O Japão fora dos trilhos - Le Monde Diplomatique

Economia – Oriente

O Japão fora dos trilhos

por Namihei Odaira
5 de abril de 2009
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Dez anos após a primeira crise, e quando parecia estar em condições de se reerguer, o Japão afundou novamente. As fábricas de automóveis, símbolo de uma economia voltada ao comércio exterior, são as mais afetadas: 28 mil pessoas perderam seus empregos no setor desde janeiro de 2009

Oito de junho de 2008. Numa bela tarde ensolarada, um homem de cerca de 20 anos de idade esquadrinha as ruas abarrotadas do bairro de Akihabara, epicentro da cultura popular em Tóquio. Numerosos nativos e turistas ali estão para observar aqueles que vêm fantasiados com roupas de super-heróis de mangá ou de animê (filmes de animação). Um domingo tranquilo como qualquer outro, até o momento em que aquele jovem sacou um punhal e atingiu 17 pessoas. Sete morreram e outras dez ficaram gravemente feridas. O país entrou em estado de choque.

Como sempre, os especialistas explicam: “O Japão está se tornando uma potência criminógena [sic]. Para evitar que isso se reproduza, é importante reforçar as medidas de segurança”1. Todavia, desde meados dos anos 1950 o número de crimes desse tipo no país só vem diminuindo, e a reputação do Japão como um porto seguro parece até hoje intocada. De fato, o homem que decidiu matar seus compatriotas de modo selvagem, num domingo à tarde, no bairro que simboliza a alegria de viver, não se reconhecia mais nessa sociedade. “Queria matar qualquer pessoa”, declarou ele no momento de sua prisão, incapaz de apresentar outra justificativa para o ato.

Semanas antes, esse jovem empregado temporário tinha publicado, em sua página na Internet, várias mensagens em que exprimia o medo de perder o emprego e de ser abandonado. Ele temia o confronto com uma realidade da qual inúmeros japoneses tentam escapar se refugiando no universo virtual. Um mal-estar experimentado por parte cada vez maior da população diante da precariedade das condições de trabalho e da acentuação das desigualdades num país onde, há apenas 30 anos, mais de 90% dos habitantes julgavam pertencer à classe média (chûryû)2.

A população então se mobilizava em torno de um objetivo comum: o de se reintegrar ao clube das grandes potências econômicas. Esse sentimento de pertencimento propiciou, na época, uma inacreditável estabilidade política e social. O Estado, a empresa, a escola e a família serviam de referência para os indivíduos, e, por isso, era natural que cada japonês seguisse o caminho que lhe era traçado.

Ninguém estava preparado para viver os transtornos dos anos 1990. Nem o governo nem as empresas esperavam ver o “modelo japonês” se desagregar de modo tão violento após o estouro da bolha financeira – que, aliás, coincidiu com o esfacelamento do bloco comunista. Em apenas alguns meses, a economia se fragilizou, o que repercutiu nas relações internacionais do país.

À época de estabilidade sucedeu um período de caos que provocou um trauma de grande amplitude. A crise se traduziu pelo enfraquecimento do sistema bancário no momento em que os bancos nipônicos figuravam no topo das classificações mundiais. As empresas não tardaram a demitir em massa um quadro inteiro de funcionários que havia se entregado, de corpo e alma, às corporações.

Pós-Guerra Fria

No domínio geopolítico, o Japão, aliado exclusivo dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, percebeu que sua relação privilegiada com Washington não mais lhe protegia dos tremores internacionais. O país do Sol nascente devia se afirmar na cena mundial no exato momento em que sua economia cambaleante o enfraquecia. O barco estava à deriva.

Agora, dez anos após essa primeira crise, e quando parecia estar em condições de se reerguer, o Japão afundou novamente. Seu Produto Interno Bruto (PIB) diminuiu em 12,7%. Essa queda se explica pela diminuição brutal das exportações: 45,7% entre janeiro de 2008 e janeiro de 20093. “As indústrias exportadoras japonesas foram as grandes beneficiárias da boa conjuntura mundial. Agora que a crise ganhou todo o planeta, são elas que mais sofrem”, observa Ryutaro Kono, economista-chefe da BNP Paribas em Tóquio4.

