O impasse no processo de regulação do ambiente digital no Brasil
O ano de 2023 parecia ser de avanço no marco legal sobre plataformas digitais, mas nada andou no Congresso e 2024 marca uma volta à estaca zero. Veja em novo artigo do especial “Algo de novo sob o sol? Direito à Comunicação no primeiro ano do atual governo Lula”
Passadas as eleições de 2022 e havendo a troca de governo, o ano de 2023 parecia aquele no qual o processo de regulamentação das plataformas digitais finalmente avançaria e teríamos, enfim, uma proposta aprovada pelo Poder Legislativo. Não foi, entretanto, o que ocorreu. E em que pese discordâncias sobre medidas a serem adotadas, até mesmo as proposições consensuais entre amplos setores da sociedade acabaram paralisadas.
Independentemente de ter sido “morte matada” ou “morte morrida”, o fato é que a principal iniciativa sobre o tema, o Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como “PL das Fake News”, travou na Câmara dos Deputados. No início de 2024, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Casa, lançou a pá de cal ao afirmar que aquele projeto se tornara inviável, e que um novo texto deveria ser formulado. “O PL 2630/20 está fadado a ir a lugar nenhum, não tivemos tranquilidade do apoio parlamentar para votar com a maioria”, declarou Lira, em coletiva de imprensa em abril deste ano.

Ilustração: Intervozes
“A pressão foi horrível, desumana e mentirosa”
A frase acima é também do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, referindo-se à atuação das grandes empresas de tecnologia (big techs) contra a aprovação do PL 2630. Após ser aprovado no Senado em 2020, o PL passou por várias comissões na Câmara dos Deputados e sofreu diversas alterações. Em março de 2023, a Câmara realizou audiências públicas para debater o texto, ouvindo especialistas, representantes das plataformas digitais e organizações da sociedade civil, articulando um texto que pudesse avançar, sob a relatoria do deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP).
No início de maio do ano passado havia a perspectiva de que a matéria fosse à votação no plenário da Casa, mas o presidente acabou por retirá-la da pauta alegando não haver condições para que pudesse ser apreciada. Foi quando proferiu, em entrevista, a frase sobre a atuação das empresas de tecnologia contra o andamento do processo.
Sobre essa investida, a Polícia Federal concluiu, no inquérito que investigou a campanha contra o PL 2630, que o Google e o Telegram abusaram do seu poder econômico nas campanhas que fizeram contra o projeto de lei. “Diante das evidências apuradas durante a investigação dos incidentes em questão, é observável que as grandes empresas de tecnologia, nomeadamente Google Brasil e Telegram Brasil, adotaram estratégias impactantes e questionáveis contrárias à aprovação do Projeto de Lei nº 2.630/2020”, disse o delegado Fábio Fajngold na conclusão do inquérito, no início de 2024.
Outro posicionamento contrário ao projeto teve como autores parlamentares da bancada de oposição, que alegavam que o referido projeto atacaria a liberdade de expressão e criaria censura política, argumento recorrente contra qualquer iniciativa que procura criar mecanismos de combate à desinformação.
“O PL 2630 avançava em questões importantes, como a obrigação de transparência das plataformas no que diz respeito à moderação de conteúdos a partir de recomendações algorítmicas, sobre como tomam decisões sobre exclusão ou manutenção de um conteúdo e, principalmente, sobre como são direcionados os conteúdos pagos como publicidade e impulsionamento”, aponta Ana Mielke, professora, pesquisadora e integrante da coordenação executiva do Intervozes.
Além de garantir direitos aos usuários quanto às possíveis mediações dos conteúdos postados, o PL também criava a obrigação de relatórios periódicos, em que as plataformas deveriam prestar contas de suas ações à sociedade. “O PL não abarcava tudo, mas era um primeiro passo nesse debate da regulação das plataformas digitais, que, sabemos, não se encerra na regulação de processos, precisa ser vista também do ponto de vista econômico”, completa Ana Mielke.
