O impasse da direita na América Latina
Há muito tempo os conservadores latino-americanos procuram conforto na teoria dos ciclos. Depois de um período de domínio da esquerda, viria outro, que lhes ofereceria a possiblidade de aplicar seu programa. Mas a realidade por vezes diverge da teoria. De volta ao poder em muitos países da região, a direita liberal encontra-se ameaçada por uma profunda insatisfação
Em 2016, a revista econômica mexicana Expansión deu um suspiro de alívio: “América Latina: o pêndulo volta para a direita”.1 A Argentina acabava de eleger o empresário Mauricio Macri; o industrial Pedro Kuczynski se mudava para o palácio presidencial peruano; e, no Brasil, Michel Temer havia conseguido tirar o PT do poder. O campo conservador continuou se alastrando: em 2017, com a reversão do equatoriano Lenín Moreno, eleito com a promessa de continuar a política esquerdista de seu antecessor, Rafael Correa, antes de fazer o contrário; e em 2018, com a eleição do empresário chileno Sebastián Piñera.
Por um tempo, a direita latino-americana respirou confiança. Durante a campanha que levou Macri ao poder, um jornalista perguntou a ele sobre inflação: como ele planejava lutar contra esse flagelo que frequentemente afeta a economia local? O candidato revirou os olhos com um longo suspiro: obviamente, teria preferido uma pergunta mais digna de suas habilidades. No fim, concordou em responder: “Inflação é a demonstração de uma incapacidade de governar. Sob minha presidência, nem ouviremos falar sobre isso”.2 Quatro anos depois, Buenos Aires apresentava o nível mais alto de erosão monetária na América Latina depois da Venezuela (mais de 50% em 2019). A pobreza está aumentando; a dívida está fora de controle; o crescimento, a meio mastro. Durante a eleição de 2019, Macri entregou a faixa presidencial sob a constatação do fracasso.
“Governo de luxo”
A situação não é muito diferente em outros países. Equador,3 Chile,4 Colômbia, Bolívia:5 alguns anos depois da posse, ou apenas meses, líderes conservadores enfrentam o maior desafio da história recente da América Latina – ainda mais notável por mobilizar grandes setores da classe média. Incapazes de controlar os incêndios na região, os governos lançaram uma contraofensiva repressora como não se via desde o fim das ditaduras. Na Colômbia, após manifestação em 21 de novembro de 2019, o presidente Iván Duque impôs toque de recolher em Bogotá e Cali. No Equador, mais de uma dúzia de pessoas morreram em operações de garantia da lei e da ordem entre 3 e 13 de outubro de 2019.6 Desde a derrubada de Evo Morales, em novembro de 2019, militares do Exército e policiais permanecem em ronda nas principais cidades bolivianas. No Chile, são tantos os casos de morte, tortura e estupro nas mãos das Forças Armadas que uma investigação foi aberta contra Piñera por crimes contra a humanidade. E a calma das ruas brasileiras pode ser explicada menos pelo entusiasmo do país em relação à austeridade imposta pelo presidente Jair Bolsonaro do que pela decisão do governo de garantir imunidade aos soldados que abrem fogo contra manifestantes.7
Como explicar uma reviravolta tão rápida? Para Piñera, o caso é simples: “Há uma mão estrangeira trabalhando” (26 dez. 2019). Não é necessário precisar qual mão: se ela brindasse com um copo, ele conteria vodca. Em janeiro de 2020, o Departamento de Estado chileno endossou a análise: publicou documentos sugerindo que agentes russos estão trabalhando para desestabilizar a região, principalmente via Twitter. Pouco suspeito de russofilia, o New York Times confessou suas dúvidas: “As análises fornecidas […] não provam que as contas que alimentaram as mobilizações sul-americanas estejam ligadas ao governo russo”.8
A América Latina parece menos uma marionete cujas cordas são manuseadas por Moscou do que um barco à beira-mar: só que em uma costa abandonada pelo mar. Em meados da década de 2000, diante do forte crescimento chinês, governos progressistas se beneficiaram de uma onda de liquidez. Poderosa, a onda encobriu antagonismos sociais, sem removê-los. A maré subiu, levando junto todos os barcos; alguns estavam entrando em alto-mar pela primeira vez. Quinze anos depois, o refluxo. O enfraquecimento da demanda por matérias-primas baixou a maré, fenômeno que foi ainda mais acentuado pela austeridade da direita. Pouco a pouco, emergem dois monstros. Ninguém desconhecia sua existência, inclusive quando a esquerda governava; mas, em tempos de abundância, eles permaneceram escondidos nas profundezas. O nome deles? “Corrupção” e “desigualdade”, duas palavras que surgem na boca de todos os manifestantes.