As construtoras de automóveis, símbolo de uma economia voltada ao comércio exterior, são as primeiras vítimas. Beneficiada um ano atrás, a Toyota reconheceu um déficit de 450 bilhões de yens (3,4 bilhões de euros ou 10,4 bilhões de reais) no ano fiscal que termina no fim de março de 2009, e anunciou mais de 4 mil demissões. No total, 28 mil pessoas perderam seus empregos no setor desde o início do ano, situação semelhante à da área de eletrônica.

No fim de janeiro, a taxa de desemprego alcançou 4,1%, e calcula-se que ultrapassará a marca dos 6% até o fim do ano5. Um número pequeno se comparado à de outras nações desenvolvidas, mas que, num país onde a regra era o emprego quase pleno, é tão difícil de aceitar quanto a pauperização da sociedade.

As desregulamentações postas em prática para resolver a crise precedente são um entrave para a resolução das dificuldades atuais. “Não há mais nada neste país, é um país morto”, afirma um personagem do romance “Kibo no kuni no ekusodasu”6, do escritor Ryû Murakami, ilustrando o estado de espírito que reina no seio da juventude japonesa. Nesse livro, Murakami imagina a partida em massa de adolescentes, que se reagrupam na ilha de Hokkaido para fundar ali um Estado semi-independente, com regras diferentes das vigentes no resto do país.

Nos anos da bolha financeira, todos os jovens foram beneficiados. Duas décadas depois, apenas uma minoria se salva, enquanto a maioria deve se contentar com bicos e pequenos serviços. Os termos “freeters” (neologismo forjado a partir do inglês “free” e do alemão “arbeiter”, designando uma pessoa que vive de pequenos serviços) e NEET (Not in education, employment or training, ou seja, os jovens desempregados e sem formação) se tornaram sinônimos de exclusão7. No final de 2008, havia mais de 1,8 milhão de “freeters” e algo como 640 mil NEETs. Os que foram mais atingidos por essa realidade pertencem agora a uma geração perdida.

Em seu filme “Tokyo Sonata”8, o cineasta Kiyoshi Kurosawa apresenta a população dessa faixa etária no personagem do filho mais velho de uma família em plena decomposição. Após se alistar no exército americano, ele parte em missão no Oriente Médio e serve com dedicação aos Estados Unidos. O jovem, porém, acaba por mudar de lado, a fim, em suas palavras, “de encontrar a felicidade absoluta”, e retoma então o seu destino. Essa é a mensagem que o diretor procura transmitir: o renascimento da sociedade japonesa, o qual passa necessariamente pela juventude e pela reconstrução de certas referências. Kurosawa sublinha a questão da fronteira como símbolo da relação entre o Japão (representado, no filme, pela família) e o resto do mundo.

O longa-metragem ilustra uma mudança na sociedade, consequência do revés sofrido com a política praticada pelos governos do primeiro-ministro Junichiro Koizumi (2001-2006). Takafumi Horie, jovem empresário da Internet, é uma figura representativa dessa época, durante a qual o neoliberalismo se impôs. Partindo da ideia de que “com dinheiro, o coração do homem pode ser comprado”, ele criou, em 1996, um vasto império, o Livedoor. “Você, incontestavelmente, é quem faz a juventude de hoje sonhar”, assegurava Junichiro ao empresário, pouco antes de este ser preso, em janeiro de 2006, por violação às regras da Bolsa de Valores. O inquérito sobre o caso provocou um mini crash, obrigando a Bolsa de Tóquio, pela primeira vez em sua história, a encerrar as atividades 20 minutos mais cedo.

Se o sistema de valores defendido por Takafumi fez uma parte dos jovens japoneses sonhar, contribuiu, no entanto, para marginalizar outros tantos que não encontraram mais seu lugar num país regido pelo poder do dinheiro.

