custos do setor privado e se deu em meio à menor expansão dos investimentos públicos já em 2011. A aposta não deu certo, e não apenas por razões conjunturais.2
A marca de uma quarta fase, a partir de 2013, é a tentativa de administração – custosa e ineficaz – do curto prazo, por meio da ampliação desmedida das desonerações e de outros expedientes não recomendáveis (“contabilidade criativa”, represamentos de tarifas etc.). As contas públicas sofreram o impacto dessas medidas, essencialmente pelo fraco desempenho das receitas. Não houve aqui mudança na estratégia de longo prazo – pelo contrário: foi explicitamente defendida na eleição de 2014 –, mas esta foi perdendo prioridade diante dos dilemas conjunturais e das pesadas críticas (sob o rótulo genérico de “nova matriz macroeconômica”) que passou a sofrer.
Em 2015, na quinta fase, a opção foi atender parte dessas críticas com um ajuste simultâneo em todas as frentes identificadas de desequilíbrios macro: correção de tarifas públicas, desvalorização cambial, elevação de taxas de juros e corte profundo nos investimentos públicos. Tal ortodoxia, desastrada, desorganizou o pouco que restava de dinamismo interno e foi incapaz de recuperar a confiança dos agentes privados (sua grande aposta), em meio à crise política e às incertezas jurídico-policiais da Lava Jato. Apesar de significar uma forte guinada macro, parece mais correto caracterizar o interrompido segundo mandato de Dilma como um momento de profundos impasses – e não de capitulação – no plano estrutural, que mais interessa aqui.3
Foi para resolver esses impasses que, do ponto de vista econômico, se construiu o governo Temer, a sexta fase da trajetória aqui descrita. O curto prazo está, uma vez mais, subordinado ao longo, mas com sinais e objetivos trocados. A política macro não tem como prioridade recuperar imediatamente o crescimento, o emprego ou as contas públicas. Nesse último aspecto, pelo contrário, vigorou inicialmente o “keynesianismo fisiológico” para atender às demandas parlamentares, e agora se enfrenta o desafio de cumprir mesmo as metas mais folgadas. Apenas no campo inflacionário – contando com nova rodada de apreciação cambial e taxas reais de juros esdrúxulas diante da profundidade da recessão – é que os resultados aparecem.
III.
Em entrevista ao Valor Econômico (12 dez. 2016), o presidente do Ipea, Ernesto Lozardo, pedindo paciência em relação ao crescimento, alertava: “A imprensa está muito no dia a dia, sem ainda ter uma noção de qual [é] a proposta do governo Temer. [É] construir uma economia voltada ao mercado, com pouca interferência do governo no processo de crescimento”. Do ministro da Fazenda, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social ouviu mensagem ainda mais nítida em 7 de março de 2017: a curto prazo, o governo estaria fazendo o possível, mas o importante seria o compromisso com a redução do papel do Estado, a criação de um ambiente favorável aos negócios e reformas estruturais que aumentariam a produtividade do país.4
Entre essas reformas, muito destaque tem sido dado ao seu perverso conteúdo social, mas a lógica econômica também é nítida. O primeiro e mais importante “avanço” nessa direção foi a PEC 55/241, que congelou em termos reais a despesa pública pelos próximos vinte anos, constitucionalizou a opção por não fazer política fiscal anticíclica e, entre muitos outros entraves, representará sérias restrições para os sistemas públicos de assistência, saúde e educação. Ainda não aprovada (no momento em que se concluía este texto), a reforma trabalhista atende aos pleitos recorrentes dos empresários por um mercado de trabalho mais “flexível” e reverte grande parte da CLT, em acréscimo à permissão para a terceirização ampla. Como a época também parece ser de pouca prudência (ou pudor) nos pronunciamentos, o presidente da Câmara dos Deputados aproveita para questionar a existência da Justiça do Trabalho.
Além da revogação (acelerada e com pouco debate) dos princípios que justificaram o adjetivo “cidadã” à Constituição de 1988, o objetivo econômico é simples: reduzir o custo do trabalho – o que, aliás, também tem sido feito pelo desemprego elevado. Justamente um dos elementos centrais da articulação entre crescimento e distribuição do modelo anterior está sendo inviabilizado de maneira permanente. Tais relações dificilmente seguiriam virtuosas indefinidamente, e não se trata de considerar perfeitas as atuais estruturas de proteção social ou a legislação trabalhista, mas certamente o que se está fazendo não é aprimorá-las.
Bem mais discutida e já desidratada em relação à draconiana proposta original, a reforma da Previdência é orientada exclusivamente por seus impactos contábeis esperados para o longo prazo, mas seus custos parecem bem mais próximos da realidade de todos. O caráter decisivo que está sendo atribuído à difícil aprovação de alguma reforma nessa área é outra indicação de qual é, de fato, a missão econômica desse governo.