Em relação a esse aspecto econômico, o professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e especialista em economia política da comunicação, César Bolaño, lembra que, do ponto de vista da regulação, trata-se de um conjunto complexo de empresas que atuam sempre no campo da comunicação. Para ele, “a regulação certamente deveria levar esse fato em consideração, mesmo porque o modelo de negócios das principais delas é publicitário. Em todo caso, dada a complexidade do fenômeno, diferentes áreas das políticas de regulação econômica deveriam ser consideradas, desde a regulação do trabalho até a da concorrência, passando pelo direito dos consumidores”.
Ana Mielke destaca que as discussões em torno do PL 2630 aconteceram ao longo de mais de três anos, com ampla participação social em audiências públicas e reuniões com os setores possivelmente afetados. “Esperamos que se o processo for mesmo reiniciado, o que ainda não está posto de fato e que, caso não seja, significaria uma perda enorme do acúmulo já construído até aqui, ele precisa garantir ampla participação social. Não vamos permitir que, havendo novo projeto, sua tramitação se dê de forma açodada, sem amplo debate público”, enfatiza.
A representante do Intervozes destaca ainda a demora de Lira em articular o Grupo de Trabalho, o que “demonstra total falta de compromisso do presidente da Câmara em avançar no processo de regulação das plataformas”. O deputado anunciou a composição do grupo de trabalho, com vinte parlamentares, no último dia 5 de junho, quase dois meses após o anúncio de criação. Em nota, a Coalizão Direitos na Rede, que reúne mais de cinquenta entidades em defesa dos direitos digitais, manifestou a preocupação de que o GT não leve em conta o acúmulo de quatro anos de discussão sobre o tema.
A composição do grupo de trabalho anunciado, entretanto, sinaliza que a construção do Projeto de Lei seguirá conflituosa. Na avaliação de Ramênia Vieira, também da coordenação executiva do Intervozes e que acompanha de perto as mobilizações no Congresso Nacional, “a composição do GT preocupa, pois tem vários parlamentares propagadores de desinformação e poucos parlamentares do campo progressista que realmente estavam envolvidos com o debate anterior”.

Uma queda de braço global
Considerada um dos principais marcos regulatórios para plataformas digitais a nível mundial, a Lei de Serviços Digitais da União Europeia (DSA), que começou a vigorar em novembro de 2022, estando aplicável em toda a União Europeia desde fevereiro deste ano, foi alvo das big techs desde o início das discussões em 2020. Segundo o Corporate Europe Observatory, o movimento de lobby europeu foi liderado por Google e Meta, com a participação de outras empresas como Amazon, Apple, Microsoft e Spotify. Algumas das ações identificadas incluíam colocar instituições da UE umas contra as outras, obter informações confidenciais por meio de reuniões e oferecer jantares privados com executivos das empresas a parlamentares.
Em outubro de 2020, o jornal britânico Financial Times revelou um plano do Google para desestabilizar o avanço do DSA. Em uma iniciativa de dois meses, a gigante norte-americana tentou aumentar a oposição à regulamentação europeia, reconfigurando a narrativa política e fomentando conflitos internos na Comissão Europeia. Ação essa que se assemelha àquela que é alvo de investigação aqui no Brasil ocorrida em 2023.
Em outras partes do mundo, o cenário é semelhante. A Austrália foi alvo de pressão após aprovar um projeto de regulação que visava a contrapartida financeira das empresas de tecnologia sobre os conteúdos jornalísticos produzidos por terceiros e distribuídos por elas, incluindo a ameaça de suspensão da circulação de notícias entre suas plataformas. Tática semelhante foi utilizada nos Estados Unidos e no Canadá, que também procuram criar mecanismos regulatórios.
Para a produção deste texto, enviamos ao grupo Meta três questões: 1) Quais as principais objeções que o grupo tinha contra o então PL 2630?; 2) Como o Meta avaliou a fala de Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, ao dizer que a pressão das big techs contra o projeto foi “horrível, desumana e mentirosa?”; e 3) O grupo é a favor que o Legislativo brasileiro trabalhe alguma regulamentação sobre o funcionamento das plataformas digitais no país? Se sim, quais aspectos julga relevantes de serem regulamentados? Se não, por quê?
Passado um dia, recebemos o retorno da assessoria de imprensa do grupo com os dizeres: “Obrigado pelo seu contato, mas a Meta não vai comentar sobre o assunto”.