“Tokyo Sonata” começa com a demissão do pai da família, cuja empresa transfere seus serviços para a China. A decisão o revolta, mas ele a aceita. Enquanto o sistema funcionar e permitir às empresas a obtenção de lucros recordes, poucas vozes se elevarão para pôr esse modelo em questão. Aqueles que foram excluídos se comportam como se ainda fizessem parte do sistema, como o funcionário demitido do filme de Kurosawa, que continua a levar uma vida de assalariado modelo. Ele sai todos os dias para trabalhar, embora tenha perdido seu emprego, e acredita poder encontrar novamente um lugar ao Sol.

É preciso, contudo, admitir: a globalização quebrou a resistência do modelo japonês. Ela propiciou o desenvolvimento da categoria de assalariados que se designa sob o nome inglês “working poor” (trabalhadores pobres), uma tentativa de sublinhar que esse conceito não pertence à cultura nipônica. Ao mesmo tempo em que os japoneses se reconhecem como classe média, preferem utilizar uma expressão estrangeira para falar de um fenômeno que os incomoda profundamente. O documentário “Wakingu Pua – Hataraitemo yutakaninarenai” (“Trabalhadores pobres – não posso enriquecer ainda que trabalhe”), transmitido em julho de 2006 pela rede pública de televisão NHK, denunciou essa situação. O que era percebido, até então, como um comportamento individual (“jiko sekinin”) apareceu, aos olhos dos japoneses, como um revés coletivo em face do qual era preciso reagir.

Responsável pela Rede Contra a Pobreza (“Hanhinkon nettowâku”), Makoto Yuasa denuncia o que ele chama de “sociedade tobogã” (“suberidai shakai”), na qual os trabalhadores que não se beneficiam de um contrato de trabalho não recebem nenhum auxílio. “Uma vez que se desceu até o fim do túnel, é impossível subir utilizando o tobogã no sentido inverso”, constata. “Recomeçar do zero é uma missão impossível para os que foram excluídos.”

Yuasa decidiu então iniciar uma cruzada contra a miséria que ameaça a coesão do país. Entre 31 de dezembro de 2008 e 5 de janeiro de 2009, ele dirigiu a “Vila de Trabalhadores Temporários para o Réveillon” (“Toshikoshi Hakenmura”). Implantada no parque de Hibiya, no coração de Tóquio, a algumas centenas de metros do bairro onde ficam os ministérios, essa instalação procurava conscientizar a sociedade sobre a aflição dos trabalhadores precários, primeira vítimas da recessão. Sem dispor de qualquer proteção social, esses assalariados, frequentemente alojados por seus empregadores, voltam para o olho da rua de um dia para o outro. Segundo as cifras do Ministério da Saúde e do Trabalho, em 1º de abril de 2009, 157 mil dentre eles terão perdido seus empregos9. A iniciativa de Makoto Yuasa surtiu efeito: cerca de 1.700 voluntários se apresentaram para ajudar. Assim, outras vilas foram implantadas em diferentes regiões do Japão.

Certamente, Makoto tem consciência de que isso não será suficiente para recolocar o país nos trilhos. Outro modelo econômico mais equilibrado, no seio do qual cada um poderá reencontrar seu lugar, deve ser pensado. Contudo, o tempo em que o governo podia agir sem prestar contas parece ter passado. O Partido Comunista Japonês registrou, em 2008, 14 mil novas adesões, e as assinaturas de seu diário “Akahata” (“Bandeira Vermelha”) conheceram igualmente a bonança10.

Haruki Konno, 26 anos, dirige a associação Posse, que assumiu a missão de definir novas relações sociais e de ajudar os jovens a se organizarem melhor no mundo do trabalho. Ele confirma o engajamento dos japoneses: no primeiro número da revista trimestral “Posse”, homônima à organização, um dos temas abordados foi a “identidade de jovens trabalhadores no caso da chacina de Akihabara”. Os membros do comitê de redação sabiam que, ao reapresentar o evento trágico em seu contexto de mal-estar social, acertariam na mosca. A revista, de fato, vendeu muito bem, e esquentou o debate no país.

 

*Namihei Odaira é jornalista.



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