Corrupção? No Brasil, o golpe parlamentar orquestrado pela direita tradicional – que tirou do poder a presidenta Dilma Rousseff em 2016 – alastrou-se por toda a classe política e facilitou a eleição de Bolsonaro. Apesar de sua promessa de acabar com a corrupção da vida política brasileira, o cavaleiro branco da extrema direita está, por sua vez, sob suspeita de implicação em vários episódios. No Peru, Kuczynski, que apelidou sua equipe de “governo de luxo”, renunciou em 2018, acometido por escândalos.9 Está, agora, definhando na prisão, destino que seu antecessor, Ollanta Humala (2011-2016), conhecia pelas mesmas razões e que os dois presidentes anteriores do Peru se certificaram de evitar – fugindo, no caso de Alejandro Toledo (2001-2006), ou cometendo suicídio, no de Alan García (2006-2011).
Xeque-mate
Desigualdades? Em um relatório publicado em 2014, a ONG Oxfam constatou que, após ter atingido seu nível mais elevado em 2000, “as desigualdades diminuíram entre 2002 e 2011” pela ação de governos que “favoreceram medidas progressistas, como o aumento de investimento público em saúde, educação, aposentadoria, proteção social, emprego e defesa do salário mínimo”. E concluiu que “a experiência latino-americana mostra que a intervenção pública pode ter um impacto determinante sobre as desigualdades”.10
Ao mesmo tempo, o Financial Times organizava uma recepção no Lancaster Palace, em Londres, para celebrar um momento decisivo em sintonia com os tempos: o nascimento da Aliança do Pacífico, formada por Chile, Peru, Colômbia e México (governados à direita) em torno de um programa que evocava um manual neoliberal dos anos 1990. Na galeria, o jornalista John Paul Rathbone luta para conter sua alegria: “Enquanto alguns enterraram o consenso de Washington11 na região, outros países se atrevem a dizer ‘pare’ […] e novamente defendem a retirada do Estado”. Abertura da economia, abolição de tarifas alfandegárias, integração de centros financeiros: os participantes expõem seus projetos enquanto recitam seu catecismo. “Como jornalista, raramente tive a oportunidade de participar de uma conferência sobre a América Latina onde as pessoas compartilhavam a evidência de suas crenças liberais. Sem dúvida, é um desenvolvimento a ser comemorado”, conclui Rathbone.
Alguns anos depois, as promessas de Lancaster orientam as políticas governamentais na maioria dos países-membros. O antigo operador do mercado financeiro e atual ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, pretende aproveitar a eleição de Bolsonaro para “libertar em seu país o poder da ideologia do livre-comércio em que foi treinado na ‘Universidade de Chicago na década de 1970’”. Comentando o trabalho do general chileno Augusto Pinochet na frente econômica, ele explica: “Foi uma transformação magnífica. […] Thatcher e Reagan, eles, sim, compreenderam bem”.12
O único problema é que o presidente dos Estados Unidos não se chama mais Ronald Reagan, mas Donald Trump. As críticas ao livre-comércio foram um de seus principais cavalos de batalha durante a campanha que o levou ao poder. Quando Trump afirma “America first”, não se refere à região, e sim aos Estados Unidos. Em 2 de dezembro de 2019, um de seus tuítes frustrou as esperanças de seus seguidores no Sul: “O Brasil e a Argentina têm sofrido desvalorizações maciças de suas moedas há algum tempo, o que não é bom para nossos agricultores. Como resultado, decidi restaurar as tarifas de aço e alumínio que os Estados Unidos importam desses países. Com efeito imediato”. Os conservadores latino-americanos esperavam a salvação, mas Trump lhes atirou uma bigorna.
Quanto aos mercados financeiros, a simpatia deles pelos líderes liberais desaparece assim que seus interesses são ameaçados. Esperava-se que os investidores facilitassem a vida de Macri irrigando de capital a economia argentina quando ela corresse risco de secar, a partir de 2017. Na Bolsa de Valores, contudo, a ideologia importa menos que o retorno do investimento: quando um empresário no poder faz os mercados perderem dinheiro, nada o distingue de um sindicalista. Sem o apoio de Washington ou Wall Street, a caixa de ferramentas neoliberais se esvazia de repente.
Entre 2014 e 2020, a América Latina registrou a menor taxa de crescimento desde 1950: 0,5%, contra cerca de 2,5% na década de 1980, conhecida como “década perdida”. Enquanto a população aumentou, a riqueza per capita diminuiu 4% entre 2014 e 2019. A pobreza está crescendo, a desigualdade está começando a se elevar novamente e as classes médias que surgiram na década de 2000 viram seu padrão de vida despencar.