A criação de leis que regulamentem o ambiente digital cabe ao Legislativo. O presidente Lula, entretanto, sinaliza desde o início de seu mandato a necessidade de o país avançar rumo à criação de um marco regulatório. Na primeira mensagem enviada ao Congresso Nacional como presidente, em fevereiro de 2023, o chefe do Executivo afirmou que “é preciso fortalecer a legislação, dando mais instrumentos ao Sistema de Justiça para atuação junto às plataformas digitais no sentido de garantir a neutralidade da rede, a pluralidade e a proteção de dados, bem como coibir a propagação de mentiras e mensagens antidemocráticas ou de ódio”.
A Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) também criou estruturas sobre o tema, como a Secretaria de Políticas Digitais, sob a qual há coordenadorias de defesa da liberdade de expressão, enfrentamento à desinformação, promoção de educação midiática, defesa de direitos na rede e promoção de pluralismo e diversidade.
No plano internacional, o Brasil reforça a necessidade de adoção de medidas pelos demais países e em fóruns de entidades internacionais. No discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU, em 19 de setembro de 2023, Lula afirmou “que os mesmos direitos que as pessoas têm off-line também devem ser protegidos on-line. Aguardamos ansiosamente a elaboração de um Pacto Digital Global para eliminar as divisões digitais e acelerar a realização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”.

Articulações internacionais
Mas se há o poderoso lobby das big techs contra iniciativas de regulação de suas atividades, organismos multinacionais e a sociedade civil também tentam construir parâmetros que possam orientar o processo.
Em fevereiro de 2023, a Unesco realizou a Conferência por uma Internet Confiável. Ocorrido em Paris, o evento reuniu mais de 4 mil participantes entre representantes de governos, da sociedade civil, da academia e comunicadores. Foi a primeira conferência global sobre integridade da informação e liberdade de expressão nas plataformas de redes sociais promovida pela agência das Nações Unidas.
A delegação do governo brasileiro foi chefiada por João Brant, secretário de Políticas Digitais da Secom, que leu uma carta do presidente Lula na qual ele alerta que “a comunidade internacional precisa, desde já, trabalhar para dar respostas efetivas a essa questão desafiadora de nosso tempo. Precisamos de equilíbrio. De um lado, é necessário garantir o exercício da liberdade de expressão individual, que é um direito humano fundamental. De outro lado, precisamos assegurar um direito coletivo: o direito de a sociedade receber informações confiáveis, e não a mentira e a desinformação”.
Meses depois, em novembro, a entidade lançou um plano de ação para lidar com esse desafio, “apoiado por uma pesquisa de opinião global que reforça a necessidade de ação urgente”, segundo nota da organização. A proposta foi elaborada a partir de mais de 10 mil contribuições de 134 países e resultou na proposição de sete princípios norteadores.
Esses princípios envolvem em primeiro lugar um processo de tomada de decisão em que o impacto nos direitos humanos seja considerado em todas as fases e por todas as partes interessadas. O estabelecimento de reguladores públicos e independentes em todo o mundo, criando uma rede ampla para evitar que as empresas digitais tirem partido das disparidades entre as regulamentações nacionais, também é proposto pela Unesco.
Outro princípio é a moderação de conteúdo tornada viável e eficaz em grande escala, em todas as regiões e em todos os idiomas. Além disso, a Unesco sugere que a responsabilização e a transparência sejam estabelecidas nos algoritmos dessas plataformas, que muitas vezes são orientados para maximizar o engajamento em detrimento de informações confiáveis.
Por fim, a agência pede por mais ações educativas e de treinamento para os usuários e medidas mais fortes, tanto das plataformas, quanto dos órgãos reguladores, em momentos particularmente sensíveis, como eleições e crises.
Na formulação do documento, o Intervozes foi signatário de uma contribuição, conjuntamente com as organizações Datos Protegidos (Chile), Idec (Brasil), Tedic (Paraguai), Hiperderecho (Peru), Ipandetec (Panamá), Proledi (Costa Rica), CAinfo (Uruguai), Datysoc (Uruguai) e Observacom (Regional), resultante do fortalecimento da articulação latino-americana sobre o tema.
Rodolfo Vianna é jornalista, doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem e associado ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.