Há, porém, outra face das reformas liberalizantes em curso, menos discutida fora dos meios especializados – inclusive porque não passam por votações no Congresso – e cujos efeitos são mais graduais. Elas alteram instrumentos historicamente importantes de atuação do Estado brasileiro, que também foram fundamentais para a estratégia gradualmente construída nos governos Lula e Dilma. Dois casos se destacam entre vários outros.
Em um deles, a Petrobras não só vai abrindo mão de parcelas importantes da exploração do pré-sal em favor de empresas estrangeiras, como também vê limitado o uso de seu poder de indução. A despeito dos problemas, a política de conteúdo nacional era um dos principais instrumentos para transformar a exploração de uma riqueza natural em desenvolvimento produtivo e tecnológico nacional. Mas virou um símbolo de tudo que deve ser evitado, na mudança de estratégia explicitada pelo ministro de Minas e Energia, Fernando Bezerra Coelho Filho, para investidores em Londres, em outubro de 2016: “A Petrobras não é uma agência de desenvolvimento, é uma empresa de petróleo. Deve tomar decisões que façam sentido para ela e seus acionistas”.
Em outra frente, o papel assumido pelos bancos públicos também vai sendo revertido. O programa de fechamento de agências do Banco do Brasil, a devolução antecipada de R$ 100 bilhões pelo BNDES ao Tesouro Nacional e a substituição da TJLP pela TLP (mais próxima dos parâmetros de mercado) nos empréstimos do Banco são alguns exemplos nessa direção. A ligação dessas mudanças com o crescimento e o emprego é sempre, na argumentação de seus defensores, indireta – assim como no caso das reformas previdenciária, trabalhista, privatizações, terceirização etc. Mesmo a liberação de saques do FGTS também pode ser lida mais como uma medida estrutural do que conjuntural nesse campo. Na conclusão de um grande banco, seus impactos seriam mínimos sobre o consumo, mas altamente bem-vindos por “reduzir a ineficiência na alocação de recursos que aflige o país, por conta de uma série de rigidezes e preços artificiais…”.5
IV.
Ainda seria possível apontar os esforços afoitos (um tanto fora de moda nos países centrais) para a abertura unilateral da economia, principalmente nos planos da propriedade e do comércio. Mas nem é preciso, pois a missão do governo Temer já está mais do que clara: aproveitar a excepcional correlação de forças e o “anestesiamento” da sociedade (incluindo alguns de seus freios e contrapesos) para alterar rápida e radicalmente as condições estruturais de funcionamento da economia. Provavelmente, de tudo isso resultará um protagonismo muito maior das forças de mercado e uma capacidade muito menor de orientar o desenvolvimento na direção de uma sociedade menos desigual e mais civilizada.
O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad qualificou recentemente de “revolucionário” (sem nenhum sentido positivo) esse processo, e talvez o único paralelo nacional que se possa fazer seja com as reformas levadas a cabo entre 1964 e 1966. Naquele curto intervalo, combinou-se no Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg) uma política macroeconômica ortodoxa (sem grande êxito a curto prazo) com uma rápida e intensa construção das bases estruturais para o surto de crescimento posterior, nos campos tributário, financeiro e do tratamento dado ao capital estrangeiro.
Há muitas razões para duvidar da capacidade de o arranjo atual produzir por si só crescimento e emprego, mesmo a longo prazo. Não pairam dúvidas, no entanto, sobre o desprezo da estratégia em relação ao modo como é percebida pela sociedade. As repetidas declarações sobre “preferir ser impopular a populista” ou o conselho do publicitário para “aproveitar a impopularidade para fazer todo o mal necessário” tornam um pouco mais sombrio o paralelo com o início do período ditatorial e levantam duas questões que parecem fundamentais na encruzilhada em que se encontra o país.
A primeira delas tem sido chamada de “paradoxo de Temer”: quanto mais impopular fica, mais depende do apoio das forças “do mercado” para se sustentar, e estas demandam apenas mais reformas na linha aqui descrita. Como parte importante das mudanças depende do voto dos congressistas, que pensam em se reeleger, aumentam as resistências e a ânsia em acelerar o processo. Decide-se aqui, portanto, o verdadeiro êxito ou fracasso do governo Temer.
A segunda diz respeito ao processo eleitoral agendado para 2018. Se ele se realizar e se forem permitidas candidaturas que pretendam reverter o rumo atual, velhos dilemas se recolocam. No campo econômico, trata-se da mesma questão fundamental abordada desde o início deste texto: como desenhar alternativas que combinem a urgente retomada do crescimento e do emprego a curto prazo com a reconstrução de uma estratégia de longo, oposta à que o governo Temer representa?
Para essas escolhas, os erros e acertos do passado recente importam muito, mas as condições objetivas do momento atual também são inescapáveis. É justamente quando a conjuntura é opressiva e asfixiante que pensar estrategicamente se mostra mais necessário.
*André Biancarelli é professor e diretor associado do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da mesma instituição.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 118 – maio de 2017}