O jogo (anti)democrático e as ‘quatro linhas’ da Constituição para o Bolsonarismo
O futuro ex-Presidente da República, Jair Bolsonaro, ao reconhecer indiretamente o resultado das urnas das eleições para Presidente de 2022, alegou sempre ter jogado “dentro das quatro linhas da Constituição”. No entanto, ficou um questionamento: quais são as tais ‘quatro linhas da Constituição’ sustentadas pelo derrotado nas urnas?
O futuro ex-Presidente da República, Jair Bolsonaro, ao reconhecer indiretamente o resultado das urnas das eleições para Presidente de 2022, alegou sempre ter jogado “dentro das quatro linhas da Constituição”. No entanto, ficou um questionamento: quais são as tais ‘quatro linhas da Constituição’ sustentadas pelo derrotado nas urnas?
Durante todo o governo de Jair Bolsonaro, foi possível verificar uma série de ataques às Instituições, seja no desmonte de políticas públicas e sociais, sejam àqueles vinculados aos demais Poderes, relacionadas sobretudo quanto ao controle do arbítrio do Presidente da República. Foi nesse contexto que o Chefe do Executivo afirmou que a atuação fora das ‘quatro linhas da Constituição’ por um dos Poderes, isto é, em desrespeito às supostas “regras constitucionais”, autorizaria o desrespeito por parte dos demais poderes.
No Brasil, como se sabe, o Supremo Tribunal Federal é quem possui a atribuição de interpretar e delimitar os alcances dos direitos fundamentais garantidos na Constituição Republicana (art. 102, I, “a” e “f” da CRFB/88), de modo a gerar uma limitação nas ações e omissões de eventual Poder da República, sendo o responsável por solucionar, também, eventual conflito federativo. Nesse sentido, durante os últimos quatro anos, foi possível observar, por exemplo, a invalidação de atos inconstitucionais/ilegais praticados por Bolsonaro, bem como decisões envolvendo a necessidade de promoção de políticas públicas pelo governo federal ou, ainda, a persecução penal de diversos apoiadores do então Presidente.
Como exemplo de atuação da Corte Constitucional brasileira, é possível citar alguns processos: Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 668, que impediu a veiculação da campanha publicitária contra o isolamento social na pandemia; Mandado de Segurança 37.097, que barrou a nomeação de Alexandre Ramagem para a diretoria-geral da Polícia Federal; Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341, que estabeleceu a competência concorrente de estados, Distrito Federal, municípios e União no combate ao Covid-19; ADPF 672, envolvendo as omissões da administração pública federal na condução de políticas públicas emergenciais nas áreas da saúde e da economia em face da crise ocasionada pela pandemia de Covid-19; ADPF 709, a qual tratava do combate ao Covid-19 nas aldeias indígenas; a ADPF 770, a qual envolvia o plano nacional de vacinação; e a ADI 54, que dizia respeito à omissão em coibir o desmatamento na Amazônia.

Em resumo, nota-se que o Supremo Tribunal Federal não deu trégua às eventuais condutas antirrepublicanas e inconstitucionais do Presidente, de maneira a não deixar Bolsonaro se elidir de sua função e não autorizar que o Presidente ultrapassasse os seus Poderes. A Suprema Corte cobrou quando havia “omissão” e limitou o poder quando havia “excesso”, ou seja, não permitiu, por exemplo, a instituição de uma política pública que negasse por inteiro a pandemia ou autorizasse a destruição por completo da Amazônia.
Em sentido oposto, Jair Bolsonaro e seus apoiadores, em respostas a tais controles, se insurgiram contra o Supremo Tribunal Federal, escorando-se na Constituição como um instrumento liberalizante, seja para matar, (deixar) morrer ou mentir. Entenderam, e ainda entendem, que têm liberdade para (não) vacinar os filhos ou a si mesmo; liberdade para (não) usar máscaras em uma pandemia; liberdade para se armar com fuzis; liberdade de expressão para propagar mentiras e atacar opositores; liberdade para não serem controlados, seja pelo Congresso ou pela Corte Constitucional; liberdade para pedir o fim da própria liberdade. Em suma, liberdade para reivindicar o fim do próprio regime democrático que os lançou ao poder.
Trata-se, portanto, de um conflito hermenêutico desleal, à medida que uma das interpretações direciona o Estado a um objetivo completamente distinto daquele previsto pela própria Constituição, qual seja, o de construir uma sociedade livre, justa e solidária, comprometida com a promoção do bem de todos sem nenhum preconceito (art. 3º, I e IV, CRFB/88).
Ao comentar este dispositivo constitucional, Eros Grau, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e autor jurídico no âmbito constitucional, destacou que uma sociedade livre é aquela que observa a liberdade não apenas em seu “sentido formal”, qual seja, o de uma conduta negativa do Estado frente ao indivíduo, mas também em seu “sentido real”, pautada no binômio sensibilidade-acessibilidade, isto é, na efetiva conscientização e garantia dos meios de acesso para exercício do direito à liberdade; uma sociedade justa é aquela que realiza a justiça social; e uma sociedade solidária é aquela que fraterniza e aproxima os homens uns dos outros[1].