Não basta, porém, os indicadores econômicos despencarem para as pessoas perderem suas memórias. “O progresso social obtido pelos governos progressistas e de esquerda, embora geralmente moderado, representa um grande problema para a direita no poder hoje”, observa o historiador brasileiro Valter Pomar. Decorre daí, sem dúvida, o empobrecimento da classe média e seu medo de perder status. “Na década de 1990, os líderes conservadores conseguiram fazer as classes médias aceitarem o neoliberalismo – do qual elas não seriam as primeiras vítimas –, explicando que era um passo necessário para a democratização de uma região que saía das ditaduras”, continua Pomar. As urnas para nós, o bisturi para os outros, em suma. “Mas a situação mudou. Hoje, o neoliberalismo não apenas mergulha todos na pobreza, como também não tem mais contrapartidas a oferecer.” O bisturi se transformou em um helicóptero; as urnas, em cassetetes.
Deve-se concluir que a atual crise beneficiará os partidos de esquerda? Nada é menos certo: nas ruas, os manifestantes cantam mais slogans “saiam todos” do que “A Internacional”. A América Latina estaria, portanto, em uma situação de xeque-mate. À direita, os herdeiros de um neoliberalismo obsoleto, economicamente ineficaz e desprovido de legitimidade. À esquerda, grupos às vezes desacreditados por escândalos de corrupção, muitas vezes exaustos pelo exercício do poder e geralmente acusados de terem despertado tanto frustração quanto esperança, tentando mudar o mundo sem realmente transformá-lo.
Partidos de esquerda estimulados pelas ruas? A situação pode parecer esperançosa. Comentando os reveses dos regimes hostis a ele, o primeiro-secretário do Partido Comunista Cubano, Raúl Castro, observou: “A região parece uma planície seca. A menor faísca poderia causar um incêndio que ameaça os interesses nacionais de todos”.13
Na Bolívia, bem como em alguns setores do governo Bolsonaro, uma direita que permaneceu discreta até agora acaba de emergir. Ultrarreligiosa, reacionária, anti-intelectual, ela apoia sua visão de mundo nas sagradas escrituras. A necessidade de convencer a população sobre as virtudes do mercado foi varrida do mapa: agora, trata-se de caçar hereges. O uso da força não é mais uma admissão de fraqueza, mas um método eficaz de restaurar a ordem, limpar os estábulos de Áugias. Uma corrente que carrega o mesmo tipo de ideias acaba de ganhar as eleições legislativas peruanas. O sistema moribundo que produz desigualdade e corrupção vai se voltar aos fanáticos para sobreviver?
Renaud Lambert é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 Yussel González, “América latina: el péndulo regresa a la derecha” [América Latina: o pêndulo volta para a direita]. Expansión, México, 1º set. 2016.
2 “Macri candidato: ‘La inflación es algo simple de resolver’” [Macri candidato: “A inflação é algo simples de resolver”], YouTube, 16 jul. 2016.
3 Ler Franklin Ramírez Gallegos, “En Équateur, le néolibéralisme par surprise” [No Equador, o neoliberalismo chega de surpresa], Le Monde Diplomatique, dez. 2018.
4 Ler Luis Sepúlveda, “Chili, l’oasis asséchée” [Chile, o oásis secou], Le Monde Diplomatique, dez. 2019.
5 Ler “En Bolivie, un coup d’État trop facile” [Na Bolívia, um golpe de Estado fácil demais], Le Monde Diplomatique, dez. 2019.
6 “¿Vuelve el protagonismo de los militares en América latina?” [Volta o protagonismo dos militares na América Latina?], RT, 19 nov. 2019.
7 Michael Scott e Andres Schipani, “Brazil finance minister sticks doggedly to reform path” [Ministro da Economia brasileiro pega pesado no caminho das reformas], Financial Times, 11 nov. 2019.
8 Lara Jakes, “Russia sows online fakes in South America” [Rússia figura em fake news na América Latina], The New York Times, 21 jan. 2020.
9 Notadamente ligados ao caso Odebrecht, empresa brasileira da construção civil e infraestrutura que pagava propina em todos os cantos da América Latina. Ler Anne Vigna, “Les ramifications du scandale Odebrecht” [As ramificações do escândalo Odebrecht], Le Monde Diplomatique, set. 2017.
10 “Even it up” [Iguale], Oxfam, Oxford, 2014.
11 Ler Bernard Cassen, “Dans l’ombre de Washington” [Na sombra de Washington], Le Monde Diplomatique, set. 2000.
12 Michael Stott e Andres Schipani, op. cit.
13 Citado pelo ministro das Relações Exteriores de Cuba em “Nuestra América ante la arremetida del imperialismo y de las oligarquías” [Nossa América diante da arremetida do imperialismo e das oligarquias], Minrex, Havana, 3 dez. 2019.