Vê-se, aqui, uma preocupação especial do constituinte com a coletividade, priorizando a proteção do interesse público face aos interesses individuais. Ou seja, em situação de conflito de direitos fundamentais, tais como a liberdade de locomoção e a saúde pública, é impositiva a proteção desta última, resguardando-se ao máximo possível o exercício da liberdade de locomoção. É o que o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello já em 1987 chamava de Princípio da Supremacia do Interesse Público[2].
Foi com base nesse princípio, por exemplo, que o STF reconheceu, no julgamento da ADI 6586/DF, a legitimidade da vacinação obrigatória por meio de medidas indiretas, como a restrição ao exercício de certas atividades ou o acesso e circulação a determinados lugares, ressalvando, contudo, a impossibilidade de coerção física, “em decorrência direta do direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do corpo humano”.
Ainda no esteio da solidariedade, vale frisar que os direitos individuais não podem ser exercidos de forma incondicional e abusiva, em afronta ao direito individual de outrem. É o que ocorre, por exemplo, no exercício da liberdade de expressão, que não pode servir de escudo a discursos de ódio, apologia ao crime ou até mesmo a ataques diretos à honra alheia. Esse foi o raciocínio aplicado pelo STF no julgamento do HC 82.424/RS, com relatoria do Ministro Moreira Alves, no qual se reconheceu que a liberdade de expressão não consagra o direito de incitação ao racismo por meio de veiculação de ideologia nazista.
Por outro lado e com o intuito de deslegitimar o trabalho hermenêutico e contramajoritário do STF, verifica-se, também, que os apoiadores de Bolsonaro bradam que “Supremo é o povo” e que a intervenção militar é “autorizada” (sic) pelo Art. 142 da CRFB/88. Fato é que a leitura simplista e monocular do referido dispositivo decorre exatamente do fato de tal grupo político não ter maturidade democrática e republicana, vez em que reivindicam a supressão das instituições – sobretudo as de controle – utilizando dispositivos desenvolvidos exatamente para a proteção dessas.
Dentro de tal seara, o Professor Lênio Streck[3] é didático ao esclarecer que o art. 142 da CRFB/88 trata simplesmente da exceção na missão das Forças Armadas, de sorte que elas também podem ser usadas na segurança pública, a partir do cumprimento de determinados requisitos, nos termos dos artigos 34, III, 136 e 137 da CRFB/88.
É indispensável mencionar, ainda, que a democracia para Bolsonaro e seus apoiadores é vista como o “regime em que a minoria deve se curvar às maiorias”. Tal frase foi dita pelo então Presidente desde a sua eleição até a última campanha eleitoral, porém, com a derrota em 2022 e, por consequência, a ocupação do rótulo de “minoria” eleitoral, a visão sobre democracia se esvaziou, a ponto de os eleitores mais radicais reivindicarem intervenção militar, em evidente desespero e contrassenso.
Nesse cenário, é possível verificar que a leitura constitucional de Bolsonaro e de seus apoiadores é feita de forma isolada, isto é, não têm a responsabilidade ou o cuidado de realizarem uma compreensão sistemática da Carta Republicana. Sendo assim, nota-se que não se preocupam, por exemplo, com os objetivos da República Federativa (art. 3º da CRFB/88), com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CRFB/88), com a função social da propriedade (Art. 170, III da CRFB/88), com os direitos sociais (Art. 6º da CRFB/88), com o direito ao meio ambiente equilibrado (Art. 225 da CRFB/88) ou, ainda, com a própria ideia de república e Democracia (Art. 1°, caput, da CRFB/88).
Segundo Eros Grau[4], o Direito não deve ser estudado/interpretado “em tiras” ou “aos pedaços”. Para o autor, a interpretação jurídica pressupõe ao intérprete a análise do direito, considerando, a título de exemplo, o direito sistematizado, com deferência ao texto constitucional e, por consequência, aos direitos e garantias fundamentais, pois um texto de direito “sozinho” não representa quaisquer significados, sejam normativos, teóricos ou práticos.
Ao fim, é possível verificar que o projeto político e os “princípios existenciais” do candidato derrotado em 2022 se pautam, exclusivamente, em artifícios que inviabilizam o controle – judicial ou político – de seus atos, bem como em uma liberdade difusa, irrestrita e, por conseguinte, inefetiva e inconcebível ao Estado Social e Democrático de Direito. De qualquer forma, a despeito das bravatas e ameaças golpistas, a Constituição, verdadeiramente Republicana e Democrática, está mostrando para o Bolsonarismo onde fica a porta de saída das ‘quatro linhas’, sobretudo com o resultado do jogo democrático. E esse jogo ele perdeu.
Fábio Prudente Netto é Advogado (UFRJ) e pós-graduando na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e Adriel Esteves de Jesus Vila da Silva é Residente Jurídico do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e pós-graduando na Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
[1] GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 215.
[2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Elementos de direito administrativo. 1 ed. 6 tir. São Paulo: RT, 1987, p. 08.
[3] https://www.conjur.com.br/2020-mai-21/senso-incomum-ives-gandra-errado-artigo-142-nao-permite-intervencao-militar
[4] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 34.